ARQUITECTURA EFÉMERA EM
PORTUGAL NO
PERÍODO FILIPINO. AS ENTRADAS RÉGIAS EM
LISBOA E TOMAR
Carlos Rodarte Veloso
“O
Templário”, 13 de Junho de 2019
Nos Países Baixos Católicos a relação monarca-súbditos
torna-se de tal modo importante, que se torna “em instrumento para a definição
da lei pública que regia as relações entre cidades e monarcas, especialmente
por ocasião das sucessões de reinados passíveis de afectar as cidades
flamengas. No decurso de um cortejo público, o soberano comprometia-se, por um
juramento complexo, a garantir os direitos municipais consuetudinários. O
juramento em si era designado por Elijde
Inkomst ou Joyeuse Entrée, termo
que gradualmente se tornou sinónimo de direitos garantidos pelo monarca […]
Concomitantemente, os cidadãos passaram a considerar que o soberano se
comprometia a acordos específicos e era costume apresentar-se queixas de
“infracções” à Joyeuse Entrée, a qual
tinha, já em 1549, atingido um estatuto legal preciso (ao tempo de Filipe,
príncipe de Espanha). […]”
A passagem de Portugal para o domínio espanhol coloca-o
numa situação semelhante à dos Países Baixos, levando a atitudes semelhantes
para com Filipe II — o primeiro de Portugal — nomeadamente em 1581, através da
organização de uma cerimónia semelhante em Lisboa, que seria repetida em 1619.
O uso de um cerimonial estranho à Península, estabelece um claro paralelismo
entre a situação do povo português e a dos flamengos.
Esta primeira Joyeuse
Entrée foi precedida, em 16 de Abril
de 1581, da Entrada de Filipe II (I de
Portugal) em Tomar, quando aqui veio para receber o juramento das
respectivas Cortes. A Vila encontrava-se engalanada com aparato festivo, muito
povo e a indispensável cerimónia de entrega das chaves, destacando-se, à
entrada, “um Arco Triunfal ou portada de duas colunas, com sua cornija e
arquitrave, tudo enfeitado de verdura e flores dos mais variados matizes, e
donde se destacava, em campo branco,
este letreiro:
PHILIPPO, INVICTISSIMO, HIS / PANIARUM REX
II LUSITA / NIAE VERO PRIMO
(A FILIPE II INVICTÍSSIMO REI DAS ESPANHAS
E VERÍDICO PRIMEIRO DA LUSITÂNIA.)
O arco era rematado pela Cruz de Cristo, a esfera armilar
e o escudo das quinas.”
Estava pois Lisboa pronta a receber o novo monarca, o que
aconteceu a 29 de Junho. O cortejo organizado através da parte baixa da Cidade,
iniciou-se com o desembarque do rei — vindo de Almada — nos Paços da Ribeira e
o seu percurso, que viria a repetir-se em diversas ocasiões e reinados, até à
Sé e, depois, em sentido inverso, de novo até ao palácio real. Embora não
existam registos gráficos das decorações então construídas, podemos fazer delas
uma ideia por terem sido parcialmente reutilizadas em 1619. O que veio depois a
ser regra, a construção de arcos comemorativos pelas colónias estrangeiras em
Lisboa, foi excepção em 1581, pois a única comunidade a apresentar o seu arco
de triunfo foi, muito significativamente, a flamenga.
Decerto não por acaso, foi sob este arco, o maior das
festividades, que foram entregues ao rei as chaves de ouro da Cidade, que logo
as devolveu ao magistrado, como era de uso. O arco media 54 pés de altura —
cerca de 16 metros — e foi descrito como “arco triunfal em forma de castelo”.
Havia outros arcos ou decorações alegóricas da iniciativa de diversas
corporações dos Ofícios — oleiros, artesãos da cera e ferreiros — e da Casa da
Moeda. Outro ponto alto do programa foi uma encenação do Triunfo da Fé, junto
da Sé de Lisboa, presidida pelo Arcebispo, na qualidade de Inquisidor-Mor.
