domingo, 26 de outubro de 2014

O Templário, 23-10-2014

O Património do nosso descontentamento

A lógica do poder não se aplica apenas em termos sociais, através do domínio de classes sobre outras classes, por outras palavras, dos ricos sobre os pobres, mas também através da aplicação dos hábitos de rapina dos países mais poderosos sobre os menos poderosos. Aliás essa exteriorização imperialista acaba por se reflectir no saque do património histórico e artístico dos dominados pelos dominadores.
Essa violência exercida sob os mais falsos pretextos levou a uma acumulação imoral de obras de arte extremamente significativas de culturas antigas nos grandes centros do poder das potências que as submergiram através do seu poderio militar ou económico.
Este domínio que “justifica” o roubo de tantas e tantas preciosidades, explica a riqueza do espólio dos grandes museus do mundo, tais como o British Museum, o Louvre, ou o Museu Egípcio e Pergamon de Berlim, isto para apenas citar alguns exemplos.
De facto, muitos dos bens culturais que ornamentam esses grandes museus foram pilhados sem piedade, muitas vezes com a conivência entusiástica das autoridades locais e a colaboração das próprias populações. Pela força, pelo dinheiro ou por interpretações dúbias da legislação, que não tinha ainda reconhecido a importância desse património, nem sequer o reconhecia como parte da identidade cultural.
Os frisos do Parténon, esculpidos por Fídias, foram serrados do grande templo de Atenas e transportados para Londres, por iniciativa do embaixador Lord Elgin, onde 160 metros dessa obra prima podem ser admirados no Museu Britânico. Os restos do friso, desprezados pelo diplomata, foi o que restou ao povo a que pertenciam.
O busto de Nefertiti, a esposa do faraó Aquenaton, obra-prima da escultura egípcia e mundial, pertence hoje ao museu Egípcio de Berlim, enquanto o Altar de Pérgamo, antiga colónia grega da Ásia Menor – hoje Turquia – está exposto, a par da Porta de Ishtar da famosa cidade de Babilónia – no actual Iraque – no Museu Pergamon também em Berlim.
No Louvre podemos admirar uma das estátuas mais famosas do mundo, a Afrodite de Milo, trazida daquela ilha grega, e o famoso Código de Hamurábi, da antiga Babilónia, enquanto no centro da Praça da Concórdia, também em Paris, está erigido um dos dois obeliscos que ornavam a entrada do templo egípcio de Luxor.
Durante as invasões francesas em Portugal, além das terríveis destruições efectuadas pelos soldados invasores em obras de arte diversas, como os túmulos reais de Alcobaça e da Batalha, em busca de tesouros imaginários, muito património foi roubado e transportado para França com a conivência dos nosso aliados britânicos... É muito provavelmente o caso do manuscrito da Crónica da Guiné, de Gomes Eanes da Azurara, mais tarde encontrado na Biblioteca Nacional de Paris.
Estes pequenos mas importantes exemplos dizem apenas respeito à apropriação  por países estrangeiros de património de países dominados em determinado momento da sua história. Mas também os grandes centros de cada país procederam e procedem de igual forma relativamente ao património das cidades e vilas da “província”, como acontece neste nosso Portugal.
Veja-se as obras expostas no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa: aí se encontra o quadro Martírio de S. Sebastião, de Gregório Lopes, encontrando-se no seu local original, a Charola do Convento de Cristo, uma cópia do mesmo. E o mesmo irá decerto acontecer com A Última Ceia, do mesmo autor, agora exposta no Museu Diocesano de Santarém, se não for cumprida a promessa de o mesmo ser devolvido no prazo de um ano ao local de onde foi abusivamente tirado, a Igreja de S. João Baptista... Isso depende inteiramente da vontade dos tomarenses, que deverão exigir o seu cumprimento.
Os argumentos que “justificam” os diversos saques, desde as melhores condições oferecidas para a conservação do património, ao investimento feito no seu restauro ou exposição ou, até, apoiados em legislação ultrapassada, são argumentos que não passam de desculpas de mau pagador, estribadas numa arrogância cultural a que não mais nos podemos resignar.

