sexta-feira, 24 de abril de 2020


TURISMO DEPOIS DA PESTE
Carlos Rodarte Veloso


“O Templário”, 23 de Abril de 2020

Enquanto aguardamos uma vacina contra o coronavírus, vai-se preparando, paulatinamente como deve ser, o recomeço da actividade económica do País, de modo a evitar a precipitação da abertura a todo o custo, pelas implicações que a mesma poderá ter numa recaída sanitária catastrófica.
Sendo o comércio externo e o turismo as actividades que maiores dividendos prestam a Portugal e maiores vantagens prestam no combate ao desemprego, a praga dentro da praga, esta constatação exige o rearranque da produção industrial, evidentemente sujeita à parafernália de cuidados recomendados desde o início da pandemia.
Quanto ao turismo, a actividade que maior quantidade de empregos garante e aquela que mais contribui para o nosso prestígio internacional e o florescimento de maior diversidade de actividades, o seu regresso em força, decerto lento mas seguro, deveria obedecer a um conjunto de regras que evitassem o regresso a um conjunto de situações que principalmente enriqueceram um empreendorismo ganancioso que, a par das vantagens tão publicitadas, afastou dos grandes centros populacionais grande parte da sua população, preferindo-lhe uma invasão de turistas estrangeiros cujo maior poder económico tornou os portugueses mais estrangeiros que eles próprios dentro da sua pátria.
Não apenas o mercado de arrendamento imobiliário criou situações dramáticas para os nossos compatriotas, incapacitados de se manter nas suas residências originais, como o próprio emprego nos estabelecimentos de hotelaria e restauração se tornou manifestamente exploratório, com salários baixíssimos e condições de trabalho penosas a um ponto insuportável.
Tudo isto é bem conhecido pelas suas consequências sociais, mas a pandemia que nos aflige está agora a afligir muitos milhares de proprietários gananciosos que não hesitaram em despejar os seus antigos inquilinos, para em seguida dividir os andares devolutos em módulos destinados a albergar todo o estrangeiro endinheirado disposto a ocupar esses espaços vendidos ou alugados a preços milionários.
A aflição destes senhorios vai decerto obrigá-los a procurar de novo inquilinos de mais modestas posses o que constitui, nestes tempos pestíferos uma espécie de justiça poética… já diz o povo, na sua sabedoria, que quem tudo quer, tudo perde!
Além das consequências socioculturais de actual situação, aspectos há, no turismo, que exigem um repensar da continuação da sua actividade do ponto de vista legislativo, desde a interdição de massas caóticas de turistas nas nossas cidades, que acabam por as roubar aos seus naturais, à multiplicação de cruzeiros nos nossos portos, ao excesso de tráfego aéreo, poluente e prejudicial à vida humana.
É tudo uma questão de equilíbrio: permitir o lucro da actividade turística, mas sem esquecer o factor humano em causa, mas também o factor cultural.
As autênticas multidões que nos invadem devem ser orientadas para uma maior dispersão no nosso território, de forma serem criadas, se necessário, quotas de ocupação do espaço que protejam o nosso património, tanto construído, como natural.
Estas preocupações decerto serão resolvidas com o tempo, porque parece-me que tempo é o que não falta, dada a demora na criação de uma vacina para o coronavírus. Mas seria bom aproveitar esta pausa concedida à recuperação da natureza, já visível na diminuição da poluição em todas as latitudes.
Teremos então uma nova oportunidade para legislar a favor da humanidade e do ambiente, corrigindo as terríveis assimetrias socioculturais e económicas que têm transformado este maravilhoso planeta num inferno e não regressando ao caos capitalista que imperava nos últimos dias… ainda apenas a uns meses de distância…

