sábado, 27 de junho de 2015


Mitos urbanos

Publicado em “O Templário” de 25 de Junho de 2015

 É um verdadeiro lugar-comum dizer que os políticos mentem. Creio que não há profissão no mundo mais exposta a esse tipo de acusação, infelizmente com sobejas razões. Já é menos vulgar que esses mesmos indivíduos sejam descarados ao ponto de contradizer anteriores declarações registadas nos media, agora perante uma assembleia de outros políticos – e do país em peso – que são testemunhas presenciais ou em diferido, das ditas, agora desditas declarações...
E, no entanto, foi o que se passou com o nosso primeiro-ministro durante uma muito recente sessão da Assembleia da República.
Vem ele agora declarar que o seu convite aos jovens desempregados para emigrar não passa de uma invenção, de um “mito urbano”, dos muitos com que tem sido mimoseado pela pérfida Oposição.
Releio as diversas declarações, dele e de colaboradores seus, e a ideia que me fica é de que Passos Coelho tenta, literalmente, atirar areia para os olhos dos seus potenciais eleitores.
Se não, vejamos: na sua entrevista de Dezembro de 2011 ao Correio da Manhã, ele aconselha a emigração aos professores desempregados, como forma de evitar o desemprego. E cito: "Angola, mas não só Angola, o Brasil também, tem uma grande necessidade ao nível do ensino básico e do ensino secundário de mão de obra qualificada e de professores. Sabemos que há muitos professores em Portugal que não têm nesta altura ocupação e o próprio sistema privado não consegue ter oferta para todos. Nos próximos anos haverá muita gente em Portugal que ou consegue nessa área fazer formação e estar disponível para outras áreas ou querendo-se manter, sobretudo como professores, podem olhar para todo o mercado de língua portuguesa e encontrar aí uma alternativa"
Que não é uma declaração desligada do contexto, provam-no declarações no mesmo sentido, proferidas nos meses anteriores por Alexandre Mestre, secretário de Estado da Juventude e Desporto e por Miguel Relvas, seu ministro adjunto dos Assuntos Parlamentares, amigo e homem de confiança.
Alexandre Mestre, numa deslocação ao Brasil, convidava os jovens portugueses desempregados, a emigrar, e cito, da agência Lusa: “Se estamos no desemprego, temos que sair da zona de conforto e ir para além das nossas fronteiras”. Miguel Relvas reitera em 16 de Novembro tais declarações perante a  Assembleia da República, como forma de encontrar oportunidades, “fortalecer a formação” e “conhecer outras realidades culturais”!
Para quem duvide de que as declarações prestadas por Passos Coelho em Dezembro de 2011 estão perfeitamente integradas no pensamento e na política do governo que dirige, ou seja, dentro do contexto, basta comparar as três declarações atrás citadas. Há uma coerência perfeita entre estes três políticos, na ligeireza, na arrogância e no próprio desconhecimento da cultura que deveria ser a sua: como pode um governante vir convidar os seus concidadãos a “conhecer outras realidades culturais”, quando ignora absolutamente a do próprio país?
E que não é uma atitude desgarrada, recordo que o conceito de “zona de conforto” já antes tinha sido utilizado pelo próprio primeiro-ministro que, chocantemente, acusa os seus acusadores de “piegas”. É um princípio da contrapropaganda – aprendi-o na tropa – que repetir insistentemente uma mentira, ou um qualquer disparate, acaba por convencer os mais prevenidos – quanto mais os ingénuos... E se tais dislates forem proferidos com uma voz bem colocada, tendo em particular atenção uma imagem simpática e carinhosamente cultivada, não haverá criatura que resista!
Temos então, agora, os “mitos urbanos”. Sempre actualizado o nosso primeiro-ministro... Até dá gosto!

Carlos Rodarte Veloso

quinta-feira, 18 de junho de 2015


Sinais dos Céus
dilúvios, terramotos, cometas, Fátima e o que mais quiserem
Publicado n’ O Templário de 18 de Junho de 2015

