quinta-feira, 6 de junho de 2019


ARQUITECTURA EFÉMERA EM PORTUGAL NO 

PERÍODO FILIPINO. AS ENTRADAS RÉGIAS EM

 LISBOA E TOMAR

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 13 de Junho de 2019

            Nos Países Baixos Católicos a relação monarca-súbditos torna-se de tal modo importante, que se torna “em instrumento para a definição da lei pública que regia as relações entre cidades e monarcas, especialmente por ocasião das sucessões de reinados passíveis de afectar as cidades flamengas. No decurso de um cortejo público, o soberano comprometia-se, por um juramento complexo, a garantir os direitos municipais consuetudinários. O juramento em si era designado por Elijde Inkomst ou Joyeuse Entrée, termo que gradualmente se tornou sinónimo de direitos garantidos pelo monarca […] Concomitantemente, os cidadãos passaram a considerar que o soberano se comprometia a acordos específicos e era costume apresentar-se queixas de “infracções” à Joyeuse Entrée, a qual tinha, já em 1549, atingido um estatuto legal preciso (ao tempo de Filipe, príncipe de Espanha). […]”
            A passagem de Portugal para o domínio espanhol coloca-o numa situação semelhante à dos Países Baixos, levando a atitudes semelhantes para com Filipe II — o primeiro de Portugal — nomeadamente em 1581, através da organização de uma cerimónia semelhante em Lisboa, que seria repetida em 1619. O uso de um cerimonial estranho à Península, estabelece um claro paralelismo entre a situação do povo português e a dos flamengos.
            Esta primeira Joyeuse Entrée   foi precedida, em 16 de Abril de 1581, da Entrada de Filipe II (I de Portugal) em Tomar, quando aqui veio para receber o juramento das respectivas Cortes. A Vila encontrava-se engalanada com aparato festivo, muito povo e a indispensável cerimónia de entrega das chaves, destacando-se, à entrada, “um Arco Triunfal ou portada de duas colunas, com sua cornija e arquitrave, tudo enfeitado de verdura e flores dos mais variados matizes, e donde se destacava, em  campo branco, este letreiro:

PHILIPPO, INVICTISSIMO, HIS / PANIARUM REX II LUSITA / NIAE VERO PRIMO
(A FILIPE II INVICTÍSSIMO REI DAS ESPANHAS E VERÍDICO PRIMEIRO DA LUSITÂNIA.)
           