quinta-feira, 16 de abril de 2020



AS TREVAS MILENARES

Carlos Rodarte Veloso

O Templário, 16 de Abril de 2020

O percurso que nós, humanidade, vaidosamente nos atribuímos como civilização, vai das trevas mais profundas à claridade mais pura, do pensamento mágico à mais pura racionalidade, da bárbara Pré-História ao predomínio da Ciência, da aproximação à compreensão de todas as coisas, liberta dos sucessivos véus que a esconderam, o famoso manto diáfano da fantasia...
Essa correcção das impressões mais imediatas nasceu em mentes visionárias cujos raciocínios corrigiram a aparência das coisas, provocando autênticas cambalhotas na observação dos fenómenos naturais, mesmo dos cósmicos, aliás, principalmente dos cósmicos, tanto na pequena como na grande dimensão.
Desde a substituição do intuitivo geocentrismo pelo menos compreensível heliocentrismo, milagre do raciocínio que projecta, com um simples olhar, o nosso Sol para o centro do nosso sistema planetário, com a Terra disciplinadamente enviada para uma órbita, de início bem circular, depois crescentemente elíptica e integrada no baile planetário e estelar de que iniciámos a exploração no último século.
Também o atomismo, genial intuição que teorizou, sem quaisquer meios experimentais, a divisão da matéria em minúsculos átomos, a base da Física actual, tão longe das quase ingénuas leis de Arquimedes, que apenas necessitava de um ponto de apoio para levantar a Terra…
Ou a compreensão da Evolução das espécies, a base para a colocação da humanidade no seu lugar na natureza, negando assim as explicações teológicas que foram – e continuam a ser – outros tantos grilhões ao avanço da espécie a que pertencemos.
Todos esses avanços criaram a Ciência, filha dilecta da Filosofia e foi o seu triunfo que trouxe o crescente domínio sobre o Planeta, as suas riquezas, as suas criaturas, mas também a crescente destruição da sua harmonia.
A administração das riquezas obtidas – roubadas, é o termo mais correcto – foi obtida pela força das armas, “justificada”, a cada momento, com os “argumentos” mais falaciosos, baseados numa pseudo-superioridade de povos e etnias sobre outros povos e etnias, religiões e filosofias sobre outras religiões e filosofias.
Os dirigentes dos diversos povos coexistiram com as sucessivas revoluções do conhecimento, geralmente a elas se opondo, procurando negá-las através dum conservadorismo nostálgico de valores ultrapassados e impô-las através das mais selvagens e sangrentas formas de repressão.
É o que ainda hoje se passa num século XXI grávido de avanços científicos e tecnológicos, mas dominantemente governado pela cegueira de criaturas ignorantes e malévolas, tentando impor a todo o custo o regresso às superstições dum passado milenar, o mesmo que é dizer, às catacumbas da humana psique.
Procuram essas criaturas paradoxais aproveitar os progressos tecnológicos tão dificilmente adquiridos sem assumir as conquistas sociais e humanas nelas implicadas.
São “cegos conduzindo outros cegos”, na extraordinária parábola de 1568 do pintor flamengo Bruhegel o Velho. O mistério é como essa massa de cegos se deixa conduzir, directamente ao abismo.


Outras alegorias de sinal equivalente foram desenvolvidas através dos tempos, nomeadamente no romance de Saramago “Ensaio sobre a Cegueira”, publicado em 1995 e levado às telas do cinema em 2008, pela mão do realizador Fernando Meireles.
Nesta obra do nosso Nobel da Literatura, é uma mulher, única sobrevivente da cegueira universal, que conduz os cegos, não para o abismo, mas para a redenção, a salvação da humanidade… Não por acaso, já que é Mulher, vítima também milenar da cegueira do poder e da ignorância.


Alvos fáceis de encontrar, em todas as épocas, para esta feroz crítica à vaga de governantes patologicamente conservadores, ignorantes de todo o conhecimento científico e estupidamente orgulhosos dessa culposa ignorância, que conduz ao negacionismo das conquistas da inteligência humana, especialmente nesta época de ameaça à própria sobrevivência da espécie.
Quando Trump continua a resistir à opinião dos cientistas sobre os cuidados a tomar quanto ao coronavírus, chegando a calar as próprias questões dos jornalistas e a emitir ridículas opiniões pseudocientíficas sobre o assunto, nomeadamente contra a Organização Mundial de Saúde, quando Bolsonaro persiste na sua teimosa e imbecil negação da necessidade de enfrentar a ameaça cada vez mais trágica da pandemia, arriscando irresponsavelmente a vida de milhões de brasileiros, quando Lukashenko, presidente da Bielorrússia aconselha vodca e sauna para tratar o terrível vírus estamos perante a manifestação inegável do grau zero da inteligência.
Cegos incuráveis, não seria urgente mandá-los para férias?