A exemplo de
seu pai, Filipe III — segundo de Portugal — prepara, em 1609, uma visita a
Portugal, já solicitada pela Câmara de Lisboa desde 1605. Esta, em grandes
dificuldades financeiras, envia às Câmaras do País um pedido de subsídio para
preparar festividades condignas. As respostas dão uma nota da penúria geral e,
decerto de uma disposição cada vez menos favorável para com o Filipe.
Exemplar é a da Câmara de Tomar: depois dos protestos de fidelidade do estilo e
manifestações do grande júbilo causado por tal visita, desculpa-se de não poder contribuir para
a entrada régia, por estarem “presos pelo Santo Ofício mais de 50 homens de
nação [cristãos-novos] e ausentes muitos mais” o que teria tornado esta Vila “a
mais miserável de Portugal”, sendo os restantes moradores, tributários da
poderosa Ordem de Cristo, pobres demais para serem ainda mais sobrecarregados.
Não era um não peremptório mas era,
mesmo assim, um claro sinal de mal-estar perante as duras realidades sentidas
pelos portugueses …
No entanto, a visita torna-se possível em 1619. Segundo
Kubler, “todas as classes em Portugal necessitavam e esperavam desde a morte de
Filipe II, em 1598, uma confirmação dos termos da carta patente de Tomar, e há
muito havia agitações em Portugal devidos às infracções […] e devido ao aumento
de impostos em Lisboa, […]”. O rei
sentia também a importância da visita: era urgente legitimar o príncipe
herdeiro junto das Cortes portuguesas e pôr termo à agitação que grassava em
Portugal. À cautela, a visita régia era discretamente acompanhada por forças
militares terrestres e navais…
A Câmara de Lisboa viu-se obrigada, face à falta de apoio
das restantes câmaras do País, a contrair um pesado empréstimo para pagar as
despesas, na ordem dos 700.000 cruzados. De facto, para além das esperanças
portuguesas no cumprimento das promessas de 1581, muitos defendiam — e pensavam
ser possível convencer disso o rei — a elevação de Lisboa a Capital do Reino
Unido de Portugal e Espanha, por ser uma cidade com muito melhores condições estratégicas,
climáticas, económicas e políticas do que Madrid.
Um dos grandes defensores desta ideia, apoiada por
numerosos autores da época, foi o lisboeta João Baptista Lavanha, um dos
cronistas desta jornada filipina em terras portuguesas, cujo relato e gravuras
que o acompanham documentam exemplarmente as decorações armadas para esta
Entrada Régia. De trinta e três descrições conhecidas da viagem, muitas
impressas, esta é a única ilustrada.
A primeira estátua alegórica com que Filipe III deparou,
ao desembarcar, foi a de Lisboa,
acompanhada de outras relacionadas com os sentimentos pretensamente acalentados
pela população relativamente a Sua Majestade Católica: Zelo, Verdade, Amor e Obediência, acompanhadas por um soneto inscrito no pedestal que,
tal como o discurso de seguida proferido pelo representante da Cidade, defendia
a primazia de Lisboa entre todas as Cidades da Península, e a sua relevância
para Capital.
Um desenho de Domingos Vieira Serrão, pintor régio
natural de Tomar, mostra a Lisboa ribeirinha com a frota festivamente
engalanada, os cais construídos junto aos Paços da Ribeira para receber o
desembarque do rei e os arcos triunfais e outros aparatos dispostos no Terreiro
do Paço (Fig.1). É a imagem que
melhor visão de conjunto proporciona sobre este evento …
Sendo evidente o parentesco dos arcos construídos com os
retábulos de talha, ao gosto maneirista, não será de admirar a sua obediência
aos tratados arquitectónicos publicados durante o século XVI. Os artistas que
os riscaram e executaram seriam provavelmente os mesmos que adornaram os
altares das igrejas portuguesas com a mestria que ainda hoje podemos admirar.
