sábado, 12 de dezembro de 2020

 

IDENTIFICAÇÃO DE UMA ESTÁTUA DE TOMAR

 “O Templário”, 20 de Dezembro de 2020

Carlos Rodarte Veloso 

Uma estátua pétrea arrumada num canto do Claustro da Lavagem do Convento de Cristo tem episodicamente atraído a atenção de alguns arqueólogos, historiadores de Arte e tomarenses interessados nas antiguidades da Cidade. 

Dessa estátua se ocuparam a arqueóloga, Doutora Salete da Ponte [Algumas considerações sobre Tomar Romana ‘Selium’”, Boletim Cultural e informativo da Câmara Municipal de Tomar, Nº 4, 20 de Outubro de 1982, pp. 164 e 173] e eu próprio [“Duas Estátuas de Tomar? – Problemas Iconográficos em torno da estátua mutilada do Claustro da Lavagem do Convento de Cristo, ou duas estátuas de Tomar?”, comunicação ao Seminário: Espaço Rural da Lusitânia, Tomar e o seu Território, 1989], há portanto, respectivamente, 38 e 31 anos.

Perdida a memória desse pequeno debate – 31 anos é muito tempo, principalmente quando a documentação é escassa ou contraditória, entendi republicar o meu artigo, que teve então o apoio da referida arqueóloga Salete da Ponte – assim corrigindo o seu próprio ponto de vista, que a considerava romana – do Arquitecto Cornélio da Silva e do então Conservador do Convento de Cristo, Arquitecto Álvaro Barbosa e do seu excelente colaborador, o Sr. Rui Ferreira e do Dr. António Martiniano Ventura, cujas fotografias ilustram o presente artigo.

De facto, a Doutora Salete da Ponte classificou inicialmente a dita estátua como uma “estátua couraçada romana” já então designada entre o pessoal do Convento como S. Cristóvão.

A informação do poeta inglês Robert Southey, que visitou Tomar em 1801, referia uma estátua colocada numa das extremidades da Ponte Velha, “estátua tão desgastada pelo tempo, que a tosca aparência da criança que está nos seus braços seria insuficiente para identificá-la com S. Cristóvão, sem a ajuda da tradição”. Diz ainda: “as pernas estão esburacadas sem piedade – porque se considera que alguns grãos da perna de S. Cristóvão, tomados num copo de água, são um remédio excelente para as sezões” [Robert Southey, Diário de uma estadia em Portugal, Oxford, 1960, pp. 30-32], o que corresponde inteiramente às características da enigmática estátua.

Já o Dr. João Maria de Sousa [Notícia Descriptiva e História da Cidade de Tomar, 1903, pp. 13-14] se refere ao alargamento da faixa de rodagem da Ponte Velha, altura em que uma estátua de Stº. Estevão (sic) aí existente no lado sul, fora retirada “não sabemos para onde”. Essa estátua era, apesar da diferente denominação, a mesma do Claustro da Lavagem, que nada mais apresenta do que o tronco e as pernas, fortemente erodidas, a ponto de o joelho direito, originariamente flectido, ter totalmente desaparecido.

Quanto à data do “desaparecimento” da estátua da Ponte Velha, é difícil determiná-la, visto ter havido várias reparações daquela ponte. Teria havido uma em 1885, ou pouco depois, visto serem dessa altura “obras de reparação da ponte sobre o Rio Nabão”.

No entanto e segundo Amorim Rosa [Anais do Município de Tomar: 1870-1900, Tomar, 1967, pp. 238], parece mais provável ter-se verificado essa remoção em 1901, aquando do alargamento da faixa de rodagem, sendo “alargamento” e não “reparação” a que o Dr. Sousa se refere.

Sobre a origem da estátua, é ainda Amorim Rosa quem nos esclarece: “Conjuntamente com a grande reparação de moinhos e lagares da Ribeira da Vila, mandou D. João V reparar a Ponte de D. Manuel. Construíram-se guardas e pôs-se nela um S. Cristóvão em tamanho natural, voltado a Sul, logo à entrada, vindo de Além Ponte” [História de Tomar, Tomo II, Santarém, 1982, pp. 55-56], cuja “raspagem das pernas” é corroborada por Ignácio de Vilhena Barbosa [As cidades e villas da monarchia portugueza, que têm brasão d armas, Tomo III, Lisboa, 1982, pp.77].

