Sinais dos Céus
dilúvios, terramotos, cometas, Fátima e o que mais quiserem
Publicado n’ O Templário de 18 de Junho de 2015
As recentes
inundações na capital do antigo estado soviético da Geórgia deixaram atrás de
si um rasto de mortes e destruição, em que foi especialmente atingido o jardim
zoológico da cidade. Os animais selvagens, libertados das suas jaulas pelas
águas torrenciais, percorreram as ruas de Tbilisi, num espectáculo de verdadeiro
apocalipse.
O patriarca ortodoxo do país não
perdeu esta excelente oportunidade para
levantar a voz a “explicar” a tragédia como um castigo divino, por a
construção do dito Zoo ter sido paga com o produto da fundição dos sinos das
igrejas do país, por ordem do governo comunista de então.
Este tipo de argumentação não é novo
na história: É tão velho quanto a existência das religiões – o mesmo que é
dizer: da humanidade – e até pode ser considerado “aceitável” num estádio
pré-científico dos conhecimentos.
Terramotos, tempestades, erupções
vulcânicas, queda de meteoros, incêndios, inundações, também as próprias
guerras... Deus ou os deuses estavam de olho nesta humanidade pecadora e,
quando lhes dava para isso – os seus desígnios costumam ser imperscrutáveis –
lá vinha um sismo, um dilúvio, uma qualquer desgraça global ou, até, um simples
eclipse do Sol, anúncio de outras garantidas calamidades.
Nem precisamos de recorrer às
religiões pagãs, tão férteis em sinais divinos, sinais esses herdados pelo Cristianismo
nas suas diversas confissões. A Bíblia no seu Antigo Testamento está cheia
desse sinais da reprovação, do castigo de um Deus intransigente com as mais
pequenas faltas, permanentemente irado com as suas criaturas, ao ponto de
experimentar a fé e a lealdade dos homens, submetendo-os a provações
inacreditáveis... Como a exigência do sacrifício do próprio filho, como teria
acontecido com Abraão, ou a miséria e a desgraça inultrapassáveis lançadas
sobre um incondicional crente como Job...
Mas deixemos esses exemplos
arrepiantes e detenhamo-nos “apenas” no irracionalismo
que, desde a Idade Média, tem inundado
o discurso de muitos responsáveis religiosos, “santos” até, sem distinção de
crença ou de estatuto.
A nossa história está cheia de
exemplos dos vicios e das virtudes a que as épocas de crise deram azo. Como
após o terramoto de 1531, no tempo de D. João III, quando o grande Gil Vicente
teve a coragem de enfrentar os frades que acusavam os Judeus de serem os
culpados pelo sismo, enviando ao rei a famosa carta escrita nesse ano em
Santarém, autêntico libelo contra o fanatismo e a irracionalidade.
Ou do padre António Vieira
enfrentando o sinistro poder da Inquisição durante a Restauração, “crime” pelo
qual foi perseguido e proscrito. E, no entanto, este mestre da nossa Língua e
grande patriota também pecou pela interpretação dos sinais dos céus quando, em
1695, a visão de um cometa lhe inspirou uma meditação profética.
Ou quando, em 1917, muito a
propósito do contexto político nacional, são noticiadas as famosas aparições em
Fátima, em que a famosa “dança do sol”, nunca atestada por nenhum observatório
astronómico, nacional ou internacional, entra defintivamente no imaginário
português, conduzindo anualmente milhões de crentes à Cova da Iria...
Sempre e sempre as épocas de crise
deram azo ao aproveitamento de quaisquer fenómenos menos comuns como sendo
avisos celestiais, repetindo ad nausea
“argumentos” teológicos contra quaisquer novidades que ponham em causa o status quo. Argumentos servindo de arma de arremesso a favor de velhos
interesses instituídos ameaçados pelo progresso político e social.
E as desgraças colectivas que
coincidiram com esses “milagres”, essas manifestações da divina providência?
Dentro da “lógica” ultramontana dessa boa gente, não seria caso para nos perguntarmos sobre a interpretação do surto da
terrível gripe pneumónica que ceifou, só em Portugal, umas 120 000 vidas?
E, no entanto, ocorre a partir do ano de 1918, no ano a seguir às aparições,
quando governava Portugal o “rei-presidente” Sidónio Pais, o mais católico dos
portugueses. E vitima, entre os milhares já referidos, nem mais nem menos do
que Francisco e Jacinta Marto, os santos pastorinhos de Fátima!
Mensagem dos Céus? Seria tão
estúpido e desonesto associar tais factos, como vir agora o patriarca da
Geórgia invocar pecados do passado para “explicar” fenómenos naturais!
A Razão e o Humanismo nunca pactuarão
com as acrobacias dialécticas do Irracionalismo e essa é a garantia de que
acabarão por triunfar.
Carlos Rodarte Veloso
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