Quanto ao sabido reaproveitamento de arcos da Entrada de
1581, não será decerto o caso do Arco
dos Flamengos, um dos mais majestosos, mas não correspondendo à descrição
de 1581 que o apresentava sob a forma de castelo. As principais colónias
estrangeiras em Lisboa procuram claramente conquistar as boas graças do
soberano, numa adulação sem limites, em que Filipe III é comparado a Hércules,
pelos flamengos, a Júpiter, pelos italianos, a Beleforonte, pelos alemães…
Os arcos portugueses, pelo contrário, com excepção de um
grupo escultórico que mostrava Filipe III como “Júpiter Espanhol” aniquilando
quatro titãs que simbolizam os mouros, são bem mais discretos nos louvores,
apresentando até pequenas “provocações”. Há de tudo, desde a natural
glorificação da História e dos antigos reis de Portugal, à muito mais directa
alusão à velha aliança com a Inglaterra, lembrada nas imagens e emblemas do Arco dos Mercadores (Fig.2), com as
suas quatro frentes, de uma das quais saía a Rua das Virtudes, marginada por
estátuas dos heróis portugueses, que conduzia
ao Arco dos Ingleses. Para a construção do Arco dos Mercadores a Câmara de
Lisboa teve de ordenar a demolição de algumas casas, o que mostra a sua
importância no conjunto simbólico promovido pela autarquia. Kubler vai mais
longe e defende que “esta posição de destaque dada aos Ingleses se destinava a
recordar ao rei que o pretendente ilegítimo ao trono de Portugal, D. António
(prior do Crato) conseguira com os Ingleses, em 1580, uma aliança contra Filipe
II. Outras alusões à importância da ilegitimidade na histórica dinástica do
País eram sublinhadas nas cenas representadas no interior do arco dos
mercadores.”
Não ficou a visita de Filipe III por Lisboa. Abandonada a
ideia original de reunir as Cortes em Tomar — a exemplo de 1581 — e reunidas
estas na Capital, o rei não deixou de visitar a Vila do Nabão. Pretendendo
recepção idêntica à que seu pai recebera, enviou instruções à Câmara, tanto
quanto às cerimónias pretendidas e seu aparato, como quanto às decorações,
folguedos públicos e arranjos nas casas e ruas degradadas… Não se cumpriu tudo de acordo com os régios
desejos, pois a verba era curta… Mas lá se deu andamento ao que foi possível, e
é Lavanha que descreve a Entrada de
Filipe III em Tomar, em 15 de Outubro de 1619: “O rei entrou pela Várzea
Grande, um espaçoso campo com muitas danças, e desde o lugar onde se apeou do
coche ao começo da linda Alameda, e tomou o cavalo, até à entrada da Vila,
estava feita uma alameda de copadas árvores, e ao fundo dela um arco
galantemente ornado, cujos remates eram as Armas Reais de Portugal, a Cruz da
Ordem de Cristo e em meio a Imagem de Santa Iria, Padroeira de Tomar. Houve à
entrada do Arco as costumadas cerimónias das chaves, o discurso e Pálio,
levando de rédea o cavalo em que ia Sua Majestade, D. João de Sousa,
Alcaide-Mor de Tomar […]”. Findas as cerimónias da praxe, o cortejo prosseguiu
caminho para o Convento de Cristo, sempre no meio das decorações festivas que
se podem adivinhar pela referida carta de instruções: janelas ornamentadas com
“alcatifas e colchas boas, e com sedas, as melhores que se puderem achar” já
que foi permitido não se armarem as ruas “por não haver para isso o material
necessário”…
As Embaixadas ao papa ou a outros grandes príncipes assim
como os casamentos reIs e até os monumentos fúnebres são outras tantas formas
de proporcionar uma especial forma de Triunfo, voltado para a propaganda de um
País através da figura reinante, o monarca. Como no caso das Entradas Régias,
trata-se de um espectáculo alegórico da sua fama e poder.
IMAGENS:
1. Lisboa “As Festas do
Mar” de 1619, na Entrada Régia de Filipe III (desenho de Domingos Vieira
Serrão, gravura de Hans Schorkens)
2. Arco dos Mercadores,
na mesma Entrada (gravura de Juan Bautista Lavanha).