            O arco era rematado pela Cruz de Cristo, a esfera armilar e o escudo das quinas.”
            Estava pois Lisboa pronta a receber o novo monarca, o que aconteceu a 29 de Junho. O cortejo organizado através da parte baixa da Cidade, iniciou-se com o desembarque do rei — vindo de Almada — nos Paços da Ribeira e o seu percurso, que viria a repetir-se em diversas ocasiões e reinados, até à Sé e, depois, em sentido inverso, de novo até ao palácio real. Embora não existam registos gráficos das decorações então construídas, podemos fazer delas uma ideia por terem sido parcialmente reutilizadas em 1619. O que veio depois a ser regra, a construção de arcos comemorativos pelas colónias estrangeiras em Lisboa, foi excepção em 1581, pois a única comunidade a apresentar o seu arco de triunfo foi, muito significativamente, a flamenga.
            Decerto não por acaso, foi sob este arco, o maior das festividades, que foram entregues ao rei as chaves de ouro da Cidade, que logo as devolveu ao magistrado, como era de uso. O arco media 54 pés de altura — cerca de 16 metros — e foi descrito como “arco triunfal em forma de castelo”. Havia outros arcos ou decorações alegóricas da iniciativa de diversas corporações dos Ofícios — oleiros, artesãos da cera e ferreiros — e da Casa da Moeda. Outro ponto alto do programa foi uma encenação do Triunfo da Fé, junto da Sé de Lisboa, presidida pelo Arcebispo, na qualidade de Inquisidor-Mor.
A exemplo de seu pai, Filipe III — segundo de Portugal — prepara, em 1609, uma visita a Portugal, já solicitada pela Câmara de Lisboa desde 1605. Esta, em grandes dificuldades financeiras, envia às Câmaras do País um pedido de subsídio para preparar festividades condignas. As respostas dão uma nota da penúria geral e, decerto de uma disposição cada vez menos favorável para com o Filipe.
            Exemplar é a da Câmara de Tomar: depois dos protestos de fidelidade do estilo e manifestações do grande júbilo causado por tal visita, desculpa-se de não poder contribuir para a entrada régia, por estarem “presos pelo Santo Ofício mais de 50 homens de nação [cristãos-novos] e ausentes muitos mais” o que teria tornado esta Vila “a mais miserável de Portugal”, sendo os restantes moradores, tributários da poderosa Ordem de Cristo, pobres demais para serem ainda mais sobrecarregados. Não era um não peremptório mas era, mesmo assim, um claro sinal de mal-estar perante as duras realidades sentidas pelos portugueses …
            No entanto, a visita torna-se possível em 1619. Segundo Kubler, “todas as classes em Portugal necessitavam e esperavam desde a morte de Filipe II, em 1598, uma confirmação dos termos da carta patente de Tomar, e há muito havia agitações em Portugal devidos às infracções […] e devido ao aumento de impostos em Lisboa, […]”.  O rei sentia também a importância da visita: era urgente legitimar o príncipe herdeiro junto das Cortes portuguesas e pôr termo à agitação que grassava em Portugal. À cautela, a visita régia era discretamente acompanhada por forças militares terrestres e navais…
           A Câmara de Lisboa viu-se obrigada, face à falta de apoio das restantes câmaras do País, a contrair um pesado empréstimo para pagar as despesas, na ordem dos 700.000 cruzados. De facto, para além das esperanças portuguesas no cumprimento das promessas de 1581, muitos defendiam — e pensavam ser possível convencer disso o rei — a elevação de Lisboa a Capital do Reino Unido de Portugal e Espanha, por ser uma cidade com muito melhores condições estratégicas, climáticas, económicas e políticas do que Madrid.
            Um dos grandes defensores desta ideia, apoiada por numerosos autores da época, foi o lisboeta João Baptista Lavanha, um dos cronistas desta jornada filipina em terras portuguesas, cujo relato e gravuras que o acompanham documentam exemplarmente as decorações armadas para esta Entrada Régia. De trinta e três descrições conhecidas da viagem, muitas impressas, esta é a única ilustrada.
            A primeira estátua alegórica com que Filipe III deparou, ao desembarcar, foi a de Lisboa, acompanhada de outras relacionadas com os sentimentos pretensamente acalentados pela população relativamente a Sua Majestade Católica: Zelo, Verdade, Amor e Obediência, acompanhadas por um soneto inscrito no pedestal que, tal como o discurso de seguida proferido pelo representante da Cidade, defendia a primazia de Lisboa entre todas as Cidades da Península, e a sua relevância para Capital.
            Um desenho de Domingos Vieira Serrão, pintor régio natural de Tomar, mostra a Lisboa ribeirinha com a frota festivamente engalanada, os cais construídos junto aos Paços da Ribeira para receber o desembarque do rei e os arcos triunfais e outros aparatos dispostos no Terreiro do Paço (Fig.1). É a imagem que melhor visão de conjunto proporciona sobre este evento …