Carlos Rodarte Veloso

domingo, 19 de outubro de 2014

O Templário, 16-10-2014
 
Lições da História
A ausência de memória histórica marca perigosamente o pensamento político deste século ainda verde. Vive-se hoje o “aqui e agora” como a única realidade existente para a classe política, enquanto tudo o mais é vertido no caixote do lixo de um passado de cuja existência se parece duvidar.
Temos assistido ao retorno sistemático de soluções que noutro tempo se revelaram, não apenas erradas mas, por vezes, catastróficas. Parece que os (maus) exemplos de um passado nem por isso muito distante apenas serve para ornamentar as páginas dos livros de História, agora apenas úteis ao exibicionismo social de uns quantos snobes.
O liberalismo, não o político, entendido “à americana” – para os nossos vizinhos transatlânticos um sinónimo de “esquerda” - , mas o velho liberalismo económico da 1ª Revolução Industrial, é um desses casos. Criador de riqueza para os seus promotores, foi um terrível factor de opressão e de miséria para as classes trabalhadoras que, apenas com a sua luta e sua trágica participação em duas guerras mundiais, várias revoluções e muitos outros conflitos regionais, conseguiram ganhar reconhecimento e alguma justiça social. Esse facto foi de tal forma reconhecido, especialmente depois da terrível crise económica de 1929 e da sua superação pelo “New Deal” de Franklin Roosevelt, que durante anos o desacreditado liberalismo económico ficou praticamente esquecido sob o entulho das desgraças acontecidas.
Assim nasceu o “Estado Social” com as inúmeras reformas que, ao beneficiarem os trabalhadores, beneficiaram igualmente a sociedade no seu todo, insuflando-lhe vida e dinamismo e repartindo minimamente a riqueza global. A difusão desse benefício por um número crescente de países, trazia a esperança num mundo melhor.
Mas os antigos privilegiados que, nunca deixando e o ser, aspiravam a um controlo total do mundo, serviram-se das dificuldades de gestão de uma demografia explosiva, associada ao aumento da longevidade das populações e ao desaparecimento do Bloco de Leste que, apesar das terríveis contradições que encerrava, parecia equilibrar a situação a nível mundial. Ao invés de verem nessa situação um desafio para, através de uma mais inteligente gestão dos recursos, se conseguir uma mais igualitária distribuição da riqueza, procuraram, pelo contrário, ressuscitar o liberalismo económico, agora crismado de neoliberalismo, sofisticadamente servido pelo anteriormente execrado controlo estatal.
Pode dizer-se que as lições da História que comprovavam a falência do liberalismo económico foram de todo esquecidas, e as soluções encontradas pelas classes dominantes apenas agravaram as novas crises que depois foram surgindo em série, confiscando de forma imparável o que ainda restasse do moribundo Estado Social. 
É essa a realidade desta distopia em que o mundo se está a converter: o alargamento e aprofundamento do fosso entre os muito ricos e a massa cada vez mais imensa dos pobres. Esse fosso torna-se abismo e mais do que a uma diferenciação de classes, parecemos assistir antes a uma diferenciação de espécies biológicas. Parece que a ficção da Máquina do Tempo de H. J. Wells, com a espécie humana dividida entre Morlocks e Elois, os predadores e as suas presas, se concretizará num futuro não muito distante... A não ser que retomemos de vez o curso interrompido da marcha da Humanidade a caminho do Futuro.

Carlos Rodarte Veloso
O Templário, 2-10-2014
 
Descrédito e descaramento
A única palavra correcta e excessivamente bem-educada para o que hoje se passa neste governo que nos “governa” só pode ser descrédito. Quando vemos uma ministra da Justiça e um ministro da Educação a pedirem desculpas pelos erros crassos e o caos com que as suas acções afectaram a vida de milhares de Portugueses e, passados dias, tudo continuar na mesma, sentindo-se os altos responsáveis desobrigados de corrigirem rapidamente esses erros pelo simples facto de se terem desculpado, há outra palavra: descaramento!
E o que faz, entretanto, o mais alto responsável desse governo? Enrola-se em meias-tintas sobre a declaração de rendimentos que deveria ter entregue após o término do seu mandato como deputado. As dúvidas publicamente levantadas sobre uma possível acumulação do seu vencimento parlamentar com rendimentos provenientes de uma empresa particular perturbam claramente a sua olímpica arrogância perante quaisquer críticas: primeiro não se lembra e remete para a Assembleia da República o esclarecimento do caso, mas uma semana depois já tem a certeza de que nada recebeu dessa empresa, apenas o reembolso das respectivas despesas de representação (viagens, almoços, coisas dessas)... mas recusa-se a dizer qual a importância desses reembolsos ou a prescindir do seu sigilo bancário, para “não fazer o striptease dos seus rendimentos”...
Resta a hipótese improvável de o então deputado ter assim revelado o seu espírito altruísta ao trabalhar apenas “para aquecer”. As suas auto-declaradas mediania e ausência de ambição material empurram-no mais ainda para o paralelismo que parece cultivar desde o primeiro dia, até pela sua imagem de marca, com o velho senhor que governou Portugal ao longo de quarenta anos.
Poderíamos dizer que o governo está a entrar numa fase má, em que as coisas têm corrido mal, coitados! O pior é que os factos agora trazidos a público, o reconhecimento – finalmente! – de erros e a fragilidade da memória de Passos Coelho, são apenas a ponta de um gigantesco icebergue que está destruir o nosso país com a mais completa impunidade dos seus agentes. Mais cedo ou mais tarde, os sintomas zelosamente escondidos ao longo deste últimos anos, viriam ao de cima.
O Ensino, a Justiça e a Saúde, os maiores bens incrementados pelo 25 de Abril, estão a ser sistemática e cruelmente destruídos por estes autênticos agentes de interesses que vão muito para além daquilo que tróicas, banca, mercados e tudo o que nos tem oprimido lhes têm exigido. Por isso, não são as desculpas oportunistas de algumas figuras que excederam largamente a sua reserva de incompetência, ou as trapalhadas de um primeiro ministro bem menos cumpridor do que a sua máscara deixava transparecer, que vão modificar seja o que for no hediondo estado a que as coisas chegaram no nosso país.
Apenas o tão esperançosamente aguardado resultado das Primárias do PS alimentava ainda alguma esperança de uma reviravolta política que devolvesse ao nosso povo a capacidade de voltar a ter uma palavra a dizer sobre o seu futuro. E esse resultado excedeu todas as expectativas: um país inteiro veio trazer um ar de Abril a este Outono invernal, infernal. É a esperança o último dos bens, e dela nos vamos alimentar até que os resultados de um acto eleitoral que, adivinha-se, será muito, muito participado, comece a corrigir os muitos males de três anos de desgraça. Não de repente, porque os males são demasiados.
A unidade da Esquerda seria a cereja em cima do bolo, mas esse desígnio, historicamente tão difícil, revelou já alguns obstáculos, quando Jerónimo de Sousa, com o seu ar de profeta do Antigo Testamento, considera estas Primárias uma farsa! Qual Noé antes do Dilúvio, do alto da sua arrogância das certezas absolutas, continua a viver o sonho de alvoradas radiosas, orgulhosamente só, como o Outro. E como Passos Coelho!

Carlos Rodarte Veloso