sexta-feira, 3 de abril de 2020



A ILHA QUE NÓS SOMOS

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 2 de Abril de 2020

No isolamento destes dias da Peste, os nossos hábitos vão-se retraindo, em parte por imposição da Lei, em parte – é o meu caso – por imperativo da consciência.
Apenas com as janelas abertas ao mundo, num mundo em mutação devido à maldição de um simples vírus, a casa é a minha fortaleza, cercada pela floração de uma Primavera timidamente prometedora da recuperação de uma Natureza exausta.
E os sintomas dessa restauração começam a surgir aqui e ali, não apenas nas águas de novo límpidas das lagunas de Veneza, mas nos ventos e marés, e na Esperança, esse bem precioso que sempre tem sido a última linha de defesa da Humanidade.
Teremos então que olhar esta maldição que, sabemo-lo bem, não poupará muitos de nós, como aliada do nosso ambiente e, assim da nossa própria salvação como espécie, uma segunda oportunidade, portanto.
Não há nestas contraditórias considerações qualquer laivo de optimismo em relação às virtudes da nossa espécie.
Ela decerto sobreviverá, mas não deixará de errar de novo, e de novo, e de novo… reconduzindo o nosso Planeta a novos becos sem saída, até que, se a famosa Evolução que nos conduziu a Senhores da Terra, nos torne os Cuidadores desta esfera maravilhosa em que vivemos e tanto temos martirizado.
Os nossos erros continuarão presentes nas guerras que irão muito para além das gerações actuais, nos genocídios em nome de deuses, pátrias, cores de pele, preconceitos.
Resta-nos agarrarmos com ambas as mãos a herança – essa sim, sagrada – que são o nosso Património cultural, herdado dos gigantes que construíram, com a inocência das crianças, castelos e catedrais, viajaram em todos os Oceanos, chegaram à Lua e atrevem-se a sonhar com longínquas galáxias, escreveram os mais belos textos e compuseram todas as sinfonias, inventando a Beleza, ergueram as vozes em nome de ideais inatingíveis, riram e choraram as suas fraquezas, mas também as suas forças, amaram-se e odiaram-se, desvendaram os mais recônditos segredos da Natureza, viveram e morreram semeando a Terra com as suas sepulturas, sempre prontos a multiplicá-las até ao infinito, sempre prontos a glorificá-las até aos Céus, poeira das estrelas que sempre seremos…
São essas obras a que nos devemos agora agarrar, quando voltamos a procurar razões para continuar a habitar esta Ilha de que fizemos Lar, esta casa cheia de livros, de obras de Arte, de artifício, de criaturas espantosas com que convivemos há milénios e, acima de tudo, de Gente que sofre a injustiça, a frieza, a crueldade até dos seus semelhantes.
De Beleza, de Sonho e de Pesadelo, que erra e continua a errar, procurando uma boa razão para continuar a viver.

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