            Sendo evidente o parentesco dos arcos construídos com os retábulos de talha, ao gosto maneirista, não será de admirar a sua obediência aos tratados arquitectónicos publicados durante o século XVI. Os artistas que os riscaram e executaram seriam provavelmente os mesmos que adornaram os altares das igrejas portuguesas com a mestria que ainda hoje podemos admirar.
            Quanto ao sabido reaproveitamento de arcos da Entrada de 1581, não será decerto o caso do Arco dos Flamengos, um dos mais majestosos, mas não correspondendo à descrição de 1581 que o apresentava sob a forma de castelo. As principais colónias estrangeiras em Lisboa procuram claramente conquistar as boas graças do soberano, numa adulação sem limites, em que Filipe III é comparado a Hércules, pelos flamengos, a Júpiter, pelos italianos, a Beleforonte, pelos alemães… 
            Os arcos portugueses, pelo contrário, com excepção de um grupo escultórico que mostrava Filipe III como “Júpiter Espanhol” aniquilando quatro titãs que simbolizam os mouros, são bem mais discretos nos louvores, apresentando até pequenas “provocações”. Há de tudo, desde a natural glorificação da História e dos antigos reis de Portugal, à muito mais directa alusão à velha aliança com a Inglaterra, lembrada nas imagens e emblemas do Arco dos Mercadores (Fig.2), com as suas quatro frentes, de uma das quais saía a Rua das Virtudes, marginada por estátuas dos heróis portugueses, que conduzia ao Arco dos Ingleses. Para a construção do Arco dos Mercadores a Câmara de Lisboa teve de ordenar a demolição de algumas casas, o que mostra a sua importância no conjunto simbólico promovido pela autarquia. Kubler vai mais longe e defende que “esta posição de destaque dada aos Ingleses se destinava a recordar ao rei que o pretendente ilegítimo ao trono de Portugal, D. António (prior do Crato) conseguira com os Ingleses, em 1580, uma aliança contra Filipe II. Outras alusões à importância da ilegitimidade na histórica dinástica do País eram sublinhadas nas cenas representadas no interior do arco dos mercadores.”


            Não ficou a visita de Filipe III por Lisboa. Abandonada a ideia original de reunir as Cortes em Tomar — a exemplo de 1581 — e reunidas estas na Capital, o rei não deixou de visitar a Vila do Nabão. Pretendendo recepção idêntica à que seu pai recebera, enviou instruções à Câmara, tanto quanto às cerimónias pretendidas e seu aparato, como quanto às decorações, folguedos públicos e arranjos nas casas e ruas degradadas…  Não se cumpriu tudo de acordo com os régios desejos, pois a verba era curta… Mas lá se deu andamento ao que foi possível, e é Lavanha que descreve a Entrada de Filipe III em Tomar, em 15 de Outubro de 1619: “O rei entrou pela Várzea Grande, um espaçoso campo com muitas danças, e desde o lugar onde se apeou do coche ao começo da linda Alameda, e tomou o cavalo, até à entrada da Vila, estava feita uma alameda de copadas árvores, e ao fundo dela um arco galantemente ornado, cujos remates eram as Armas Reais de Portugal, a Cruz da Ordem de Cristo e em meio a Imagem de Santa Iria, Padroeira de Tomar. Houve à entrada do Arco as costumadas cerimónias das chaves, o discurso e Pálio, levando de rédea o cavalo em que ia Sua Majestade, D. João de Sousa, Alcaide-Mor de Tomar […]”. Findas as cerimónias da praxe, o cortejo prosseguiu caminho para o Convento de Cristo, sempre no meio das decorações festivas que se podem adivinhar pela referida carta de instruções: janelas ornamentadas com “alcatifas e colchas boas, e com sedas, as melhores que se puderem achar” já que foi permitido não se armarem as ruas “por não haver para isso o material necessário”…
            As Embaixadas ao papa ou a outros grandes príncipes assim como os casamentos reIs e até os monumentos fúnebres são outras tantas formas de proporcionar uma especial forma de Triunfo, voltado para a propaganda de um País através da figura reinante, o monarca. Como no caso das Entradas Régias, trata-se de um espectáculo alegórico da sua fama e poder.

IMAGENS:
1. Lisboa “As Festas do Mar” de 1619, na Entrada Régia de Filipe III (desenho de Domingos Vieira Serrão, gravura de Hans Schorkens)
2. Arco dos Mercadores, na mesma Entrada (gravura de Juan Bautista Lavanha).

Sem comentários:

Enviar um comentário