O ÓDIO AOS POBRES (1)
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 8 de Novembro de 2018
Visitei, no final do ano 2000, a cidade de Pelotas, no Estado mais meridional do Brasil, Rio Grande do Sul, integrado num grupo académico do Instituto Politécnico de Tomar. Comemorava-se, então, o quinto centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral a “Terras de Vera Cruz”, um dos nomes com que foi baptizada essa terra que ainda nem sonhava a extensão, nem a riqueza que o futuro lhe destinava.
Nesse ano do achamento, era ainda um país de sonho que emergia das brumas de um éden reconquistado, quem sabe se uma derradeira oportunidade de iludir o pecado original, de apaziguar o tremendo Velho dos Dias e fundar o Reino de Deus na Terra… Mas era tudo ilusão, ou melhor, era quase tudo ilusão… Passaram-se os anos e novos herdeiros desse pecado, já tão pouco original, encheram a terra e povoaram-na. Terra Prometida, como toda a América, acolheu gente de todo o mundo, em busca de fortuna, acotovelando-se e acotovelando os últimos nativos, que se foram retirando, na ponta de baionetas, para o sertão, depressa substituídos, no trabalho escravo, por milhares de africanos, os escassos sobreviventes de viagens de pesadelo no bojo das nossas naus transatlânticas.
Às cidades de raiz portuguesa foram-se juntando novas cidades, de influência italiana, alemã, espanhola, enquanto libaneses, japoneses, ingleses, descendentes dos escravos africanos e gente de mil outras desvairadas origens, juntavam as suas culturas a esse efervescente caldo cultural que, é afinal, todo o Brasil.
Pela beira da estrada sucediam-se manadas intermináveis de bovinos, enquanto junto às chácaras, improvisados postos de venda expunham cebolas e outros produtos agrícolas, enquanto espaços arborizados nos mostravam oliveiras, figueiras, pinheiros, tudo bem ao nosso jeito, sinal de que este território, embora com características subtropicais, se encontra na zona temperada do sul.
As origens portuguesas e a posterior fixação de numerosos imigrantes provenientes dos Açores e outras províncias lusas, dá-lhe um certo ar familiar, visível em muitas das suas casas
No mercado, bem parecido com as nossas feiras, em que o plástico e o “made in China” dominam cada vez mais todo o comércio popular, algumas barracas rompem com a “invasão” asiática vendendo chás, ervas diversas, cascas de árvores e raízes e, claro, o mate, erva de que se faz a famosa bebida gaúcha que constitui um hábito bem enraizado em toda a população.
A praia atlântica mais próxima da velha cidade de Rio Grande é Cassino, pequena povoação que acompanha a extensa faixa de areia, plana como uma larga estrada, que vai morrer nos molhes da barra, grandes pedras amontoadas penetrando quatro quilómetros pelo mar dentro.
A primeira coisa que vimos, à entrada da povoação, foi uma grande imagem de Iemanjá, a venerada deusa africana das Águas, a quem rezavam, ajoelhadas, duas mulheres. As semelhanças com o culto mariano não se ficam pelas aparências imediatas e exteriores. Há mesmo um paralelismo assumido, na religião afro-americana a que se chama Macumba, entre esta divindade marinha e a catolicíssima Nossa Senhora, como o há entre as outras deidades africanas, para aqui trazidas pelos escravos negros, e o próprio Cristo e muitos dos santos do calendário litúrgico, o Diabo incluído… Religião popular, religião de resistência
Marca desses cultos, que já conhecia das saborosas leituras de Jorge Amado, ramos de flores e moedas depositadas na areia, na orla das ondas, constituem respeitosa oferenda que a leve ondulação marinha vem beijar. E é agora o extenso areal que percorremos, com o chão tão plano e tão duro como uma pista de aviação, que bicicletas e carros de todos os tamanhos nele deslizam como na auto-estrada! … Até o nosso ónibus, bem pesado, nele desliza, bem rente à orla da maré baixa, até que o distante molhe se torna próximo e se vislumbram estranhas caranguejolas deslizando sobre carris, munidas de vela triangular, como se de barcos se tratasse…
Nesse ano do achamento, era ainda um país de sonho que emergia das brumas de um éden reconquistado, quem sabe se uma derradeira oportunidade de iludir o pecado original, de apaziguar o tremendo Velho dos Dias e fundar o Reino de Deus na Terra… Mas era tudo ilusão, ou melhor, era quase tudo ilusão… Passaram-se os anos e novos herdeiros desse pecado, já tão pouco original, encheram a terra e povoaram-na. Terra Prometida, como toda a América, acolheu gente de todo o mundo, em busca de fortuna, acotovelando-se e acotovelando os últimos nativos, que se foram retirando, na ponta de baionetas, para o sertão, depressa substituídos, no trabalho escravo, por milhares de africanos, os escassos sobreviventes de viagens de pesadelo no bojo das nossas naus transatlânticas.
