O ETERNO NATAL
Carlos Rodarte Veloso
“O
Templário”, 27 de Dezembro de 2018
Há dez anos exactamente,
publiquei no Cidade de Tomar um artigo intitulado “Um Natal no Século XXI”, já eclipsadas então, de todo, as
esperanças que os novos século e milénio prometiam à Humanidade.
A guerra e o terrorismo
marcavam de novo, mais impiedosamente do que antes, o desencanto que sucedera à
tão esperançosa queda do “Muro da Vergonha”, não podendo sequer imaginar-se o
próximo levantamento de outros muros, não menos vergonhosos, um na terra dita
“Santa” e outro, agora, na fronteira da outra Terra Prometida, a fabulosa
“América”, abusivamente tomada a parte pelo todo.
Isto leva-nos, a talhe
de foice, à farsa grotesca do actual inquilino da Casa Branca, ao paralisar o
Estado que representa e diz defender, como represália para a recusa dos
Democratas em autorizar as derradeiras despesas com a construção do referido
Muro, que só poderei classificar como “do Ódio”. Uma birra com o seu quê de
infantil mas com consequências inevitavelmente trágicas.
Entretanto Bolsonaro, no
“Cone Sul” da América, e novos candidatos a ditadores, por toda a Europa,
destilam mais e mais ódio, brincando irresponsavelmente com o povo dos países
que lhes coube governar enquanto as Democracias sobreviventes resistem
dificilmente ao ataque de populismos que já se revêm nas ruas, trajados de
amarelo ou com os símbolos de um passado sinistro, de “noites de cristal”,
campos de concentração, fornos crematórios…
No entanto, o Natal
mantém ainda a imagem onírica de um Tempo do Nunca, disfarçando com os cenários
diáfanos que todos os anos constrói, uma realidade cada vez mais nua e crua.
Cada vez mais feia.
E
isso no aniversário fictício de um Menino que não nasceu decerto em 25 de
Dezembro, nem sequer no ano 1 da nossa era, e que morreu e ressuscitou aos 33
anos, para nos salvar. A fé terá aqui a palavra definitiva, porque ninguém se
pode sentir salvo apenas por causa de um exemplo de auto-sacrifício levado ao
extremo, de um indivíduo cuja vida e acções são testemunhadas apenas por uns
tantos Evangelhos, entre canónicos e apócrifos, na maior parte contraditórios
entre si.
E
é precisamente nesta imprecisão histórica que reside o encanto poético de um
nascimento cercado de profecia e sortilégio, numa terra pobre dominada por
estrangeiros, a mesma terra onde correram rios de sangue e não o leite e o mel
da profecia veterotestamentária… a mesma terra que agora o “Povo Eleito” veda
aos seus conterrâneos.
Gravura: “O almoço do trolha”, pintura de
Júlio Pomar, um Presépio do século XX
Não
foi o Menino, nem o Homem a que deu lugar, que construiu o poder avassalador,
que construiu uma civilização que, gradualmente, ocupou o mundo inteiro. Foram
os que, mansa, melifluamente, se apoderaram do seu legado de bondade e amor, e
o converteram em força.
Numa grande força que tão bem soube forçar os espíritos e os
corpos. Assim pôde construir um mundo à medida dos seus interesses, sempre em
nome dele... Em nome Dele, porque
nem a letra minúscula permitiram à sua humildade!
Passaram
dois mil e tal anos sobre essa noite mágica nascida nas mentes daqueles que um
dia se chamaram cristãos, daqueles que tantas vezes renegaram essa fraternidade
e se massacraram mutuamente. E mesmo cada vez mais distantes da fé original, repetem
os gestos sacramentais, as tradições populares e algumas importadas, os pastores, o rebanho, a sagrada
família e o musgo e a areia com que vão cobrir os caminhos sinuosos do
Presépio, como Francisco de Assis e os seus Irmãos, irmãos também dos animais e
do vento, do sol e da chuva... irmãos do papa Francisco, frágil esperança dessa
Igreja de Cristo, que nunca existiu. E a Noite, a luminosa, estrelada Noite,
contemplará, uma vez mais, esse símbolo de paz, justiça e fraternidade.