sábado, 22 de julho de 2017


TOMAR: O ESPAÇO E O TEMPO
Da Romanização à Idade Média

Carlos Veloso

(“O Templário”, 20 de Julho de 2017)

            É um dado universalmente reconhecido a singularidade do traçado urbano de Tomar que, desde os tempos medievais, corresponde, muito ao contrário do que era uso nessa época, a uma regularidade e harmonia que apenas encontra paralelo na malha urbana das antigas cidades provinciais fundadas pelos Romanos, caso de Timgad — no Norte de África — cuja ocupação, relativamente curta, permitiu preservar-lhes o traçado antes que um desenvolvimento desordenado tudo adulterasse…
            Se é difícil encontrar  ainda plantas "em tabuleiro de xadrez", com as suas ruas principais — o cardo e decumano máximos — cruzando-se perpendicularmente no Forum, e todas as outras paralelas a estas, a verdade é que não precisamos de sair do território da antiga Lusitânia Romana para encontrarmos alguns vestígios dessa extraordinária regularidade e planeamento urbanos, tradicionalmente atribuídos a Hipódamo de Mileto, mas mais provavelmente inspirados na disciplina militar do acampamento romano. Bom exemplo é, Emerita Augusta actual cidade espanhola de Mérida, antiga capital da Lusitânia, fundada por Augusto em 25 a.C, cujo traçado viário revela a indesmentível influência de toda a teorização hipodâmica e, também, vitruviana.
            No nosso território nacional, a cidade romana mais famosa e também a mais escavada, é Conimbriga, vizinha de Condeixa-a-Velha. Nas traseiras do Forum de Augusto foram identificadas algumas casas modestas que os urbanistas romanos pouparam da demolição efectuada para a edificação do monumento. O que resta desse bairro pré-imperial permite pensar num plano regular das ruas, cruzando-se quase perpendicularmente. A rua que margina a sul o referido Forum seria, provavelmente, o decumano máximo da urbe.
            Os vestígios de outras cidades romanas em território português, não permitem tirar grandes conclusões quanto ao seu tecido urbano, no entanto o urbanismo de Aquae Flaviae, actual Chaves, parece ter marcado profundamente o traçado da zona central da cidade dos nossos dias a qual, longe de exibir o anárquico urbanismo medieval que marca o centro da maioria das nossas cidades antigas, faz pensar numa continuidade entre a Antiguidade e os tempos actuais.
            Esse mesmo tipo de raciocínio ocorre facilmente em relação a Tomar e à sua antecessora, Sellium. Apesar de ser ainda  limitada a área escavada, a verdade é que a localização do Forum, bem como a sua relação com as "insulae" e os vestígios de cardos menores, tudo na margem esquerda do Nabão, apontam para a "orientação e projecção ortogonal da cidade". De facto, o trabalho arqueológico relativo à ocupação romana e medieval, em boa parte coordenado pela arqueóloga Salete da Ponte, vem obtendo um cada vez mais exacto conhecimento da malha urbana de Tomar. A hipótese da sua eventual transposição para a margem direita, mereceria igualmente ser tomada em consideração.
            Se é verdade que é inaceitável  tirar ilações a partir de factos não provados ou de simples intuições, um simples olhar sobre a planta actual de Tomar, e muito especialmente no que toca à margem "medieval", logo chama a atenção pela regularidade do seu traçado, transparentemente hipodâmico, nada medieval, portanto… A tradição de ser o planeamento urbanístico obra do Infante D. Henrique, Governador e Administrador da Ordem de Cristo desde 1420, por muito sedutora que pareça, carece igualmente de provas formais. Chamar-lhe plano renascentista também não convence, já que a introdução de uma estética classicista apenas se inicia, timidamente, no reinado de D. Manuel I, encontrando o seu pleno apenas com D. João III… E convém não esquecer que a primeira cidade renascentista "integralmente planeada" surge entre 1457 e 1464, delineada por Filarete, na melhor das hipóteses três anos antes da morte do Infante, para mais obedecendo a uma concepção muito afastada do hipodamismo! A haver "plano quatrocentista", deve ter-se conformado com as vias pré-existentes, como provavelmente aconteceu em Chaves e noutros locais.
            Se Sellium era, como se depreende da ausência de vestígios de muralhas, uma cidade aberta, segura pela Pax Romana, nada obsta a que o seu traçado se alargasse, naturalmente, à outra margem do rio. A insegurança dos últimos tempos do Império, marcados pelo temor colectivo e invasões várias, teria assim conduzido ao relativo despovoamento do primeiro núcleo urbano, demasiado exposto militarmente — embora em zona mais salubre — e à preferência pela proximidade do monte, provavelmente fortificado. Futuras pesquisas e o estudo do espólio já recolhido, conduzirão decerto a uma maior aproximação ao traçado urbanístico da cidade romana. Quanto às origens da urbanística da margem direita, só a concretização de um plano de prospecção sistemática permitirá tirar conclusões que ultrapassem o estádio meramente especulativo em que nos encontramos.
            No entanto, o recurso à etnografia local permite também tirar algumas conclusões interessantes: o crescimento e irradiação do culto de Santa Iria em Tomar contradiz as teses do “ermamento”, tão em voga desde Alexandre Herculano, segundo a qual desde a conquista muçulmana (711) à fundação do castelo templário, em 1160 a região de Tomar se teria tornado um autêntico deserto, assombrado apenas pelas ruínas dos velhos edifícios.
            Como explicar então a continuidade verificada na agricultura local, especialmente ao nível de sistemas hidráulicos? Como explicar tantos topónimos de origem árabe, o desenvolvimento de culturas mediterrânicas, ou as novas árvores de fruto introduzidas, ou alguns vestígios encontrados em escavações no Convento de Cristo, possivelmente de origem moçárabe?

            Considero muito provável uma ocupação contínua desta região desde o período romano aos nossos dias, certamente com períodos de decréscimo demográfico, mas com um certo número de edifícios e de instituições, principalmente religiosas, a organizar e coordenar esforços e a manter acesa a chama cultural, reavivada após a Reconquista e a reactivação da vila. O historiador José Mattoso acentua precisamente o papel dos moçárabes na manutenção do culto de diversos santos nacionais, levantando a hipótese de terem sido os mesmos moçárabes agentes do crescimento de outros cultos nacionais, como o de Santa Iria, em Tomar. De que outros moçárabes se trataria, neste caso, senão dos cristãos nabantinos sob o domínio árabe?

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