Assim, parece comprovado, à luz da informação recolhida, que esta estátua é a mesma hoje existente no Claustro da Lavagem e, fotografada por Vieira Guimarães [Thomar – Stª Iria, Lisboa, 1927, pp. 77] instalada então, próximo da arruinada Ponte das Ferrarias e da capela de S. Lourenço. Era já essa a sua localização em 1903, quando o Dr. Sousa a refere como a estátua “de Henrique de Quental” (sic), situada perto da Ponte das Ferrarias que, e passo a citar, “ainda hoje lá se vê, já decapitada” [Sousa, ob.cit., p.87]. Esta informação, colhida de Pinho Leal, transcreve erradamente “Henrique” por “Aires de Quental”, “cuja estátua,” no dizer deste autor, “ se vê junto da ermida de S. Lourenço [LEAL, Augusto de Pinho, “Nabão”, Portugal Antigo e moderno, Tomo VI, Lisboa, 1875, p.10]. Foi Aires de Quental, feitor-mor de D. Manuel I e de D. João III, quem fez erigir esta Ermida, no local de encontro das tropas de D. João I com as de Nuno Álvares Pereira, a caminho de Aljubarrota, no dia de S. Lourenço, 10 de Agosto de 1385. Quanto a tratar-se da estátua do feitor-mor, considero-a absurda. De momento interessa-nos que, para além de estátua da Ponte Velha, aí instalada, pelo menos até 1885, mais provavelmente até 1901, um texto publicado em 1875 refere uma estátua que sabemos ser a do Claustro da Lavagem. Teriam existido, assim, duas estátuas, de uma das quais se teria perdido o rasto entre 1885 e 1901, coisa muito improvável!

Será apenas coincidência o facto de ambas as esculturas terem as pernas impiedosamente raspadas e serem ambas de tamanho natural? E a referência do Dr. Sousa, em que insisto, sobre as pernas de “Stº Estevão” só poderem sustentar o tronco, sendo tronco apenas o que é sustentado pelas da “outra” (?) estátua?


Procurei assim documentação que sustentasse o transporte da estátua que nos resta, decerto a única que alguma vez existiu, para o local onde hoje se encontra, no Claustro da Lavagem do Convento de Cristo. Sendo a mesma propriedade da União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo, de que Vieira Guimarães foi membro e também Presidente, busquei nos seus Anais registo dessa transferência, a qual, penso, se deve ter efectuado pouco depois de 1927, data da publicação dos mesmos Anais, e período muito rico no envio de esculturas para o museu da mesma União, instalado no Convento. No entanto, a grande indefinição da maioria dos registos, não permite identificar a estátua em causa.

Aparentemente esgotadas as fontes escritas que poderiam esclarecer o caso, restava o regresso ao documento por excelência, a própria estátua mutilada, tão fria como muda…

No seu calcário erodido, a estátua decapitada mede 1,56 m de altura e veste saial e manto, caído pelas costas, abundantemente pregueado sobre o ombro direito; do manto caem pregas largas e muito lineares, pelas costas, embutindo a sua extremidade na base da estátua, como suporte adicional. A forte erosão sofrida impede o reconhecimento de quaisquer pormenores, excepto do cinto, perfeitamente visível.

Mas o “chão” em que assente a estátua revela algumas surpresas: de facto, a superfície em que estão embutidos os tornozelos é ondulada por sulcos perfeitamente paralelos, de forma alguma atribuíveis à erosão ou a factores estranhos à vontade do artista. Esse ondulado avoluma-se, destacando-se dessa superfície, no extremo à direita da escultura, formando uma quase espiral

Não parece haver dúvidas da intenção do escultor de representar uma personagem com os pés mergulhados numa corrente líquida, formando-se um redemoinho à sua direita, acidente que apresenta uma rugosidade, aparente vestígio de fractura na zona central.

Na zona superior da estátua detecta-se uma razoável cavidade ovalada, com cerca de 14 por 9 cm imediatamente abaixo do ombro. O que resta do braço direito, mutilado acima do cotovelo, sugere, pela disposição das pregas da manga, que aquele membro estaria flectido, com a mão a uma altura aproximada da referida cavidade.

Nada mais havendo de relevante a assinalar, foi encarada, pela Doutora Salete da Ponte, a hipótese de se tratar mesmo de uma estátua romana do tipo militar, abundante na Península Ibérica, designada por “thoracata” ou “couraçada”. Da sua comparação com exemplares publicados por Paloma Acuña Fernandez [Esculturas militares romanas de España y Portugal. – I - Las esculturas Thoracatas, Roma, 1975], verificou-se, numa primeira impressão, um aparente paralelismo de atitudes mas, na realidade, há um maior dinamismo no exemplar em estudo: a sua perna direita está flectida, como vimos, e só a ausência de joelho a faz parecer erecta; na verdade há uma forte sugestão de marcha. O braço direito, vestido, não corresponde também ao colobium, camisa de manga curta ou sem manga, geralmente com correia de couro sobreposta.

