sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 

A Poupa

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 29 de Outubro de 2020

 


Há muitos anos, estávamos ainda perto de meados do século XX, uma das vocações que mais me atraíam era a busca de regiões remotas ainda por descobrir, com a indispensável dose de Aventura, como se ser caçador, navegante ou explorador, pela terra e pelos mares fosse a própria essência, de uma existência cheia, feliz e perigosa, influenciado que fui pelos livros de Emílio Salgari e Júlio Verne, pela banda desenhada – então chamada “quadradinhos” - de publicações destinadas à juventude, como o mítico “Cavaleiro Andante”, que dava um acesso imediato e simplificado à literatura clássica, embora com o senão de esse acesso ser perigosamente redutor e nem sempre rigoroso.

Seja como for, essas temáticas, mistura de sonhos e realidade, eram indissociáveis da parafernália de livros que gradualmente fui lendo da biblioteca familiar, furiosamente, acriticamente, sem desprezar nenhuns, das obras então consideradas “adultas” às versões ditas juvenis, dedicadas nesses tempos, em que rapazes e raparigas tinham autores específicos do seu género, para os respectivos sexos…

Um rapaz ler Jane Austen ou as Irmãs Brontë era sinal de tendências duvidosas, sendo preferível Stevenson ou Ballantyne, e ficavam os gostos – e, necessariamente, as tendências – arrumados nas tais “gavetinhas” das tradições e preconceitos, ainda hoje em vigor em demasiadas geografias.

Mas adiante, a minha fixação na caça radicava numa atracção – hoje diríamos, muito “americana” – nas armas e no seu poder mortífero. Talvez esse gosto pela violência, desenvolvimento “natural” de tendências genéticas masculinas (?), alimentadas pelo espírito de tribo dos amigos e colegas com a mesma idade e os mesmos gostos, alimentasse esse gosto paradoxal pela destruição dos objectos amados, neste caso os animais selvagens.

Paradoxal também esse amor à Natureza, que tentava representar artisticamente, de que é exemplo a Poupa que representei numa aula de Desenho do Liceu, depois de ter abatido um exemplar com a recém-estreada espingarda de pressão de ar oferecida pelos meus Pais.

Ciente de que o verdadeiro caçador só caça para se alimentar – era um passo apenas, mas um passo - para a justificação de uma actividade que já considerava algo censurável, fiz cozinhar a “peça de caça”, cujo gosto me repugnou, convém que se diga…

Depois disso nunca mais atirei em ser vivo, limitado agora ao muito mais saudável tiro ao alvo, e as minhas passadas tendências vocacionais passaram para dois poderosos pólos, a História e as Ciências Naturais.

Dei-me à História, que me apaixona, mas nunca abandonei o meu gosto pelos animais. É preito deste gosto – paixão – o regresso ao meu desenho da Poupa, neste caso embalsamada numa prateleira da sala de Biologia do meu Liceu e agora publicada nestas páginas.

Foi classificada com Muito Bom, e é essa marca que deixo do passado, que poderia ter sido diferente nas suas consequências.

Há poucos anos, uma poupa visitou demoradamente o quintal da minha casa em Tomar, em dois anos seguidos. Depois, desapareceu da minha vista, até agora.

Terei sido perdoado?


sexta-feira, 16 de outubro de 2020

 

À PROCURA DAS PALAVRAS PERDIDAS

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 15 de Outubro de 2020

 

Em nenhuma época da História se escreveu tanto sobre seja o que for, e a quantidade de texto produzido, como naturalmente teria que acontecer, pelo seu volume crescente, não se compadece com a natureza equilibrada que devia presidir à sua redacção.

Porque quantidade e qualidade nunca se deram bem, e hoje toda a gente escreve, sentindo-se democraticamente autorizada pelo veículo de excelência da difusão de ideias, as redes sociais, que aceitam todas as agressões, gramaticais ou ideológicas com a natural complacência das antigas ardósias escolares, as quais tinham pelo menos a virtude de ao serem apagadas, logo caírem num misericordioso esquecimento.

Como se fosse pouca a difusão electrónica das opiniões de todos os que julgam saber escrever, muitos desses textos apoderam-se do qualificativo de “literatura” e são impressos aos milhões, alimentados pela vaidade dos autores, o acriticismo dos “especialistas” – muito menos especializados do que se julgam, ou os julgam, e ainda menos competentes – e, muitas vezes, o cálculo dos grupos de pressão ideológica movidos pela política de baixo escrúpulo de que o populismo hoje invasor, é o pior exemplo.

É que não basta aplicar as regras gramaticais para se escrever correctamente, e essas, coitadas, já vão bem longe das aspirações de 90% dos escrevinhadores, para mais confrontados com um “Acordo ortográfico” incompreensível, metodológica e esteticamente.

