quinta-feira, 30 de agosto de 2018



LOST IN TRANSLATION, DO MULTI AO MONOCULTURALISMO

Carlos Rodarte Veloso 
Blogue "Passagem da Linha", 30-8-2018




            Mais uma película em que a viagem é pretexto para o encontro, já não tanto com o Outro, mas consigo próprio. Os estereótipos estão agora do lado do viajante e menos do visitado.
            É curioso como o exotismo que anda habitualmente associado ao Japão pode tornar-se tão amargo e patético, quando uma senhora chamada Sophia Coppola resolve arregaçar as mangas e pôr-se a dirigir este filme. É o que acontece em Lost in Translation, lugar certamente estranho, onde assistimos a uma tradução demasiado à letra de tudo quanto a formidável máquina consumista do próspero Ocidente produz e o Extremo Oriente aproveita, da pior maneira...
            E chegamos lá, concretamente a Tóquio, na companhia de três norte-americanos: um jovem casal e um actor em fim de carreira, protagonizados por excelentes actores. Eles, um fotógrafo e a sua mulher, o primeiro, interpretado por Giovanni Ribisi, em viagem de trabalho, ela, por Scarlett Johansson, a acompanhá-lo para conhecer mais mundo. O actor, na pele de Bill Murray, contratado para filmar um comercial milionário, para a promoção de um whisky.
            Este filme, apesar do ridículo da maioria das situações, é tudo menos cómico. A começar pela jovem casada, formada em Filosofia, atrelada a um marido superficial que a não entende, num mundo que não é entendível por nenhum deles. Nem pelo actor, já quase limitado ao trabalho publicitário e a viver dos últimos lampejos de uma reputação, mas que encontra na jovem casada uma companheira para a aventura de descoberta, que é mais dele, deles próprios, do que do país onde se encontram. Um país vencido que imita servilmente os vencedores, num tique que tem muito de kitsch e quase nada de genuíno. Que tem tudo de trágico.
            Mas não se trata de uma paródia a um Japão que perdeu as suas raízes, nem de uma crítica paternalista, em que as diferenças são o meio de afirmar a superioridade do imitado. Pelo, contrário, é o imitado, um pouco como nas fábulas de animais, que é o alvo principal de um retrato devastador.
            Todas as personagens se movem nesse mundo globalizado, como que mergulhado num delírio permanente. Há em Lost in Translation como que uma espiral vertiginosa que torna as cenas mais triviais em quadros surrealistas, e em que o colorido do néon e os adereços teatrais que adornam as estranhas personagens do dia e da noite de Tóquio, mais uma vez escondem os traços grosseiros de um quotidiano sem verdade e sem calor humano.  

       
            E, no entanto, é o mergulho nessa Nova Iorque de opereta que vai provocar nos heróis da nossa história uma reflexão que, no desvario do momento, os vai despertar para a realidade que a realizadora, sabiamente, evita misturar com as naturais inclinações amorosas a que um percurso em comum pode dar, dá origem. Uma realidade deturpada pela tradução. Tanto em relação aos que os rodeiam, orientais ou ocidentais, como, principalmente, aos sonhos que são a parte mais viva e concreta das suas vidas. Porque, como sempre e por muito que a mentalidade dominante o combata, o sonho comanda mesmo a vida... Se calhar, também nesse Japão adormecido na orla da grande floresta global, em que as árvores se converteram em cimento armado, à espera de um beijo de humanidade que o devolva à nobreza a que todos os povos têm direito.

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