TOMAR: O ESPAÇO E O TEMPO
Da
Romanização à Idade Média
Carlos Veloso
(“O Templário”, 20 de Julho de 2017)
É um
dado universalmente reconhecido a singularidade do traçado urbano de Tomar que,
desde os tempos medievais, corresponde, muito ao contrário do que era uso nessa
época, a uma regularidade e harmonia que apenas encontra paralelo na malha
urbana das antigas cidades provinciais fundadas pelos Romanos, caso de Timgad —
no Norte de África — cuja ocupação, relativamente curta, permitiu
preservar-lhes o traçado antes que um desenvolvimento desordenado tudo
adulterasse…
Se é
difícil encontrar ainda plantas "em
tabuleiro de xadrez", com as suas ruas principais — o cardo e decumano
máximos — cruzando-se perpendicularmente no Forum, e todas as outras paralelas
a estas, a verdade é que não precisamos de sair do território da antiga
Lusitânia Romana para encontrarmos alguns vestígios dessa extraordinária
regularidade e planeamento urbanos, tradicionalmente atribuídos a Hipódamo de
Mileto, mas mais provavelmente inspirados na disciplina militar do acampamento
romano. Bom exemplo é, Emerita Augusta actual cidade espanhola de Mérida, antiga
capital da Lusitânia, fundada por Augusto em 25 a.C, cujo traçado viário revela
a indesmentível influência de toda a teorização hipodâmica e, também, vitruviana.
No nosso
território nacional, a cidade romana mais famosa e também a mais escavada, é
Conimbriga, vizinha de Condeixa-a-Velha. Nas traseiras do Forum de Augusto
foram identificadas algumas casas modestas que os urbanistas romanos pouparam
da demolição efectuada para a edificação do monumento. O que resta desse bairro
pré-imperial permite pensar num plano regular das ruas, cruzando-se quase
perpendicularmente. A rua que margina a sul o referido Forum seria,
provavelmente, o decumano máximo da urbe.
Os vestígios
de outras cidades romanas em território português, não permitem tirar grandes
conclusões quanto ao seu tecido urbano, no entanto o urbanismo de Aquae
Flaviae, actual Chaves, parece ter marcado profundamente o traçado da zona
central da cidade dos nossos dias a qual, longe de exibir o anárquico urbanismo
medieval que marca o centro da maioria das nossas cidades antigas, faz pensar
numa continuidade entre a Antiguidade e os tempos actuais.
Esse
mesmo tipo de raciocínio ocorre facilmente em relação a Tomar e à sua
antecessora, Sellium. Apesar de ser ainda
limitada a área escavada, a verdade é que a localização do Forum, bem
como a sua relação com as "insulae" e os vestígios de cardos menores,
tudo na margem esquerda do Nabão, apontam para a "orientação e projecção
ortogonal da cidade". De facto, o trabalho arqueológico relativo à
ocupação romana e medieval, em boa parte coordenado pela arqueóloga Salete da
Ponte, vem obtendo um cada vez mais exacto conhecimento da malha urbana de
Tomar. A hipótese da sua eventual transposição para a margem direita, mereceria
igualmente ser tomada em consideração.
Se é
verdade que é inaceitável tirar ilações
a partir de factos não provados ou de simples intuições, um simples olhar sobre
a planta actual de Tomar, e muito especialmente no que toca à margem
"medieval", logo chama a atenção pela regularidade do seu traçado,
transparentemente hipodâmico, nada medieval, portanto… A tradição de ser o
planeamento urbanístico obra do Infante D. Henrique, Governador e Administrador
da Ordem de Cristo desde 1420, por muito sedutora que pareça, carece igualmente
de provas formais. Chamar-lhe plano renascentista também não convence, já que a
introdução de uma estética classicista apenas se inicia, timidamente, no
reinado de D. Manuel I, encontrando o seu pleno apenas com D. João III… E
convém não esquecer que a primeira cidade renascentista "integralmente
planeada" surge entre 1457 e 1464, delineada por Filarete, na melhor das
hipóteses três anos antes da morte do Infante, para mais obedecendo a uma
concepção muito afastada do hipodamismo! A haver "plano
quatrocentista", deve ter-se conformado com as vias pré-existentes, como
provavelmente aconteceu em Chaves e noutros locais.
Se
Sellium era, como se depreende da ausência de vestígios de muralhas, uma cidade
aberta, segura pela Pax Romana, nada obsta a que o seu traçado se alargasse,
naturalmente, à outra margem do rio. A insegurança dos últimos tempos do
Império, marcados pelo temor colectivo e invasões várias, teria assim conduzido
ao relativo despovoamento do primeiro núcleo urbano, demasiado exposto
militarmente — embora em zona mais salubre — e à preferência pela proximidade
do monte, provavelmente fortificado. Futuras pesquisas e o estudo do espólio já
recolhido, conduzirão decerto a uma maior aproximação ao traçado urbanístico da
cidade romana. Quanto às origens da urbanística da margem direita, só a
concretização de um plano de prospecção sistemática permitirá tirar conclusões
que ultrapassem o estádio meramente especulativo em que nos encontramos.
No
entanto, o recurso à etnografia local permite também tirar algumas conclusões
interessantes: o crescimento e irradiação do culto de Santa Iria em Tomar
contradiz as teses do “ermamento”, tão em voga desde Alexandre Herculano, segundo
a qual desde a conquista muçulmana (711) à fundação do castelo templário, em
1160 a região de Tomar se teria tornado um autêntico deserto, assombrado apenas
pelas ruínas dos velhos edifícios.
Como
explicar então a continuidade verificada na agricultura local, especialmente ao
nível de sistemas hidráulicos? Como explicar tantos topónimos de origem árabe,
o desenvolvimento de culturas mediterrânicas, ou as novas árvores de fruto
introduzidas, ou alguns vestígios encontrados em escavações no Convento de Cristo,
possivelmente de origem moçárabe?
Considero
muito provável uma ocupação contínua desta região desde o período romano aos
nossos dias, certamente com períodos de decréscimo demográfico, mas com um
certo número de edifícios e de instituições, principalmente religiosas, a
organizar e coordenar esforços e a manter acesa a chama cultural, reavivada
após a Reconquista e a reactivação da vila. O historiador José Mattoso acentua
precisamente o papel dos moçárabes na manutenção do culto de diversos santos nacionais,
levantando a hipótese de terem sido os mesmos moçárabes agentes do crescimento
de outros cultos nacionais, como o de Santa Iria, em Tomar. De que outros
moçárabes se trataria, neste caso, senão dos cristãos nabantinos sob o domínio
árabe?
Sem comentários:
Enviar um comentário