O MEU 25 DE ABRIL
Uma semana prodigiosa
Publicado em O Templário, 20-4-2015
Poucos dos que ouviram na rádio, na véspera e
na madrugada de 25 de Abril de 1974,
as canções “E Depois do Adeus” e
“Grândola Vila Morena” poderiam sequer sonhar que era desta forma desencadeado
o Movimento das Forças Armadas que na manhã seguinte derrubaria 48 anos
de ditadura. Paulo de Carvalho e José Afonso entravam assim, a cantar, numa das
páginas mais brilhantes da nossa História.
Em Coimbra, na periferia da
Revolução, dizia uma mulher, no talho, às primeiras horas da manhã: – Houve qualquer coisa em Lisboa, mas não se
preocupem; não é nada connosco! – Era sempre assim, havia quase meio século. Nada
de importante poderia passar-se que tivesse alguma coisa a ver com o bom povo
português. Era sempre com “Eles”, essa entidade abstracta, que ainda hoje é
invocada a propósito de tudo.
Mas nesse dia, foi diferente.
Mesmo na distante Coimbra se ouvia o rolar dos carros de combate nas ruas dessa
Lisboa, agora acordada para a inesperada Descoberta da Liberdade. Dessa Lisboa
de outras Descobertas, em que o cheiro a marezia se misturava agora com o
perfume dos cravos rubros, plantados no mais inesperado dos cálices, o das
espingardas; e o bom povo, aconselhado a manter-se na improvável segurança das
suas casas, vitoriava em delírio a madrugada clara em que o medo foi banido das
ruas e das mentes.
Em Coimbra vivia-se, nos quartéis
, em primeira mão, os efeitos daquela derrocada que já se vinha anunciando
meses antes, mas se antecipava às maiores esperanças. O Estado Novo ruía sob o
peso da própria monstruosidade e nem os esbirros da PIDE/DGS, nem as forças
ainda leais ao Regime, conseguiram deter a maré nascida nas picadas africanas,
nas universidades e nos quartéis que
tinham sido, nas últimas décadas o seu
principal sustentáculo.
No Quartel General, mesmo em
frente da sede da PIDE de Coimbra, olhávamos, impotentes, para as janelas
fechadas das instalações, enquanto os torcionários, seguros da sua impunidade,
iniciavam a destruição dos arquivos incriminatórios
dos seus crimes; nessa Coimbra que acarinhara as revoltas estudantis, cujas
ruas tinham sido tingidas tantas vezes pelo sangue de manifestantes e de povo
anónimo, nós, militares e armados, éramos obrigados a esperar pacientemente as
directivas do Movimento e a não intervir excepto em caso de agressão eminente!
Em frente, agrupavam-se cada vez
mais populares, enquanto os nossos soldados eram aclamados e incitados a
intervir, a meter detrás das grades aqueles que tanto mal tinham feito.
Aqui só mais tarde surgiram os
cravos, mas a fruta madura dos jardins próximos era trazida pelos próprios
moradores aos nossos militares, enquanto a maré de gente engrossava a ponto de
se temer uma reacção violenta por parte dos agentes agora cercados por civis.
Sabíamos que a situação evoluía de
forma muito positiva em Lisboa e o noticiário da noite confirmou-o
superlativamente.
No gabinete do oficial de dia, onde
havia um aparelho de televisão, confraternizavam todos os militares da
guarnição, enquanto se organizava o pessoal armado para acudir a qualquer
situação inesperada, nomeadamente por parte dos oficiais do Estado Maior, até
aí invisíveis.
E aconteceu o inesperado: o chefe
do Estado Maior e outros oficiais superiores apareceram de súbito e vieram apertar-se,
humildemente, em frente do televisor, partilhando assim com subalternos e
praças o exíguo espaço em que se desenrolava a reportagem mais desejada e mais
inesperada de quantas tive ocasião de ver: um Golpe de Estado convertido em
Revolução, a maré viva de um Povo que se reeencontrava consigo próprio; o cerco
do Quartel do Carmo, a mistura impossível de populares com armas pesadas e o
milagre de nem um tiro manchar de sangue aquele cenário. E a prisão dos
ex-governantes, a cereja em cima do bolo.
Sabemos hoje que forças externas,
de conluio com algumas figuras aparentemente insuspeitas que apoiavam o
Movimento, conspiravam para imprimir
diferentes desenvolvimentos aos acontecimentos. Nem a libertação dos presos
políticos, nem a dissolução da PIDE/DGS ou das inúmeros instituições
corporativas do regime, nem o direito à greve, nem o fim da guerra colonial...
Seria a manutenção de uma espécie de democracia, apenas um pouco melhor que a
“democracia orgânica” de Salazar!
E contudo, contra ventos e marés,
com ou sem esquadra norte-americana no Tejo, com ou sem o beneplácito dos
grandes do Mundo, com ou sem a benção papal ou do generalíssimo Franco, a
Revolução conquistou o coração dos Portugueses e eles viveram um momento épico
da sua História.
Os dias seguintes foram o
concretizar do sonho de um País livre. No 1º de Maio, quando mais de um milhão
de manifestantes desfilava em Lisboa, na pequena Coimbra cerca de quarenta mil
pessoas davam largas a uma alegria que fez dessa semana um dos períodos mais
prodigiosos do nosso século XX.
Bem podem dizer, os eternos
inimigos do 25 de Abril, que as expectativas ficaram aquém do desejado. Mas,
para o bem e para o mal, as escolhas têm sido do povo português. E a isso
chama-se Democracia.
Carlos Rodarte Veloso
crodarteveloso@gmail.com
Artigo de uma grande honestidade intelectual. Descreve os factos com muito rigor histórico.
ResponderEliminar