sábado, 27 de junho de 2020



CONTEXTOS DO DIABO
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 25 de Junho de 2020

O tão necessário como urgente anti-racismo, finalmente na ordem do dia devido aos últimos e gravíssimos acontecimentos nos EUA, está paradoxalmente a dar espaço a um fanatismo absolutamente irracional que resolveu esquecer as lições da História, pior, resolveu ignorar a importância da História como testemunho de comportamentos condenáveis, assim fazendo esquecer aquilo que deveria ficar na memória da Humanidade, como lição, como exemplo a não seguir.
A destruição de estátuas de criminosos racistas e esclavagistas acaba por não apoiar a causa anti-racista, por um lado porque os vitimiza falsamente junto dos seus actuais apoiantes, por outro, devido à total ignorância dos fanáticos destruidores, que não sabendo identificar os comportamentos referentes a cada época, assim criminalizam figuras históricas notáveis que então se encontravam perfeitamente integradas em práticas hoje condenáveis ou, pelo menos, criticáveis.
Não me refiro, evidentemente, aos erros crassos desses fanáticos quando atacam figuras exemplares da nossa História, como foi o caso do padre António Vieira, ele próprio mestiço e protector dos índios brasileiros contra a sua escravização pelos colonos brasileiros, demonstração cabal da ignorância ou estupidez pura e simples destas massas ignorantes.
E que dizer da diabolização de um Gandhi, de um Winston Churchill?! Alguns pecados – mesmo graves – apagam o seu papel luminoso na História da Humanidade, um como exemplo de pacifismo militante, o outro por ter salvado o mundo do monstro nazi?
Levando ao extremo estes comportamentos iconoclásticos, porque não destruir as estátuas dos faraós e dos reis do Egipto e da Mesopotâmia, dos governantes de Atenas e das cidades-estados da Grécia Clássica, dos filósofos e políticos gregos e romanos, quase todos eles racistas e utilizadores de escravos – não necessariamente negros – muitos dos santos das Igrejas cristãs, e não vale a pena ir mais longe, porque a dinamitação dos budas e de inúmeras estátuas de Palmira pelos taliban são um excelente aviso do terreno instável em que tais criaturas se situam.
O desconhecimento dos contextos históricos não pouparia grandes figuras da nossa História, a começar pelo Infante D. Henrique, que beneficiou do comércio de escravos africanos, dos nossos primeiros reis que escravizaram muitos dos muçulmanos vencidos na Reconquista cristã, em resposta, é bom lembrá-lo, à anterior ocupação islâmica da Península Ibérica, não propriamente meiga para com os cristãos…
E ainda há quem deite o olho cobiçoso aos próprios edifícios construídos nessas épocas, como a Torre de Belém (!!!), e outros que honram o património português.
Tenho como certo que esta apropriação de bandeiras equivocamente atribuídas à extrema-esquerda não passa de uma provocação de neonazis e dos seus aliados do Chega, como forma de revoltar toda a população contra a Esquerda, assim conotada com os imbecis que lhes estão a dar tempo de antena.
Encarando com objectividade esta quanto a mim falsa questão, a fúria iconoclasta a que estamos assistir é demasiado parecida com a queima de milhares dos livros perpetrada pelos nazis no início da ditadura de Hitler, com antecedentes históricos tão “respeitáveis” como as várias destruições da Biblioteca de Alexandria por fanáticos cristãos e muçulmanos, em épocas diferentes mas com “argumentos” equivalentes…
No entanto, reconheço que devem ser retiradas – não destruídas! – do espaço público as imagens de figuras de proa do esclavagismo e do racismo, também  associadas às maiores crueldades infligidas aos povos colonizados. Ou de dirigentes políticos totalitários e seus lacaios, como os nazis e os diversos governantes fascistas, sem esquecer os estalinistas.
Como ir então ao encontro da necessidade que é real e urgente de as guardar recatadamente, para memória futura, principalmente aquelas com evidente qualidade artística?
Penso que lhes poderão ser disponibilizadas áreas reservadas nos museus, desde que devidamente contextualizadas historicamente. Pode ser um património marcado pelo estigma do ódio – caso dos campos de concentração nazis – mas não pode ser ignorado. E é muito educativo!
Não é por acaso que neonazis já tentaram destruir alguns desses campos, como forma de negar o Holocausto.
Agora, se calhar, consideram-nos campos de férias ou complexos turísticos!
Essas marcas materiais do inominável são fundamentais para que a Memória se mantenha viva e vigilante e a História não se repita, como começa a acontecer!

sábado, 6 de junho de 2020



VOLTAMOS À GRIPEZINHA?

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 4 de Junho de 2020

Parece que para um número inesperado de iluminados e face ao êxito, aliás reconhecido internacionalmente, da contenção do coronavírus em Portugal – até apesar do irresponsável relaxamento das medidas de confinamento por parte de muitos utentes do espaço público – surgiu o segundo momento de combate político da direita contra o governo…
Primeiro, as medidas tomadas tinham sido “tardias”, os erros e carências eram mais que muitas, e a crítica era apontada a alegados erros sucessivos do governo na gestão da pandemia, o mesmo governo que acabou por controlar em termos suportáveis a cavalgada mortífera, ao mesmo tempo que reformava o próprio espaço antes tão criticado do Serviço Nacional de Saúde e o reinventava, criando condições para uma nova eficácia.
Entretanto, em países bem identificados quanto à interpretação surrealista que os seus dirigentes faziam da pandemia, desde a “gripezinha” de Bolsonaro, à deriva mental de Trump e às suas “opiniões” tweetadas sem um pingo de suporte científico ou de vergonha, chegando a aconselhar a desinfecção humana com lixívia (!), às mortíferas hesitações de Boris Johnson, apenas superadas a partir da sua própria e pessoal infecção pelo vírus. Só nesse momento pareceu encarar a realidade, mas à custa de quantas vidas já perdidas!
Até então, a extrema-direita ressabiada com os êxitos das medidas sanitárias impostas pela Direcção Geral de Saúde, tentava a todo o custo encontrar argumentos com que demonstrar a “incompetência” do governo na luta contra a pandemia, mas sem pôr em causa a sua perigosidade.
Agora saem inesperadamente da sombra uma série de “especialistas” que assinam artigos nos media mais reaccionários e criticam o governo por ter tomado medidas, nãos apenas desnecessárias, mas lesivas da economia e da qualidade de vida dos portugueses, ao enfrentar a pandemia nos termos em que o fez!
Preso por ter cão e preso por não o ter!
Claro que a direita que se manifesta ruidosamente nas redes sociais e na imprensa diversifica as suas opiniões, desde os programas de televisão mais “soft”, como o “Sexta às Nove” da RTP 1, em que a “isenta” Sandra Felgueiras faz um “jornalismo de investigação” sem lugar para o contraditório, aos jornais de direita assumida que entram agora na deriva negacionista do vírus, que acabaremos por considerar ao nível da tal “gripezinha” tão acarinhada por Bolsonaro, o “dirigente” mais estúpido, ignorante e assumidamente fascista deste mundo!