quinta-feira, 9 de abril de 2020



O BAILE DE MÁSCARAS DA SOBREVIVÊNCIA

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 9 de Abril de 2020

As medidas de isolamento que gradualmente têm sido impostas pela maior parte dos governos como forma de enfrentar o coronavírus, têm sido diferentemente aceites pelas respectivas populações, indo da franca adesão e disciplina à anarquia mais desbragada, tornando regra de comportamento a recusa de todas as regras definidas pela Ciência e pelos respectivos governos.
Exceptuando o caso de alguns governantes que teimosa e estupidamente negam as consequências da pandemia, caso de Bolsonaro, até o negacionista da Ciência que Trump ainda é se rende à gravidade da situação e procura tomar as medidas necessárias para deter o vírus e assim salvar os seus eleitores, embora as suas horríveis características pessoais o levem a actos de egoísmo inacreditáveis num tempo trágico como este, quer desviando equipamentos médicos de protecção dos outros países, mesmo de aliados, para os Estados Unidos, quer monopolizando a sua própria produção dos mesmos, ou ainda, tentando comprar o exclusivo de futuras vacinas produzidas ou previstas pelos laboratórios dos países que investigam a cura para o surto epidémico, ao mesmo tempo que mantém o bloqueio de todos os meios aos seus inimigos de estimação, o Irão e Cuba nomeadamente.
E que dizer de Erdogan que literalmente roubou – é o único termo aceitável! – um carregamento de material de protecção comprado à China por diversas comunidades autónomas espanholas, e já pago, confiscado na escala do respectivo avião em Istambul, sob o pretexto de fazer falta na Turquia?! Ou, ainda mais inacreditável, da França, que desviou igualmente material médico destinado aos países mártires que são a Espanha e a Itália?
Este salve-se quem puder não é, felizmente dominante nas relações internacionais, sendo notórios os actos de generosidade de alguns países para com outros, mesmo pertencendo a áreas políticas diferentes e até antagónicas, com o envio de médicos e outro pessoal de saúde para os países mais infectados, caso da Rússia para a Itália, e ainda facilitando o comércio e, até, a venda massiva e, até a doação de máscaras e outro material de protecção pela China.
   Quanto às populações civis dos diversos países, temos assistido incrédulos a comportamentos colectivos de alto risco, quando vemos intermináveis filas de carros invadindo as estradas para gozar os dias mais agradáveis de uma primavera que se anuncia, ou praias e outros lugares de veraneio de todo desaconselhados pela concentração de povo que propicia.
Também a fuga de muitos possuidores de segunda habitação para zonas rurais ou balneares, apesar da proibição legal de o fazerem, põe em grave risco a situação das populações rurais envelhecidas, muito mais vulneráveis à infecção pela pandemia, criando-se grave alarme social, por exemplo em França, mas também na Itália e em Espanha.
Quanto ao nosso país, apesar de uma razoável disciplina manifestada pela população em geral, relativamente às regras definidas pelo estado de emergência que vivemos, assiste-se com frequência a comportamentos desviantes, umas vezes pontualmente, outras com uma frequência preocupante.
É comum vermos pessoas equipadas com luvas de protecção e máscaras a manipular produtos alimentares nos supermercados, como se fossem suficientes para evitar o possível contágio, luvas lançadas para o chão nos parques de estacionamento, ou concentrações de pessoas em número não autorizado.
As autoridades policiais terão que suar bastante para inibir todos os comportamentos de risco propiciados pelo período da Páscoa, em que a sociabilização das festas familiares, embora condenadas pelas autoridades da Saúde, entra em choque frontal com atitudes de generosidade manifestadas por figuras públicas como Ramalho Eanes, ao disponibilizar o ventilador que lhe seria atribuído, em caso de internamento, para “chefes de família”, portanto para os responsáveis por mulheres, crianças e familiares mais jovens, pondo assim em cheque a sua própria sobrevivência.
Cabe aqui um parêntesis sobre esta atitude que, embora aparentemente muito louvável, parece menosprezar o direito dos idosos à sobrevivência em favor das camadas etárias mais jovens, como se houvesse uma linha de separação, a aceitação de um quase direito ao abandono das gerações mais velhas.
A própria utilização da expressão “chefes de família” implica a valorização do conceito de patriarcado como um direito de origem bíblica, aqui invertido do seu sentido original, em ambos os casos condenável, quer a favor, quer contra…
Senhor General, com toda a consideração e simpatia que me merece, nem oito nem oitenta! Quantos homens e mulheres idosos não têm ainda à sua responsabilidade filhos e outros dependentes, tantas vezes maiores de idade, desempregados ou em vias disso? Não seria preferível a assunção do direito à vida, independentemente da idade e, evidentemente, de acordo com os desejos de cada um?
Independentemente de todas as considerações a respeito deste tema, não estou a incluir nesta ordem de ideias os gravíssimos problemas derivados das gigantescas migrações que povoam os perigosíssimos campos de refugiados no Médio Oriente, na Turquia, na Grécia e outras regiões, bombas-relógio prontas a explodir e a agravar a um ponto inacreditável a sobrevivência das respectivas populações, com um previsível efeito de dominó em todo o mundo.
Pelo que nos cabe a nós, Portugueses, privilegiados que somos em tantos aspectos, uma bem pequena obrigação, aquela que vivemos desde o início da pandemia: fiquemos em nossas casas!

