sexta-feira, 31 de agosto de 2018


ITALIANO PARA PRINCIPIANTES, 
DE LONE SCHERFIG, 
A MENOS DOGMÁTICA REALIZAÇÃO DO “DOGMA”


Carlos Rodarte Veloso - blogue "Passagem da Linha", 31-8-2018


Um século e uns anos de Cinema, e um grupo de cineastas resolve abandonar toda a tralha tecnológica, da mais primitiva ao cúmulo dos efeitos especiais, para criar o filme "puro"... É o Dogma, a que os seus iniciadores, os dinamarqueses Thomas Vinterberg (A Festa), Lars von Trier (Os Idiotas), e Soren-Kragh Jacobsen (Mifune), dão a forma de um manifesto que é um Voto de Castidade, assinado por cada um, com todas as formalidades. É um cinema que pretende recuperar o sopro da verdadeira vida que 100 anos de espetáculo e de "truques" transformaram numa mistificação permanente.
Esta provocação àquilo que hoje parece ser a principal razão de ser da maioria dos filmes de sucesso, a Grande Ilusão, parte aliás inseparável da 7ª Arte desde os seus inícios, agradou a Lone Scherfig, dinamarquesa também, que decidiu aderir ao movimento, embora reservando-se alguma liberdade, nomeadamente no uso da câmara tradicional. Na verdade, os seus colegas advogam o uso de câmara ao ombro, que permite uma maior mobilidade...
E assim nasceu um filme de baixo orçamento e, espantosamente, assinalável êxito comercial e reconhecimento internacional. Três Prémios o contemplaram em 2001: o "Urso de Prata do Festival de Berlim, o Prémio do Público do Festival de Paris e o Golfinho de Ouro da Festróia..
O filme é trágico e divertido, ao mesmo tempo. Que tipo de comédia bombardeia o respeitável público com uma sucessão de mortes trágicas e funerais? Uma comédia negra? Decerto, mas O Italiano para Principiantes é muito mais do que isso, porque tem tanto de genuinamente triste, quanto de francamente divertido. E melancolia e divertimento nascem apenas do extraordinário trabalho destes actores que, com a realizadora e toda a equipa de produção, reflectem exemplarmente a condição humana, sucessão indispensável de tristeza e alegria, de solidão e de sociabilidade.
É a própria Lone Schefig que o diz: – É como quando o médico dá uma injecção. Sabe que vai magoar, por isso tenta fazer-nos a rir. 


Lágrimas ou alegria são contidas, ou não estivéssemos no mundo escandinavo, em que os sentimentos são reprimidos. Há uma insegurança latente nas diversas personagens, até numa jovem italiana emigrante, tão forte é o contágio. É aí que entra o Italiano, língua e símbolo de emoções fortes, de paixão. Um estereótipo... A própria Lone reconhece que a língua podia ser o Espanhol ou, digo eu, o Português...
E a aprendizagem de uma língua estrangeira torna-se o pólo de aproximação entre personagens tão comuns como eu ou qualquer um de vós, tão diferentes como cada um de nós. E uma viagem a Itália é catalizador da acção e abertura às emoções de um grupo de gente comum... Aqui se desencadeiam as paixões contidas, mas num registo minimalista, como convém. Mas este filme revela, em momentos-chave uma sensualidade irreprimível: um corte de cabelo interrompido por diversas vezes, pretexto para uma lavagem de cabeça que é tudo menos inocente, uma cama abandonada numa rua de Veneza que será aproveitada pelo último casal a constituir-se... A esta história de amores felizes nada falta para criar uma atmosfera calorosa, que nem o Inverno, durante o qual decorre toda a acção, arrefecerá.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018



LOST IN TRANSLATION, DO MULTI AO MONOCULTURALISMO

Carlos Rodarte Veloso 
Blogue "Passagem da Linha", 30-8-2018




            Mais uma película em que a viagem é pretexto para o encontro, já não tanto com o Outro, mas consigo próprio. Os estereótipos estão agora do lado do viajante e menos do visitado.
            É curioso como o exotismo que anda habitualmente associado ao Japão pode tornar-se tão amargo e patético, quando uma senhora chamada Sophia Coppola resolve arregaçar as mangas e pôr-se a dirigir este filme. É o que acontece em Lost in Translation, lugar certamente estranho, onde assistimos a uma tradução demasiado à letra de tudo quanto a formidável máquina consumista do próspero Ocidente produz e o Extremo Oriente aproveita, da pior maneira...
            E chegamos lá, concretamente a Tóquio, na companhia de três norte-americanos: um jovem casal e um actor em fim de carreira, protagonizados por excelentes actores. Eles, um fotógrafo e a sua mulher, o primeiro, interpretado por Giovanni Ribisi, em viagem de trabalho, ela, por Scarlett Johansson, a acompanhá-lo para conhecer mais mundo. O actor, na pele de Bill Murray, contratado para filmar um comercial milionário, para a promoção de um whisky.
            Este filme, apesar do ridículo da maioria das situações, é tudo menos cómico. A começar pela jovem casada, formada em Filosofia, atrelada a um marido superficial que a não entende, num mundo que não é entendível por nenhum deles. Nem pelo actor, já quase limitado ao trabalho publicitário e a viver dos últimos lampejos de uma reputação, mas que encontra na jovem casada uma companheira para a aventura de descoberta, que é mais dele, deles próprios, do que do país onde se encontram. Um país vencido que imita servilmente os vencedores, num tique que tem muito de kitsch e quase nada de genuíno. Que tem tudo de trágico.
            Mas não se trata de uma paródia a um Japão que perdeu as suas raízes, nem de uma crítica paternalista, em que as diferenças são o meio de afirmar a superioridade do imitado. Pelo, contrário, é o imitado, um pouco como nas fábulas de animais, que é o alvo principal de um retrato devastador.
            Todas as personagens se movem nesse mundo globalizado, como que mergulhado num delírio permanente. Há em Lost in Translation como que uma espiral vertiginosa que torna as cenas mais triviais em quadros surrealistas, e em que o colorido do néon e os adereços teatrais que adornam as estranhas personagens do dia e da noite de Tóquio, mais uma vez escondem os traços grosseiros de um quotidiano sem verdade e sem calor humano.  

