TOMAR: O ESPAÇO E O TEMPO.
DESTRUIÇÃO
DO PATRIMÓNIO EDIFICADO
Carlos Rodarte Veloso
(“O Templário”, 27 de Julho de
2017)
Darei
agora um salto de alguns séculos sobre esta cidade, cujo desenvolvimento harmónico,
até meados de Oitocentos, não é grandemente perturbado. A sua época áurea
corresponde aos períodos manuelino e renascentista, sendo o Convento de Cristo
e os monumentos que lhe estão associados a súmula de todos os resultados
artísticos desse período.
Se o Centro Histórico de Tomar se destaca ainda hoje entre os mais espectaculares do nosso País, a verdade é que o cerco do cimento armado se lhe vem apertando, enquanto franjas do urbanismo antigo foram já de todo tragadas por uma visão tecnocrática do Progresso visto apenas como inovação técnológica. Como se fosse pouco o cerco do cimento, ele infiltra-se em pleno Centro Histórico, substituindo as velhas cantarias e criando um urbanismo "de fachada", numa espécie de novo revivalismo, que ainda não é "pimba", mas para lá caminha…
E quem quiser ver e tocar no produto de anos e anos de destruição e pilhagem, vá ao piso térreo do Claustro da Lavagem do Convento de Cristo (ver imagens) apreciar o verdadeiro amontoado de cantaria de dezenas de edifícios já desaparecidos e de outros hoje mutilados, desfigurados, geralmente irreconhecíveis: pilastras, arquitraves, colunas, balaustradas, mísulas, capitéis, esculturas, pedras de armas, tudo das mais diversas épocas… um nunca acabar de referências a apontar o dedo acusador a todos nós, herdeiros — e continuadores… — de tantos e tantos depredadores do nosso Património artístico…
Este surto de demolições de que foi vítima a arquitectura antiga de Tomar, embora iniciado em meados do século XIX, teve o seu apogeu sob o chamado "Estado Novo", nos anos Vinte e Trinta do nosso século, e prolongou-se até 1968, data em que um notável edifício quinhentista foi totalmente desmontado e voltado a montar — com "melhoramentos"… — apenas para alargar a faixa de rodagem fronteira… em pleno Centro Histórico! Até há alguns anos Biblioteca Municipal, é hoje dedicada a Manuel Guimarães e, aparentemente, nem foi muito alterada, apesar da destruição da escadaria exterior e respectivo alpendre, típica da construção civil de Tomar… Apenas anos antes tinha sido arrasado o que restava do que fora o maior complexo arquitectónico civil da Cidade, os edifícios dos Cubos da Ordem de Cristo, com origens medievais e remodelações dos séculos XVI ao XVIII! Motivo: a construção da Ponte Nova sobre o Nabão, planeada para passar, precisamente, pelo local daquelas construções!… Em 1955, uma casa quinhentista da Rua da Graça, com varanda alpendrada e boa colunata, a que dava acesso uma escadaria, fora demolida sem contemplações, para no seu lugar se construir um edifício de quatro andares, em flagrante contraste com a zona histórica em que se integrava.
A política de obras públicas do “Estado Novo”, ao mesmo tempo que prosseguia, com redobrado vigor, a destruição do património civil tomarense, veio a aproveitar muitas dessas pedras trabalhadas em fachadas e interiores de pompa e circunstância, destinadas a prestigiar o regime ou, até, as casas particulares de apoiante seus. Assim fez, no primeiro caso, relativamente à Casa do Turismo, edifício aliás admirável, construída na década de Trinta, ao gosto revivalista, integrando belíssimas janelas e portais renascentistas, provenientes de edifícios entretanto demolidos na febre de "modernização na continuidade" que constituía a "imagem de marca" do regime… Assim fez erguendo, em 1955, à entrada do Bairro Salazar – hoje 1º de Maio – a Capela de Santo António, cujas cantarias são, na sua totalidade, provenientes da capela renascentista de Santo António dos Brasões, demolida dez anos antes… Aqui vemos uma pouco discreta homenagem ao ditador, prática comum nesses "bons velhos tempos"… A recente recuperação dos Cubos e de outros edifícios quinhentistas vem atenuar um pouco as perdas dos séculos XIX e XX, e a Vida continua...
Chegamos pois ao fim desta triste peregrinação entre ruínas, bem menos românticas que as que eram apreciadas pelos nossos avós… Na verdade não podemos continuar na expectativa do irremediável. O Centro Histórico de Tomar é ainda dos mais notáveis e — espantosamente! — dos mais bem conservados do País. O seu urbanismo, a beleza e harmonia das construções, o muito amor que lhe têm os seus habitantes ter-lhe-ia merecido plenamente, do mesmo modo que ao Convento de Cristo, a classificação como Património Mundial. Ainda estamos a tempo!
(Fotos de Carlos Rodarte Veloso)
Sem comentários:
Enviar um comentário