sábado, 26 de setembro de 2020

 

MORTE E DESTRUIÇÃO NA ARTE OCIDENTAL
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 24 de Setembro de 2020
Nesta época de pandemia, que acorda em todos nós pavores muito antigos, poderá parecer demasiado mórbida e de mau gosto a revisitação de imagens artísticas que recordam os maiores pavores da Humanidade, literariamente representados na alegoria dos “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, símbolo da precariedade das vidas humanas, presas por um fio apesar dos inegáveis progressos das Ciências e do aparente domínio da Natureza pela Humanidade.
Na verdade, mórbido mais do que tudo, é o combustível diariamente alimentado pelos media, das páginas da imprensa escrita ou televisiva às redes sociais, buscando através do sensacionalismo mais elementar esse pequeno arrepio que faz vender.
Desde a Antiguidade mais remota, as “pestes”, epidemias com que os deuses castigavam os pobres mortais pelas mais pequenas faltas, se associaram a outras causas de morte colectiva, todas elas incontroláveis, não apenas devido ao estádio então primitivo da Medicina mas, acima de tudo, por obra e graça da própria acção humana, voluntariamente desencadeada como forma de domínio sobre outros seres humanos.
Sabemos pouco sobre os primórdios desses “medos”, mas desde o mito do Dilúvio, da caixa de Pandora e outros de origem mesopotâmica, comuns a muitas das civilizações mais antigas, a sua melhor representação literária reside nas páginas da Bíblia, no “Apocalipse de S. João”, em que quatro míticos cavaleiros desencadeiam todos os males da Terra antes do confronto final entre as forças celestiais e as demoníacas, com a necessária vitória daquelas.
O “happy end” do Apocalipse repercute-se em muitas das literaturas do Ocidente, especialmente na ficção norte-americana, embora não corresponda a uma tradição literária obrigatória, o que está patente nos grandes clássicos da Literatura, dos Gregos a Shakespeare.
O triunfo final de Deus – ou do Bem – não corresponde necessariamente ao triunfo dos humanos, mas há vitórias e vitórias, porque o “vilão” a abater é sempre o mesmo, Satanás, e ele acabará inexoravelmente sepultado nas entranhas da Terra, como aconteceu com os Gigantes e os Titãs da mitologia grega no seu frustrado assalto ao Olimpo.
Cada um dos quatro Cavaleiros” do Apocalipse corresponde a um dos grandes males que afligiam e continuam a afligir a Humanidade, e são sucessivamente representados, respectivamente, como a Peste – símbolo de todas as pandemias – cavaleiro branco armado com as flechas indutoras da doença, tal como o Apolo grego que o antecede na Mitologia clássica, a Morte, montada no seu cavalo amarelo esverdeado, símbolo da decomposição, a Fome com uma balança na mão, montada num cavalo negro, e a Guerra no seu corcel vermelho, armada com uma longa espada sangrenta, como é patente na famosa iluminura do “Apocalipse de Lorvão” de 1189.


A obra “mais clássica” representando os terríveis Cavaleiros é a de Albrecht Dürer, uma gravura de 1498, extraordinária de dinamismo, e bem longe do arcaísmo das representações medievais como a de Lorvão.


A representação desses velhos terrores tem a sua expressão mais famosa nas “Tentações de Santo Antão” de Hieronimus Bosch, de c. 1500, tríptico exposto em Lisboa no Museu Nacional de Arte Antiga, em que um mundo infestado de demónios cerca o santo em oração, sendo o céu atravessado pela imagem infernal de estranhos veículos voadores tripulados por seres hediondos, num ambiente de pesadelo em que figuras bizarras antecipam imagens já do século XX, de um surrealismo avant la lettre.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020



OS TRABALHADORES E O POVO

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 3 de Setembro de 2020

A insistência na contestação do uso das máscaras de protecção anti- coronavírus por parte de organizações diversas tanto de direita como de esquerda, um pouco por todo o mundo, é um péssimo sintoma de um pensamento retorcido que não só assume contornos no mínimo suicidários, como inscreve tais raciocínios dentro das mais absurdas teorias da conspiração.
Afirmar-se a “sujeição” à “ditadura da máscara” como uma inaceitável limitação da liberdade parece tão ilógico como o seria defender a abolição dos cintos de segurança nos automóveis ou a liberdade de usar o telemóvel na estrada, ou outros disparates que não apenas conspirariam contra a própria segurança dos seus defensores – o que seria o menor dos males, pois cada um deve ser responsável pelos riscos que assuma correr – mas principalmente das inocentes vítimas dessa criminosa imprudência, no limite vitimadora da sua própria família.
Esta argumentação tem sido abundantemente defendida nas próprias redes sociais, elas habitualmente tão avessas à simples lógica, mas neste caso exemplar, um número crescente de defensores se ergue nas grandes praças deste mundo, assumindo orgulhosa e estupidamente, a sua recusa das mínimas condições de segurança!
Dir-se-ia que esta manifestação de arrojo, de “coragem”, felizmente de uma ainda minoria, configura uma espécie de afirmação dos últimos suspiros de uma espécie condenada à extinção, nós próprios...
Talvez a tão sábia como cega Natureza que tão agredida tem sido, se apreste a conceder à espécie humana a misericórdia da sua limitação aos recursos que tão depauperados têm sido e não permitem alimentar as massas crescentes de famintos que invadem as nossas cidades e as rotas de fuga dos grandes conflitos que ensanguentam um número crescente de países.
Claro que são os pobres as suas principais vítimas, que os ricos estão bem protegidos por detrás dos muros que construíram nas fronteiras da fome, piedosamente escondidas pela nova geração de ditadores de que são vanguarda os Trumps deste mundo.
E enquanto se erguem as vozes cada vez menos tímidas dos inimigos do confinamento, eles próprios ignoram ostensivamente os perigos derivados da sua recusa, quando organizam espectáculos de massas ao arrepio de toda a prudência, preferindo preencher a sua agenda política, como se as suas festas, tanto a nível oficial como privado não oferecessem os perigos que enxergam nas actividades da concorrência!
Conteúdos diferentes e pseudo inócuos têm os desportos de massas, os bárbaros espectáculos de toiros, festas religiosas e muitas das manifestações políticas colectivas, de que é triste exemplo a Festa do Avante, que arvoram à categoria de virtude cívica, ou tradicional, ou outra coisa qualquer, a manutenção dessas actividades, como se elas representassem algo mais do que a sua simples manifestação de força, confundindo-a demagogicamente com a própria salvação da Democracia!
Esse mimetismo artificial entre grandes manifestações de massas e a defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo, é um mal disfarçado alibi para excepcionalizar comportamentos de risco
A própria comparação, em pé de igualdade, entre as comemorações do 25 de Abril ou do 1º de Maio, com a Festa do Avante é, no mínimo, altamente tendenciosa e abusiva.
A diferença entre elas é não só de dimensão e de significado, sendo o 1º de Maio de nível planetário e o 25 de Abril a grande Festa portuguesa da Liberdade, não sendo nenhuma delas limitada aos interesses de qualquer Partido, Movimento, interesse particular ou momento político e social.
Isso não implica, obviamente, as necessárias cautelas nos comportamentos de risco. Apostamos nisso as nossas próprias vidas.
A nossa Democracia tem cometido erros, mas o menor não será decerto escamotear a realidade. E a realidade é fundamental para se enfrentar os graves problemas da Humanidade.