       
            E, no entanto, é o mergulho nessa Nova Iorque de opereta que vai provocar nos heróis da nossa história uma reflexão que, no desvario do momento, os vai despertar para a realidade que a realizadora, sabiamente, evita misturar com as naturais inclinações amorosas a que um percurso em comum pode dar, dá origem. Uma realidade deturpada pela tradução. Tanto em relação aos que os rodeiam, orientais ou ocidentais, como, principalmente, aos sonhos que são a parte mais viva e concreta das suas vidas. Porque, como sempre e por muito que a mentalidade dominante o combata, o sonho comanda mesmo a vida... Se calhar, também nesse Japão adormecido na orla da grande floresta global, em que as árvores se converteram em cimento armado, à espera de um beijo de humanidade que o devolva à nobreza a que todos os povos têm direito.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018


Carlos Rodarte Veloso para Enciclopédia Ilustrada
#postaldeférias
Repesco aqui um texto que publiquei no "Correio Transmontano" de 28 de Maio de 2017 e se adequa perfeitamente a esta página:
FINISTERRA




A magia do mar desde sempre impressionou os humanos, mais ainda quando no seu encontro com notórios acidentes geográficos terrestres, os cabos, estabelece a fronteira entre o conhecido e o desconhecido, entre a vulgaridade do dia-a-dia e o desafio de longínquas paragens, porventura habitadas por seres extraordinários e misteriosos, decerto perigosas e, como tal, dignas de um sagrado temor.
Os cabos são assim objecto de uma muito especial mística, mormente quando voltados a um mar sem limites aparentes, frente à sólida estrutura dos Continentes.
A norte das Rias Baixas, na Galiza, numa paisagem habitualmente envolta em brumas, recortam-se as Rias Altas, menos pronunciadas mas nem por isso menos impressionantes. No limite entre umas e outras, o lendário Cabo Finisterra, “Fisterra” no dizer regional, “fim do mundo” dos Antigos e contraponto, a norte, da nossa Ponta de Sagres — o velho “Promontório Sagrado” dos Romanos —, como ela voltado ao “Mar Oceano” e ao Ocidente.
Situado na Província da Corunha, a pouco mais de cem quilómetros de Santiago de Compostela, delimita a sul a costa pedregosa onde tantos navios naufragaram a ponto de lhe ser dado o nome de Costa da Morte. O farol e a sua poderosa sereia parecem replicar a macabra denominação, enquanto a nossos pés se espraia o imenso espelho do Oceano, reflectindo as cores do poente. Ao pôr-do-sol, o mágico momento do silêncio tem grupos de espectadores, dispersos pelas falésias, num ritual mudo que se impõe naturalmente.
Próximo, na base do promontório, o granito de uma pequena igreja românica, frente ao cemitério, encerra uma imagem de Cristo muito venerada pelos marinheiros. Na povoação, um grupo escultórico em pedra e bronze, dedicado a estes nossos irmãos pelas origens e pela língua, como nós emigrantes, “leva o noso amor ós galegos espalados polo mundo”.
A estrada serpenteante que, através das Rias Baixas, conduz à vila de Fisterra, contorna enseadas amenas que orlam pequenas povoações piscatórias de uma beleza calma, por entre visões de sonho de montanhas emergindo do nevoeiro, como que pairando sobre as águas. Na baía de Ezaro o eco das ondas repercute-se nas falésias e enche a praia de sons que, em cascata, se prolongam na travessia. Topónimos familiares à nossa língua alternam com estranhos nomes: Noia, Muros, Serres, Carnota, Cée, Corcubión… As próprias inscrições lembram, a cada momento, a língua comum que o centralismo castelhano tentou calar durante a ditadura de Franco.
Nos campos próximos e, até, à beira-mar, avultam as formas inconfundíveis dos hórreos, tão similares aos populares “espigueiros” do norte de Portugal, lembrando uma continuidade cultural que se reconhece a cada passo, até na língua que, diz-se, apenas difere do Português numa escrita e, principalmente, numa pronúncia em que é evidente alguma promiscuidade com o Castelhano. Aliás, são os Galegos os únicos “espanhóis” que nos entendem sem nos obrigar a qualquer esforço de pronúncia… Mas não lhes chamem “espanhóis” porque, como disse a grande Poeta galega Rosalia de Castro, “Pobre Galicia, non debes chamarte nunca española / Qu'España de ti s'olvida cando eres ¡ai! tan hermosa.”
Rumando a outras paragens da Galiza, somos dominados por essa nostalgia, tão portuguesa, a que nós chamamos saudade e os Galegos, morriña…