O Dilúvio de 1967
Publicado n’O Templário de 24 de Novembro de 2016
Faz no próximo Sábado 49 anos
sobre as terríveis cheias que atingiram a região de Lisboa, especialmente entre
Sintra e Vila Franca de Xira.
A chuva iniciada às 17 horas de
25 de Novembro, foi aumentando de intensidade até à noite, , criando durante a
madrugada uma torrente irresistível que tudo alagava, destruindo muros, pontes,
partes de prédios ou prédios inteiros, fábricas, edifícios públicos, provocando
derrocadas de terras nas encostas, submergindo caves e andares mais baixos,
arrastando automóveis, pessoas e animais e acabando por matar, segundo números
oficiais da época – época de censura prévia, não esqueçamos – umas 500 pessoas.
Entre outras povoações arrasadas,
uma aldeia inteira atingida por uma tromba de água, ficou submersa na lama.
Desaparecida do mapa, Quintas, no Ribatejo, contou com apenas 50 sobrevivente
dos seus 200 habitantes.
Tendo sido a maior catástrofe
natural que atingiu o nosso país desde o Terramoto de 1755, a imprensa pôde
desenvolvê-la mais do que o habitual, até por não haver nessas notícias
qualquer perigo contra a segurança do Estado. Causas naturais dificilmente
poderiam ser atribuídas ao “Reviralho” ou aos “Comunistas”, designações habituais
para todos quantos discordassem minimamente do regime salazarista...
Claro que também havia causas
humanas para tamanha catástrofe: a anarquia da construção civil, que ocupava as
linhas de água com edifícios de discutível qualidade que funcionaram como
barragem às enxurradas, assim aumentando a subida do nível das águas para
valores inacreditáveis. Também a existência dos famosos bairros de lata, cuja
superpopulação era especialmente vulnerável a tal tipo de desastres e,
especialmente, a pobreza e consequente péssima qualidade da habitação popular
na zona atingida.
Face à grandeza do desastre e à
situação calamitosa das populações atingidas e sendo manifestamente
insuficientes o meios disponíveis – bombeiros, hospitais, as próprias forças
armadas e militarizadas – nos dias subsequentes mobilizaram-se instituições
civis, algumas das quais não estariam propriamente nas boas graças do governo.
Nesse âmbito, as associações académicas das universidades e liceus de Lisboa,
mobilizaram grande número de estudantes para levar auxílio às zonas mais
atingidas.
Eu próprio participei nessas
jornadas de solidariedade, integrado que estava no curso de Medicina e membro
activo da Pró-Associação dos Estudantes de Medicina – pró-associação, porque o
Ministério da Educação não a reconhecia oficialmente... – associação esta que
sentia especialmente a responsabilidade dos futuros médicos em relação a causas
humanitárias.
No entanto, colegas de todas as
outras faculdades integraram esse movimento cívico, que levou desde logo as
autoridades a acusarem-nos de estarem a aproveitar politicamente a desgraça
alheia...
Seja como for, multidões de
estudantes, por todos os meios disponíveis, dirigiram-se aos campos inundados e
às casas sinistradas de toda a vasta área atingida, sob o olhar atento e não
demasiado amigável das forças militarizadas, para limpar as lamas acumuladas
nas casas e para prestar primeiros socorros e vacinar contra a cólera as
populações, em grave risco de saúde.
Curiosamente, os encontros dos
estudantes com unidades das Forças Armadas também mobilizadas, pautaram-se por
mútua simpatia. Havia entre eles uma noção de missão cívica que as manobras dos
políticos situacionistas não impediram.
Para além do serviço prestado às
populações em perigo, os estudantes, maioritariamente oriundos das classes
média e alta, tiveram o seu primeiro encontro com uma realidade que o regime
escondia, o país real da miséria, da privação, do desprezo pelos pobres e
necessitados, da falta de recursos higiénicos e sanitários...
Prestei esse serviço cívico voluntário
em Santana da Carnota, Ribatejo, e abriram-se-me mais os olhos para uma
realidade que só conhecia na teoria. Agora já não era nos panfletos
clandestinos que denunciavam o estado do país de Salazar que podia basear-me,
mas na vida em directo. Eu e centenas de outros estudantes...
Dois anos depois, estava a
estudar em Coimbra onde vivi intensamente a Crise Académica de 1969, sendo
depois punido com a antecipação do recrutamento para o Serviço Militar. Esta
“punição” funcionou como tudo aquilo que o regime inventou para dissuadir a “subversão”:
as Forças Armadas politizaram-se e vimos os oficiais do quadro a confraternizar
com os subversivos de poucos anos antes, no Continente e nas Colónias.
Em parte, considero que o 25 de
Abril de 1974 teve algumas das suas raízes nesse terrível Novembro de 1967, quando centenas de estudantes, calçando galochas, entraram impetuosamente na dimensão proibida da miséria em Portugal.
Fotos de Carlos Rodarte Veloso