Quanto à indispensável couraça, não se lhe distingue nenhum traço. Parece pois de excluir a possibilidade de estarmos perante uma thoracata.

De tudo quanto foi dito, parece poder-se concluir que a estátua apresenta uma postura de marcha estando os pés mergulhados num curso de água, e o braço direito, de que apenas resta o antebraço quase completo, bem flectido, empunhando talvez um bordão.



Esta caracterização corresponde exactamente a alguns aspectos da iconografia de S. Cristóvão: o gigantesco santo atravessando a vau, apoiado no seu bordão, com o Menino no outro ombro, [RÉAU, Louis, Iconographie de Chrétien, T. III, Paris, 1959, p. 1486-1487] elemento esse agora perdido, quem sabe se reaproveitado parcialmente para outra escultura ou, muito simplesmente, caído ao rio.

Sendo de excluir, por absurdo, tratar-se da representação de Aires de Quental, estaríamos perante duas estátuas, ambas paradoxalmente de S. Cristóvão, ambas nas margens do mesmo rio, a uma distância de cerca de 2 km uma da outra, ambas com as pernas raspadas… Devo confessar que é muito difícil aceitar tantas coincidências: o S. Cristóvão visto por Southey em 1801, transportando o Menino, o qual lhe parece quase irreconhecível, e que o Dr. Sousa, em 1903, “baptiza” de Santo Estevão, de muito diferente iconografia, são uma e a mesma coisa. A confusão de nomes parece-me irrelevante num Autor que troca os nomes de Aires por Henriques de Quental… É ainda deste Autor a referência à estátua da Ponte Velha como apenas um “tronco”, quando aceita como boa a informação de Pinho Leal, em como a estátua “das Ferrarias” seria a de Aires de Quental, funcionário real quinhentista… Ele não viu, nem poderia ver, a estátua na Ponte Velha, mas viu-a nas Ferrarias!

Ficamos assim reduzidos às contradições de dois Autores, ou melhor, de um apenas, visto que as de um derivam da aceitação das do outro… Estão elas na declaração de Pinho Leal, já referida, da existência da estátua nas Ferrarias, quando sabemos estar “a outra” – na verdade a mesma! – simultaneamente na Ponte Velha , e que na zona das Ferrarias existem outros elementos ligados a Aires de Quental, o que poderá ter conduzido Pinho Leal a lapso, já que a sua obra é de tal modo abrangente, que muito dificilmente terá tido  acesso presencial a grande parte do seus testemunhos, antes obtidos por informações de terceiros.

 CONCLUSÕES 

Teríamos então uma única estátua de S. Cristóvão, trazida para Tomar cerca de 1710, imagem barroca em dimensões naturais, com o santo atravessando vigorosamente a vau, bordão na mão direita, trazendo, apoiado na esquerda, o Menino. A erosão natural e a proveniente da superstição adelgaçaram-lhe as pernas, mas Southey pôde vê-la ainda suficientemente intacta para identificar a sua iconografia [VELOSO, Carlos, Tomar Setecentista na obra de viajantes estrangeiros, História, Arte, Indústria, Centro de Estudos de Arte e Arqueologia, Outubro de 1988, p. 35].

Os “melhoramentos” introduzidos na ponte, aquando do seu alargamento teria sido testemunhado por turistas ingleses, já do início do século XX, A.C. e Stanley Inchbold [Lisbon and Cintra: with some account of other cities and historical sites in Portugal, London, 1907, p. 185]. Nessa altura já a estátua se devia encontrar mutilada pois, como vimos, o Dr. Sousa já se lhe refere como “um tronco”.

Esta ideia remete-nos para os actos de vandalismo praticados no País, especialmente em Tomar, tropas napoleónicas, mas também pelos nossos aliados britânicos, em 1808 e 1810…

Assim, desde 1903 até data pouco posterior a 1927, a estátua estaria situada no topo sul da muralha sebástica, às Ferrarias, num eterno deambular, até ser “arrumada” pela UAMOC no Claustro da Lavagem, onde hoje ainda se encontra, decerto esperando a limpeza e conservação que decerto merece, depois de tanto sofrer…

Termino, vincando a relatividade destas conclusões, com algumas pontas irremediavelmente soltas, apesar de o S. Cristóvão ter estado sempre associado ao Rio Nabão, símbolo eterno da travessia, que ele próprio simboliza.

 

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