SERRALVES. SEXO E TABU NO SÉCULO XXI
Carlos Rodarte Veloso
"O Templário", 27-9-2018
A época pretensamente livre que hoje vivemos denota, em todas as suas manifestações, contradições que de dia para dia se tornam mais evidentes, a ponto de nos perguntarmos se houve de facto uma evolução significativa nos comportamentos e na própria liberdade sexual que aparentemente teria agora atingido o seu ponto mais alto.
Isto a acreditarmos nos inúmeros censores que sempre diabolizaram a expressão mais espontânea do comportamento humano, o sexo, a afirmação do género voluntariamente assumido, o prazer físico, tudo quanto aumenta a vontade de estar vivo e activo.
Isto a propósito da exposição de fotografias de Robert Mapplethorpe agora apresentada no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, cujo conteúdo sexual implícito ou explícito, tem causado fortes reacções de puritanismo por parte da administração da instituição, que, segundo João Ribas, director artístico do Museu agora demissionário, teria interditado a sua visionamento a menores de 18 anos, ao mesmo tempo que teria retirado vários exemplares considerados mais chocantes.
Este diferendo é justificado de parte a parte com diversas razões e ataques que me abstenho de comentar, até porque este “dizes tu direi eu” que implica também declarações contra João Ribas por parte da Fundação Robert Mapplethorpe, está longe de estar esclarecido, ou seja, de quem é a iniciativa de censurar uma vasta obra artística de um dos maiores fotógrafos mundiais ou, no limite, se foi mesmo censurada.
No entanto e sem tomar partido por qualquer das partes até completo esclarecimento dos factos, há uma causa que não hesito em abraçar: a condenação mais veemente de qualquer forma de censura da Arte, tendência que desde Maio de 1968, a partir da Revolta Estudantil francesa, foi devidamente enquadrada na palavra de ordem “é proibido proibir”.
A condenação de imagens explícitas do sexo e do próprio corpo humano é já milenar, nascida na Alta Idade Média na sequência da queda do império romano e da consequente vitória do Cristianismo. As únicas excepções eram a representação de Adão e Eva, das cenas do Inferno e, posteriormente das Almas do Purgatório, únicos casos em que os nus eram permitidos. Porque sexo e corpo humano passaram a ser diabolizados sistematicamente, como se a própria igreja não os considerasse obra de um deus que fizera a humanidade à sua imagem e semelhança.
O Renascimento atenuou este interdito, com a glorificação dos nus heróicos ou francamente sensuais da Mitologia Clássica, que invadiram os palácios dos próprios papas e outros príncipes da Igreja. A beleza e harmonia destas obras-primas de génios da pintura e da escultura como Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci ou Botticelli, levou ao coração do Vaticano este gosto pronunciadamente pagão, nomeadamente ao tecto da Capela Sistina, com o mecenato de papas como Júlio II.
Claro que a Contra-Reforma, apoiada pela censura inquisitorial lidava contraditoriamente com esta licença herética e o Concílio de Trento tratou de proibir todas as manifestações de arte “pagã”, ao menos no interior das igrejas.
A Revolução Francesa e todas as revoluções liberais acentuaram a permissão e o gosto pelo nu, sob as mais diversas formas, muitas vezes sob o pretexto da representação de alegorias laudatórias dos novos valores dos séculos XIX e início do XX, a Pátria, a Raça, a Nação, o Império, que fomentaram as guerras mais sangrentas da História.
Mas a glorificação do corpo humano passou a estar presente, mesmo com todas as hipócritas reservas que o tabu sexual impunha. Porque havia uma estranha dissociação entre o nu e o sexo, mas apenas o sexo explícito, porque imagens de incontida sensualidade invadiam as galerias da época vitoriana, para não falar das colecções particulares, onde a própria pornografia era regra.
O final do século XX e o nosso início do XXI pareciam não ter peias no domínio da representação artística – e não só – do sexo, implícito ou explícito. Nas Artes Plásticas, no Teatro, no Cinema, a grande arte do nosso tempo. As próprias manifestações de alternativas sexuais, até então consideradas como manifestações patológicas, são autorizadas e publicamente defendidas por multidões que se agregam em torno da liberdade de género.
Mas nos últimos anos um “manto diáfano” recomeçou a disfarçar a “nudez forte da Verdade”, na frase genial de Eça de Queirós, manto esse cada vez menos diáfano, por vezes em nome da protecção de sensibilidades religiosas como a dos muçulmanos radicais ou de cristãos ultraconservadores, sempre atentos à “ameaça” do Inimigo com maiúsculas, o Demónio…
A preocupação, agora a invadir as redes sociais, de que menores possam ver imagens chocantes para estes adultos ultra-sensíveis, torna-se bastante ridícula face ao acesso desses mesmos menores a conteúdos não apenas sexuais, mas verdadeiramente pornográficos, a caricatura acabada do sexo.
Como se as fotografias de Mapplethorpe fossem um “cavalo de Tróia” destinado a modificar as próprias tendências sexuais ou a opção de género seja de quem for. Como se, mais uma vez, a homossexualidade ou outras opções de vida fossem doenças!