A Poupa
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 29 de Outubro de 2020
Há muitos anos, estávamos
ainda perto de meados do século XX, uma das vocações que mais me atraíam era a busca
de regiões remotas ainda por descobrir, com a indispensável dose de Aventura,
como se ser caçador, navegante ou explorador, pela terra e pelos mares fosse a
própria essência, de uma existência cheia, feliz e perigosa, influenciado que
fui pelos livros de Emílio Salgari e Júlio Verne, pela banda desenhada – então
chamada “quadradinhos” - de publicações destinadas à juventude, como o mítico
“Cavaleiro Andante”, que dava um acesso imediato e simplificado à literatura
clássica, embora com o senão de esse acesso ser perigosamente redutor e nem
sempre rigoroso.
Seja como for,
essas temáticas, mistura de sonhos e realidade, eram indissociáveis da
parafernália de livros que gradualmente fui lendo da biblioteca familiar, furiosamente,
acriticamente, sem desprezar nenhuns, das obras então consideradas “adultas” às
versões ditas juvenis, dedicadas nesses tempos, em que rapazes e raparigas
tinham autores específicos do seu género, para os respectivos sexos…
Um rapaz ler Jane
Austen ou as Irmãs Brontë era sinal de tendências duvidosas, sendo preferível
Stevenson ou Ballantyne,
e ficavam os gostos – e, necessariamente, as tendências – arrumados nas tais “gavetinhas”
das tradições e preconceitos, ainda hoje em vigor em demasiadas geografias.
Mas adiante, a
minha fixação na caça radicava numa atracção – hoje diríamos, muito “americana”
– nas armas e no seu poder mortífero. Talvez esse gosto pela violência,
desenvolvimento “natural” de tendências genéticas masculinas (?), alimentadas
pelo espírito de tribo dos amigos e colegas com a mesma idade e os mesmos
gostos, alimentasse esse gosto paradoxal pela destruição dos objectos amados,
neste caso os animais selvagens.
Paradoxal também
esse amor à Natureza, que tentava representar artisticamente, de que é exemplo
a Poupa que representei numa aula de Desenho do Liceu, depois de ter abatido um
exemplar com a recém-estreada espingarda de pressão de ar oferecida pelos meus
Pais.
Ciente de que o
verdadeiro caçador só caça para se alimentar – era um passo apenas, mas um
passo - para a justificação de uma actividade que já considerava algo censurável,
fiz cozinhar a “peça de caça”, cujo gosto me repugnou, convém que se diga…
Depois disso
nunca mais atirei em ser vivo, limitado agora ao muito mais saudável tiro ao
alvo, e as minhas passadas tendências vocacionais passaram para dois poderosos
pólos, a História e as Ciências Naturais.
Dei-me à
História, que me apaixona, mas nunca abandonei o meu gosto pelos animais. É
preito deste gosto – paixão – o regresso ao meu desenho da Poupa, neste caso
embalsamada numa prateleira da sala de Biologia do meu Liceu e agora publicada
nestas páginas.
Foi classificada
com Muito Bom, e é essa marca que deixo do passado, que poderia ter sido
diferente nas suas consequências.
Há poucos anos,
uma poupa visitou demoradamente o quintal da minha casa em Tomar, em dois anos
seguidos. Depois, desapareceu da minha vista, até agora.
Terei sido
perdoado?