 As  recentes inundações na capital do antigo estado soviético da Geórgia deixaram atrás de si um rasto de mortes e destruição, em que foi especialmente atingido o jardim zoológico da cidade. Os animais selvagens, libertados das suas jaulas pelas águas torrenciais, percorreram as ruas de Tbilisi, num espectáculo de verdadeiro apocalipse.
O patriarca ortodoxo do país não perdeu esta excelente oportunidade para  levantar a voz a “explicar” a tragédia como um castigo divino, por a construção do dito Zoo ter sido paga com o produto da fundição dos sinos das igrejas do país, por ordem do governo comunista de então.
Este tipo de argumentação não é novo na história: É tão velho quanto a existência das religiões – o mesmo que é dizer: da humanidade – e até pode ser considerado “aceitável” num estádio pré-científico dos conhecimentos.
Terramotos, tempestades, erupções vulcânicas, queda de meteoros, incêndios, inundações, também as próprias guerras... Deus ou os deuses estavam de olho nesta humanidade pecadora e, quando lhes dava para isso – os seus desígnios costumam ser imperscrutáveis – lá vinha um sismo, um dilúvio, uma qualquer desgraça global ou, até, um simples eclipse do Sol, anúncio de outras garantidas calamidades.
Nem precisamos de recorrer às religiões pagãs, tão férteis em sinais divinos, sinais esses herdados pelo Cristianismo nas suas diversas confissões. A Bíblia no seu Antigo Testamento está cheia desse sinais da reprovação, do castigo de um Deus intransigente com as mais pequenas faltas, permanentemente irado com as suas criaturas, ao ponto de experimentar a fé e a lealdade dos homens, submetendo-os a provações inacreditáveis... Como a exigência do sacrifício do próprio filho, como teria acontecido com Abraão, ou a miséria e a desgraça inultrapassáveis lançadas sobre um incondicional crente como Job...
Mas deixemos esses exemplos arrepiantes e detenhamo-nos “apenas” no irracionalismo  
que, desde a Idade Média, tem inundado o discurso de muitos responsáveis religiosos, “santos” até, sem distinção de crença ou de estatuto.
A nossa história está cheia de exemplos dos vicios e das virtudes a que as épocas de crise deram azo. Como após o terramoto de 1531, no tempo de D. João III, quando o grande Gil Vicente teve a coragem de enfrentar os frades que acusavam os Judeus de serem os culpados pelo sismo, enviando ao rei a famosa carta escrita nesse ano em Santarém, autêntico libelo contra o fanatismo e a irracionalidade.
Ou do padre António Vieira enfrentando o sinistro poder da Inquisição durante a Restauração, “crime” pelo qual foi perseguido e proscrito. E, no entanto, este mestre da nossa Língua e grande patriota também pecou pela interpretação dos sinais dos céus quando, em 1695, a visão de um cometa lhe inspirou uma meditação profética.
Ou quando, em 1917, muito a propósito do contexto político nacional, são noticiadas as famosas aparições em Fátima, em que a famosa “dança do sol”, nunca atestada por nenhum observatório astronómico, nacional ou internacional, entra defintivamente no imaginário português, conduzindo anualmente milhões de crentes à Cova da Iria...
Sempre e sempre as épocas de crise deram azo ao aproveitamento de quaisquer fenómenos menos comuns como sendo avisos celestiais, repetindo ad nausea “argumentos” teológicos contra quaisquer novidades que ponham em causa o status quo. Argumentos servindo de arma de arremesso a favor de velhos interesses instituídos ameaçados pelo progresso político e social.
E as desgraças colectivas que coincidiram com esses “milagres”, essas manifestações da divina providência? Dentro da “lógica” ultramontana dessa boa gente, não seria caso para nos  perguntarmos sobre a interpretação do surto da terrível gripe pneumónica que ceifou, só em Portugal, umas 120 000 vidas? E, no entanto, ocorre a partir do ano de 1918, no ano a seguir às aparições, quando governava Portugal o “rei-presidente” Sidónio Pais, o mais católico dos portugueses. E vitima, entre os milhares já referidos, nem mais nem menos do que Francisco e Jacinta Marto, os santos pastorinhos de Fátima!
Mensagem dos Céus? Seria tão estúpido e desonesto associar tais factos, como vir agora o patriarca da Geórgia invocar pecados do passado para “explicar” fenómenos naturais!
A Razão e o Humanismo nunca pactuarão com as acrobacias dialécticas do Irracionalismo e essa é a garantia de que acabarão por triunfar.

Carlos Rodarte Veloso

domingo, 7 de junho de 2015


Palmira, património mundial em perigo
Publicado em O Templário, 4-6-2015

 Os avanços dos militantes do auto-intitulado Estado Islâmico (E.I.) na Síria e no Iraque já demonstraram cabalmente que não estamos “apenas” perante um sanguinário movimento terrorista, assumidamente destinado a fazer retroceder o mundo a uma idade de trevas já apenas recordada nas páginas da História.
A par da inacreditável selvajaria com que lidam com as populações e o retrocesso civilizacional que representam, nomeadamente para com os direitos da mulheres, das minorias e para com todos os restantes direitos fundamentais, estes fanáticos santões soltam a sua fúria contra os vestígios do passado brilhante de que somos herdeiros.
A exemplo  dos seus antecessores e actuais aliados, os taliban, que já tinham demonstrado esses bárbaros desígnios ao dinamitarem as monumentais estátuas de Buda em Bamiyan, no Afeganistão, em 2001, os fanáticos do E.I. começaram já a imitá-los.
Assim, destruíram já 30 séculos de História ao fazerem explodir, com martelos ou com explosivos os vestígios arqueológicos da cidade assíria de Nimrud, no Iraque, para apagar os que eles chamam – imagine-se – “a idade da ignorância” isto é, os tempos anteriores a Maomé! Não contentes com a barbaridade do acto, publicitaram-no na Internet.
Agora é a vez de Palmira, velha cidade síria e antiga capital da Rota da Seda, ocupada pelos Romanos e governada durante algum tempo pela rebelião da rainha Zenóbia, classificada pela UNESCO, em 1980, como Património da Humanidade, mais uma preciosidade nas mãos destes vândalos dos tempos modernos.
As reacções mundiais, de tal maneira se fizeram ouvir, entre outras as da directora da UNESCO e da direcção da Universidade de Al-Azhar, no Cairo, que o comandante local do E.I. já declarou que não iria tocar nos monumentos históricos mas, cito: “Vamos pulverizar a estátuas que os hereges costumavam idolatrar.”
Pretende assim o E.I. “tranquilizar” a consciência do Mundo Livre: “apenas” as estátuas serão destruídas; poderemos contentar-nos com as colunas, com o teatro, os templos, mesmo que antigamente adorados pelos “hereges”!
Nós, que nos revemos no passado prestigioso das civilizações que nos antecederam, que nos deram a razão de ser. Nós que pegamos em discursos, em abaixo-assinados a todo o momento, mas só nos arriscamos a sério quando se trata de defender poços de petróleo, bancos, negócios escuros... Nós, que somos os “bons da fita”... Não devíamos fazer alguma coisa a favor, não “apenas” daquela gente que sofre às mãos do fanatismo, mas também desse Património que é nosso, que é da Humanidade?

Carlos Rodarte Veloso