ÊXTASE DE SANTA TERESA DE ÁVILA, DE BERNINI
Carlos
Veloso
(Publicado
n’ O Templário de 1-6-2017)
Na
mais extraordinária ambiguidade de valores, o belíssimo grupo escultórico que é
obra-prima de Gianlorenzo Bernini, o Êxtase de Santa Teresa de Ávila esculpido
em mármore entre 1647 e 1651, pertence à Capela Cornaro da Igreja de Santa
Maria della Vittoria, em Roma, e é considerado, não apenas a obra-prima do
mestre do Barroco, mas uma das mais belas e polémicas obras de toda a História
da Arte.
A parte central da obra consta de duas únicas personagens, o Anjo portador da flecha e Santa Teresa de Ávila — ou de Jesus —, a enérgica reformadora carmelita, famosa pelas obras em que relata as suas visões e êxtases — os livros autobiográficos (1562-1579) e Castelo Interior ou As Moradas (1588).
As duas figuras centrais são banhadas pela luz vinda do alto, representada sob a forma de raios dourados esculpidos, enquanto a Mística, cujas vestes revoltas são agitadas pelo vento, parece sustentada por nuvens de mármore, tão etéreas que parecem destituídas de peso. A cena ilustra a própria narrativa de Santa Teresa, que descreve a sua experiência mística ocorrida em 1559, quando lhe teria surgido um Anjo da ordem dos Serafins: “via-lhe nas mãos um dardo comprido de ouro e na ponta parecia ter fogo; pareceu-me trespassar o coração várias vezes e chegar-me às entranhas. Ao tirá-lo parecia-me que as levara consigo e deixava-me toda abrasada em amor grande de Deus.”
Embora não apresente quaisquer confusões do ponto de vista iconográfico, ou seja, apesar de se mostrar correcta na representação do momento em que Santa Teresa, trespassada pela flecha do amor divino empunhada pelo Anjo, desfalece em êxtase puro, não têm faltado, ao longo dos tempos, os mais corrosivos comentários de muitos ilustres visitantes que admiraram esta bela obra. De facto, emana dela uma sensualidade tão densa que parece materializar-se, sendo célebre a observação irónica do Presidente de Brosses: “Se aqui se trata do amor divino, eu conheço-o”. Também o grande escritor Stendhal se lhe refere, embora admirativamente: “É a expressão mais viva e natural. Que divina arte! Que voluptuosidade!”.
Também se levantaram vozes críticas entre os católicos mais conservadores, tendo alguns chegado a considerá-la “indecente”. O próprio monge que acompanhava Stendhal não deixa de considerar “grande pecado” que tais estátuas pudessem “representar facilmente a ideia de um amor profano”… Deixemos a Bernini a sua própria interpretação da imagem, segundo ele “toda agitada pelo grande amor de Deus”.
É claro que toda a obra de arte é uma “obra aberta”, sujeita, logo a partir da criação, aos juízos e às interpretações dos seus “consumidores” que, não raramente, acabam por lhe mudar o significado original. No entanto, a falta de enquadramento histórico desta escultura será um dos principais motivos para a polémica instalada, tornando-a quase “maldita” junto de certas consciências mais conservadoras.
Tratando-se de uma obra concebida e executada em período de grande vigilância das autoridades eclesiásticas sobre todas as obras de arte, especialmente as religiosas, seria extremamente perigoso a alguém, para mais um artista cujas obras nunca passariam despercebidas, cometer o erro de suscitar críticas relativamente à sua ortodoxia católica. As regras dimanadas do Concílio de Trento, em 1563, continuavam bem vivas, não admitindo qualquer desvio ou confusão ideológica que prejudicasse a fé dos crentes.
Por outro lado, trata-se de uma obra barroca e o próprio enquadramento teatral da escultura, emoldurada por um magnífico retábulo em jeito de palco, rodeada de camarotes, preenchidos com elementos da família Cornaro, no papel de espectadores, nem por isso especialmente atentos, acentua esse carácter. A sobreposição do êxtase religioso com o êxtase sexual não é rara na Arte barroca nem, de resto, em outras épocas, chegando essa ambiguidade a ser explorada dentro dos próprios domínios da ciência médica.
Mas Amor é
sempre Amor, seja ele divino ou humano e próprio Anjo com a sua flecha é
frequentemente assimilado ao Eros grego, o Cupido dos Romanos… O
que é curioso é que, tratando-se essa ambiguidade de uma característica quase
“estilística” do Barroco, todas as baterias da crítica se tenham voltado
precisamente para esta obra de Bernini. Para esta e não, por exemplo, para a Agonia
de Beata Ludovica Albertoni esculpida quase dez anos depois – Igreja de San
Francisco a Ripa, em Roma ―, em que a violência da agonia, transfigurada em
êxtase, não é menos intensa que a de Santa Teresa! … Morte e sexualidade,
Thanatos e Eros, aparecem aqui associadas de forma pioneira.
Talvez a
diferença assente em alguns aspectos que nada têm que ver com a escultura
propriamente dita, mas com a personalidade da própria retratada, Santa Teresa…
Tratava-se de um figura de mulher pouco convencional, de uma energia e
inteligência pouco consentâneas com as características ditas “femininas” da sua
época e das que se seguiram, uma verdadeira intelectual da Igreja, o que lhe
veio a valer, mas só em 1970, o título de primeira Doutora da Igreja…
Ela conseguiu, em parte, quebrar o cerco que não permitia às mulheres
notabilizar-se intelectualmente num mundo dominado pelos homens.
Quão
agradável não seria para eles rebaixar esta figura ao plano “meramente humano”
de uma “fraca mulher” ávida dos prazeres dos sentidos? … Ou então, talvez toda
a culpa seja de Bernini que a esculpiu tão bela, o jovem corpo palpitando
debaixo do burel, dando o seu amor, todo, a Deus, e não a alguma bem-pensante
personagem, sempre pronta a apedrejar os “pecados” do próximo…
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