Às cidades de raiz portuguesa foram-se juntando novas cidades, de influência italiana, alemã, espanhola, enquanto libaneses, japoneses, ingleses, descendentes dos escravos africanos e gente de mil outras desvairadas origens, juntavam as suas culturas a esse efervescente caldo cultural que, é afinal, todo o Brasil.
Pela beira da estrada sucediam-se manadas intermináveis de bovinos, enquanto junto às chácaras, improvisados postos de venda expunham cebolas e outros produtos agrícolas, enquanto espaços arborizados nos mostravam oliveiras, figueiras, pinheiros, tudo bem ao nosso jeito, sinal de que este território, embora com características subtropicais, se encontra na zona temperada do sul.
As origens portuguesas e a posterior fixação de numerosos imigrantes provenientes dos Açores e outras províncias lusas, dá-lhe um certo ar familiar, visível em muitas das suas casas
No mercado, bem parecido com as nossas feiras, em que o plástico e o “made in China” dominam cada vez mais todo o comércio popular, algumas barracas rompem com a “invasão” asiática vendendo chás, ervas diversas, cascas de árvores e raízes e, claro, o mate, erva de que se faz a famosa bebida gaúcha que constitui um hábito bem enraizado em toda a população.
A praia atlântica mais próxima da velha cidade de Rio Grande é Cassino, pequena povoação que acompanha a extensa faixa de areia, plana como uma larga estrada, que vai morrer nos molhes da barra, grandes pedras amontoadas penetrando quatro quilómetros pelo mar dentro.
A primeira coisa que vimos, à entrada da povoação, foi uma grande imagem de Iemanjá, a venerada deusa africana das Águas, a quem rezavam, ajoelhadas, duas mulheres. As semelhanças com o culto mariano não se ficam pelas aparências imediatas e exteriores. Há mesmo um paralelismo assumido, na religião afro-americana a que se chama Macumba, entre esta divindade marinha e a catolicíssima Nossa Senhora, como o há entre as outras deidades africanas, para aqui trazidas pelos escravos negros, e o próprio Cristo e muitos dos santos do calendário litúrgico, o Diabo incluído… Religião popular, religião de resistência
Marca desses cultos, que já conhecia das saborosas leituras de Jorge Amado, ramos de flores e moedas depositadas na areia, na orla das ondas, constituem respeitosa oferenda que a leve ondulação marinha vem beijar. E é agora o extenso areal que percorremos, com o chão tão plano e tão duro como uma pista de aviação, que bicicletas e carros de todos os tamanhos nele deslizam como na auto-estrada! … Até o nosso ónibus, bem pesado, nele desliza, bem rente à orla da maré baixa, até que o distante molhe se torna próximo e se vislumbram estranhas caranguejolas deslizando sobre carris, munidas de vela triangular, como se de barcos se tratasse…
Foto de C. Veloso - À vela sobre carris
É este mais um indício dos recursos inesperados a que uma população em dificuldades pode lançar mão para melhorar a vida. As vagonetes à vela (ver imagem), como que tiradas das páginas de Júlio Verne, são decerto um complemento para os magros meios de muitos, mesmo nestes bem pouco estivais meses de Verão.
Além de História e estórias, que são tantas, é nas ruas da cidade de Pelotas que encontramos aquele sabor único que só o Brasil pode proporcionar, principalmente nesse tempo quente que Dezembro oferece, tão em contraste com a quadra natalícia que se anunciava em cada “camelô” do Calçadão, com as gambiarras a acender e a apagar, presépios, estrelas e outros enfeites e uns Pais Natal (Papais Noel!) bem em carne-e-osso, suando copiosamente debaixo dos deslocados gorros e casacões vermelhos, guarnecidos de golas bem peludas!
E nesta terra gaúcha é a carne de bovino a imagem de marca em todos os restaurantes, nos grandes rodízios, em que a refeição não é barata como nos pequenos restaurantes populares, bem em conta, em que vimos uma mãe de família a negociar o preço do almoço, dela e de uma filha e em que se encontra o prato regional, carne na panela, de vaca, claro, cozinhada com feijão, e que feijão! …
Mas falta falar, mais detidamente, da gente que aqui se desloca num vaivém ininterrupto. Nestes estados do Sul predominam as etnias europeias, com predomínio dos luso-descendentes, mas também um bom número de descendentes de italianos, espanhóis, alemães, libaneses e, também, africanos e índios. Estes, que eram os senhores das terras do antigo Território das Missões, expulsos para outros lados depois das sangrentas campanhas luso-espanholas do século XVIII, estão reduzidos à miséria, e é fácil identificá-los nas bermas das estradas, em acampamentos improvisados com miseráveis tendas de lona e pedaços de plástico, a vender os seus artísticos cestos multicolores e as redes, vestígios de uma identidade que teima em sobreviver. (...)
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