Por isso recuso-me a segui-lo, lamentando tal aberração, até pelo facto de ter sido promovido por personalidades com grandes responsabilidades na Cultura portuguesa e que ainda consigo respeitar, apesar da gigantesca dúvida que agora me suscitam pela sua submissão a modas e políticas que acabam por corromper a nossa bela Língua.

Mas adiante, no emaranhado da comunicação outras formas de escrever se vão impondo, conquistando principalmente uma juventude com escassa formação linguística que, em alucinantes mensagens de telemóvel vão impondo novas modas no falar e no escrever.

Parece que há aqui uma “urgência” de nada dizer excepto os lugares-comuns que a preguiça e a ignorância incentivam.

Claro que esta prática não nasceu em Portugal, mas nos poderosos Estados Unidos, difundindo-se por todo o planeta sob formas o mais básicas possível, que vão retirando às diversas línguas a sua originalidade, a beleza e a pureza das coisas simples, amadurecidas pela prática social e enriquecidas pelas aquisições que o conhecimento faculta.

As contradições nascidas deste desenvolvimento pouco harmónico das formas de falar e escrever, conduzem a meu ver, ao empobrecimento do próprio pensamento racional, desde sempre a reboque da sua expressão material, sendo esta a principal consequência daquele.

O desenvolvimento das nossas competências racionais não pode ficar à margem do uso das palavras, estas cada vez mais desvalorizadas – telegraficamente desvalorizadas! – mesmo no uso mais nobre da palavra escrita e falada, a Literatura.

Palavras, leva-as o vento, dizem… mas há palavras e palavras, muitas delas tesouros em vias de extinção. Preservemo-las enquanto é tempo!

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

 

O ULTIMATO DE UM EMBAIXADOR POUCO DIPLOMÁTICO

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 8 de Outubro de 2020

             Há 130 anos Portugal foi ameaçado pela maior superpotência da época, o Reino Unido, o país com quem mantínhamos – mantemos – a mais antiga aliança da nossa História, de corte de relações e invasão armada, se não abandonasse a região africana designada como Mapa Cor-de-Rosa, zona africana entre Angola e Moçambique, compreendida entre os actuais Zimbabwe e Zâmbia, negociada na Conferência de Berlim (1884-85) com as restantes potências europeias coloniais e ainda com a Bélgica de Leopoldo II que através de manobras incrivelmente maquiavélicas se juntara a esse concerto de espoliadores para assim abocanhar um dos pedaços mais apetitosos de um continente a saque.

Portugal bem esgrimiu um hipotético direito histórico – “arqueológico” no dizer dos ingleses – devido às Descobertas, que acabou por ser humilhantemente ignorado, visto o referido território do Mapa Cor-de-Rosa, que unia Angola à Contracosta – Moçambique – interferir com o programa imperial do Reino Unido, apadrinhado por Cecil Rhodes, que pretendia utilizar esse enorme espaço geográfico para unir por um ferrovia contínua o Cairo – protectorado britânico – com a Cidade do Cabo.

Da ferrovia o plano acabou no esquecimento devido aos enormes obstáculos físicos e económicos a tal empreendimento, mas as consequências políticas da rendição portuguesa ao poder britânico saldaram-se num profundo descontentamento social, na ascensão republicana, na criação do nosso Hino Nacional, na falhada revolução de 31 de Janeiro de 1891 e, em última análise, no regicídio e na implantação da República em 1910.

Agora, em pleno século XXI, a superpotência que agora substitui o Reino Unido no domínio do planeta, os Estados Unidos da América, pela mão do inacreditável Donald Trump e do seu embaixador em Lisboa, George Glass, lança descaradamente a Portugal uma bofetada equivalente, ao pretender obrigar o nosso País a afastar a empresa chinesa Huawey da expansão da tecnologia 5G, assim suplantando a sua concorrência com as grandes empresas norte-americanas do sector, sob pena de retaliações económicas sobre a “influência maligna” da China.

Independentemente de outras considerações, nomeadamente das pressões já efectuadas pelos EUA sobre os nossos aliados da União Europeia, a coação sobre Portugal parece tão mais humilhante, que o nosso ministro Santos Silva acabou por responder à letra às ameaças bem musculadas de Glass, respondendo que “em Portugal, as decisões são tomadas pelas autoridades competentes”, legalmente e à margem de quaisquer pressões externas.

Portugal portar-se-á “bem”, não de acordo com o medo, como Trump evidentemente pensa tudo conseguir, mas no concerto da nossa União e de acordo com os interesses europeus.

O tempo dos diktat acabou com Hitler… ou continua pela História dentro?