CONTEXTOS DO DIABO
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 25 de Junho de 2020
O
tão necessário como urgente anti-racismo, finalmente na ordem do dia devido aos
últimos e gravíssimos acontecimentos nos EUA, está paradoxalmente a dar espaço
a um fanatismo absolutamente irracional que resolveu esquecer as lições da
História, pior, resolveu ignorar a importância da História como testemunho de
comportamentos condenáveis, assim fazendo esquecer aquilo que deveria ficar na
memória da Humanidade, como lição, como exemplo a não seguir.
A
destruição de estátuas de criminosos racistas e esclavagistas acaba por não
apoiar a causa anti-racista, por um lado porque os vitimiza falsamente junto
dos seus actuais apoiantes, por outro, devido à total ignorância dos fanáticos
destruidores, que não sabendo identificar os comportamentos referentes a cada
época, assim criminalizam figuras históricas notáveis que então se encontravam
perfeitamente integradas em práticas hoje condenáveis ou, pelo menos,
criticáveis.
Não
me refiro, evidentemente, aos erros crassos desses fanáticos quando atacam
figuras exemplares da nossa História, como foi o caso do padre António Vieira, ele
próprio mestiço e protector dos índios brasileiros contra a sua escravização
pelos colonos brasileiros, demonstração cabal da ignorância ou estupidez pura e
simples destas massas ignorantes.
E
que dizer da diabolização de um Gandhi, de um Winston Churchill?! Alguns
pecados – mesmo graves – apagam o seu papel luminoso na História da Humanidade,
um como exemplo de pacifismo militante, o outro por ter salvado o mundo do
monstro nazi?
Levando
ao extremo estes comportamentos iconoclásticos, porque não destruir as estátuas
dos faraós e dos reis do Egipto e da Mesopotâmia, dos governantes de Atenas e das
cidades-estados da Grécia Clássica, dos filósofos e políticos gregos e romanos,
quase todos eles racistas e utilizadores de escravos – não necessariamente
negros – muitos dos santos das Igrejas cristãs, e não vale a pena ir mais
longe, porque a dinamitação dos budas e de inúmeras estátuas de Palmira pelos
taliban são um excelente aviso do terreno instável em que tais criaturas se
situam.
O
desconhecimento dos contextos históricos não pouparia grandes figuras da nossa
História, a começar pelo Infante D. Henrique, que beneficiou do comércio de
escravos africanos, dos nossos primeiros reis que escravizaram muitos dos
muçulmanos vencidos na Reconquista cristã, em resposta, é bom lembrá-lo, à
anterior ocupação islâmica da Península Ibérica, não propriamente meiga para
com os cristãos…
E
ainda há quem deite o olho cobiçoso aos próprios edifícios construídos nessas
épocas, como a Torre de Belém (!!!), e outros que honram o património
português.
Tenho
como certo que esta apropriação de bandeiras equivocamente atribuídas à
extrema-esquerda não passa de uma provocação de neonazis e dos seus aliados do
Chega, como forma de revoltar toda a população contra a Esquerda, assim
conotada com os imbecis que lhes estão a dar tempo de antena.
Encarando
com objectividade esta quanto a mim falsa questão, a fúria iconoclasta a que
estamos assistir é demasiado parecida com a queima de milhares dos livros
perpetrada pelos nazis no início da ditadura de Hitler, com antecedentes
históricos tão “respeitáveis” como as várias destruições da Biblioteca de
Alexandria por fanáticos cristãos e muçulmanos, em épocas diferentes mas com
“argumentos” equivalentes…
No
entanto, reconheço que devem ser retiradas – não destruídas! – do espaço
público as imagens de figuras de proa do esclavagismo e do racismo, também associadas às maiores crueldades infligidas
aos povos colonizados. Ou de dirigentes políticos totalitários e seus lacaios,
como os nazis e os diversos governantes fascistas, sem esquecer os estalinistas.
Como
ir então ao encontro da necessidade que é real e urgente de as guardar
recatadamente, para memória futura, principalmente aquelas com evidente
qualidade artística?
Penso
que lhes poderão ser disponibilizadas áreas reservadas nos museus, desde que
devidamente contextualizadas historicamente. Pode ser um património marcado
pelo estigma do ódio – caso dos campos de concentração nazis – mas não pode ser
ignorado. E é muito educativo!
Não
é por acaso que neonazis já tentaram destruir alguns desses campos, como forma
de negar o Holocausto.
Agora,
se calhar, consideram-nos campos de férias ou complexos turísticos!
Essas
marcas materiais do inominável são fundamentais para que a Memória se mantenha
viva e vigilante e a História não se repita, como começa a acontecer!