sexta-feira, 3 de abril de 2020



A ILHA QUE NÓS SOMOS

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 2 de Abril de 2020

No isolamento destes dias da Peste, os nossos hábitos vão-se retraindo, em parte por imposição da Lei, em parte – é o meu caso – por imperativo da consciência.
Apenas com as janelas abertas ao mundo, num mundo em mutação devido à maldição de um simples vírus, a casa é a minha fortaleza, cercada pela floração de uma Primavera timidamente prometedora da recuperação de uma Natureza exausta.
E os sintomas dessa restauração começam a surgir aqui e ali, não apenas nas águas de novo límpidas das lagunas de Veneza, mas nos ventos e marés, e na Esperança, esse bem precioso que sempre tem sido a última linha de defesa da Humanidade.
Teremos então que olhar esta maldição que, sabemo-lo bem, não poupará muitos de nós, como aliada do nosso ambiente e, assim da nossa própria salvação como espécie, uma segunda oportunidade, portanto.
Não há nestas contraditórias considerações qualquer laivo de optimismo em relação às virtudes da nossa espécie.
Ela decerto sobreviverá, mas não deixará de errar de novo, e de novo, e de novo… reconduzindo o nosso Planeta a novos becos sem saída, até que, se a famosa Evolução que nos conduziu a Senhores da Terra, nos torne os Cuidadores desta esfera maravilhosa em que vivemos e tanto temos martirizado.
Os nossos erros continuarão presentes nas guerras que irão muito para além das gerações actuais, nos genocídios em nome de deuses, pátrias, cores de pele, preconceitos.
Resta-nos agarrarmos com ambas as mãos a herança – essa sim, sagrada – que são o nosso Património cultural, herdado dos gigantes que construíram, com a inocência das crianças, castelos e catedrais, viajaram em todos os Oceanos, chegaram à Lua e atrevem-se a sonhar com longínquas galáxias, escreveram os mais belos textos e compuseram todas as sinfonias, inventando a Beleza, ergueram as vozes em nome de ideais inatingíveis, riram e choraram as suas fraquezas, mas também as suas forças, amaram-se e odiaram-se, desvendaram os mais recônditos segredos da Natureza, viveram e morreram semeando a Terra com as suas sepulturas, sempre prontos a multiplicá-las até ao infinito, sempre prontos a glorificá-las até aos Céus, poeira das estrelas que sempre seremos…
São essas obras a que nos devemos agora agarrar, quando voltamos a procurar razões para continuar a habitar esta Ilha de que fizemos Lar, esta casa cheia de livros, de obras de Arte, de artifício, de criaturas espantosas com que convivemos há milénios e, acima de tudo, de Gente que sofre a injustiça, a frieza, a crueldade até dos seus semelhantes.
De Beleza, de Sonho e de Pesadelo, que erra e continua a errar, procurando uma boa razão para continuar a viver.