quinta-feira, 16 de abril de 2020



AS TREVAS MILENARES

Carlos Rodarte Veloso

O Templário, 16 de Abril de 2020

O percurso que nós, humanidade, vaidosamente nos atribuímos como civilização, vai das trevas mais profundas à claridade mais pura, do pensamento mágico à mais pura racionalidade, da bárbara Pré-História ao predomínio da Ciência, da aproximação à compreensão de todas as coisas, liberta dos sucessivos véus que a esconderam, o famoso manto diáfano da fantasia...
Essa correcção das impressões mais imediatas nasceu em mentes visionárias cujos raciocínios corrigiram a aparência das coisas, provocando autênticas cambalhotas na observação dos fenómenos naturais, mesmo dos cósmicos, aliás, principalmente dos cósmicos, tanto na pequena como na grande dimensão.
Desde a substituição do intuitivo geocentrismo pelo menos compreensível heliocentrismo, milagre do raciocínio que projecta, com um simples olhar, o nosso Sol para o centro do nosso sistema planetário, com a Terra disciplinadamente enviada para uma órbita, de início bem circular, depois crescentemente elíptica e integrada no baile planetário e estelar de que iniciámos a exploração no último século.
Também o atomismo, genial intuição que teorizou, sem quaisquer meios experimentais, a divisão da matéria em minúsculos átomos, a base da Física actual, tão longe das quase ingénuas leis de Arquimedes, que apenas necessitava de um ponto de apoio para levantar a Terra…
Ou a compreensão da Evolução das espécies, a base para a colocação da humanidade no seu lugar na natureza, negando assim as explicações teológicas que foram – e continuam a ser – outros tantos grilhões ao avanço da espécie a que pertencemos.
Todos esses avanços criaram a Ciência, filha dilecta da Filosofia e foi o seu triunfo que trouxe o crescente domínio sobre o Planeta, as suas riquezas, as suas criaturas, mas também a crescente destruição da sua harmonia.
A administração das riquezas obtidas – roubadas, é o termo mais correcto – foi obtida pela força das armas, “justificada”, a cada momento, com os “argumentos” mais falaciosos, baseados numa pseudo-superioridade de povos e etnias sobre outros povos e etnias, religiões e filosofias sobre outras religiões e filosofias.
Os dirigentes dos diversos povos coexistiram com as sucessivas revoluções do conhecimento, geralmente a elas se opondo, procurando negá-las através dum conservadorismo nostálgico de valores ultrapassados e impô-las através das mais selvagens e sangrentas formas de repressão.
É o que ainda hoje se passa num século XXI grávido de avanços científicos e tecnológicos, mas dominantemente governado pela cegueira de criaturas ignorantes e malévolas, tentando impor a todo o custo o regresso às superstições dum passado milenar, o mesmo que é dizer, às catacumbas da humana psique.
Procuram essas criaturas paradoxais aproveitar os progressos tecnológicos tão dificilmente adquiridos sem assumir as conquistas sociais e humanas nelas implicadas.
São “cegos conduzindo outros cegos”, na extraordinária parábola de 1568 do pintor flamengo Bruhegel o Velho. O mistério é como essa massa de cegos se deixa conduzir, directamente ao abismo.


Outras alegorias de sinal equivalente foram desenvolvidas através dos tempos, nomeadamente no romance de Saramago “Ensaio sobre a Cegueira”, publicado em 1995 e levado às telas do cinema em 2008, pela mão do realizador Fernando Meireles.
Nesta obra do nosso Nobel da Literatura, é uma mulher, única sobrevivente da cegueira universal, que conduz os cegos, não para o abismo, mas para a redenção, a salvação da humanidade… Não por acaso, já que é Mulher, vítima também milenar da cegueira do poder e da ignorância.


Alvos fáceis de encontrar, em todas as épocas, para esta feroz crítica à vaga de governantes patologicamente conservadores, ignorantes de todo o conhecimento científico e estupidamente orgulhosos dessa culposa ignorância, que conduz ao negacionismo das conquistas da inteligência humana, especialmente nesta época de ameaça à própria sobrevivência da espécie.
Quando Trump continua a resistir à opinião dos cientistas sobre os cuidados a tomar quanto ao coronavírus, chegando a calar as próprias questões dos jornalistas e a emitir ridículas opiniões pseudocientíficas sobre o assunto, nomeadamente contra a Organização Mundial de Saúde, quando Bolsonaro persiste na sua teimosa e imbecil negação da necessidade de enfrentar a ameaça cada vez mais trágica da pandemia, arriscando irresponsavelmente a vida de milhões de brasileiros, quando Lukashenko, presidente da Bielorrússia aconselha vodca e sauna para tratar o terrível vírus estamos perante a manifestação inegável do grau zero da inteligência.
Cegos incuráveis, não seria urgente mandá-los para férias?

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