quinta-feira, 30 de maio de 2019



ARQUITECTURA EFÉMERA EM PORTUGAL. 

DAS ORIGENS AO RENASCIMENTO

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 30 de Maio de 2019


             Sempre sentiram todos os governantes do mundo a necessidade de glorificar os seus actos, de conquista ou de afirmação do poder político. Daí nasceram algumas das mais famosas obras da História da Arte: templos e palácios, acompanhados de grande número de obras menores— estelas, obeliscos, lápides — e majestosos monumentos funerários de que as pirâmides foram o cúmulo, glorificação do herói morto, ressuscitado para a glória eterna.
            Os povos da Antiguidade exaltaram as suas sangrentas vitórias militares com a construção de portas cerimoniais, como as de Babilónia, os pilones dos templos egípcios e os arcos triunfais dos Romanos. Estes arcos em pedra são réplica de outros construídos em materiais perecíveis como o eram os elementos festivos — pendões, escudos e outros ornatos — dispostos ao longo dos Triunfos, longos cortejos festivos em que os generais e legiões vitoriosas, acompanhadas pelos magistrados, exibiam perante o povo de Roma os troféus conquistados, os povos escravizados e os chefes vencidos destinados ao sacrifício. Os arcos de triunfo em materiais duráveis viriam a ser construídos na sequência desses Triunfos, para os comemorar e perpetuar (Fig.1).
            Um milénio depois, com o Renascimento, vai a Itália ressuscitar esses antigos ritos, em cortejos e procissões bem mais pacíficas, como as de Carnaval, ou em Triunfos quase apenas simbólicos, sob a forma de carros alegóricos ricamente decorados dedicados às Virtudes, ao Amor, a Cidades, Rios, Mares ou Continentes, misturando elementos pagãos e cristãos, bem como os provenientes das Descobertas, tudo sob formas clássicas. Arcos levantados ao longo do percurso transfiguravam a paisagem urbana, apesar dos materiais “pobres” de que eram feitos: madeira, pano, gesso, um pouco como os elementos decorativos ainda hoje usados em festas populares como arraiais, procissões, comemorações… Muitos deles são conhecidos através de documentos escritos ou iconográficos, alguns de grandes pintores como Ghirlandaio, Botticelli, Mantegna, Rafael ou o português Domingos Vieira Serrão, ou presentes na grande arquitectura que neles se inspirou, como em Alberti e Bramante.
            Depois do triunfo de César Bórgia, em 1500, ao longo das ruas de Roma, a moda destas encenações invade a Itália e, logo, toda a Europa. Pequenos e grandes artistas contribuem com a sua criatividade para o êxito destas festas. Veronese, Vasari, Dürer, Perugino, Pontormo, Bronzinho, Verrocchio, Palladio, João de Ruão, Canevari e Ludovice, estes três em Portugal, e tantos outros, são os construtores desta arquitectura fictícia, hoje desaparecida como é de sua natureza.
            Há um tipo de cerimónia medieval que mantém a continuidade entre os triunfos romanos e as encenações renascentistas. São as Entradas régias, festas associadas ao fortalecimento do centralismo monárquico que vão prolongar-se, sob formas cada vez mais faustosas, no período absolutista. Estas “entradas” tinham lugar quando um monarca visitava uma cidade ou vila pela primeira vez no seu reinado ou em qualquer ocasião especial, como um casamento real ou uma vitória militar.
            Tratava-se, como explica Ana Maria Alves, de um cerimonial que incluía duas componentes: “a primeira é a do conjunto de rituais que dramatizam a situação contratual entre o Poder Real e a Cidade, ou seja, entre o rei e a burguesia urbana; a segunda, a do conjunto de festas de hospitalidade e boas vindas. Da primeira encarregavam-se o rei e a Câmara, da segunda a Câmara, os ofícios e eventualmente as freguesias e comunas de judeus e mouros”.
            A “espontaneidade” medieval, mais teórica do que real pois era descrita pelos cronistas de serviço como a manifestação mais espontânea e pura da alegria popular perante a paternal visita de Sua Majestade, vai sendo gradualmente substituída por uma intervenção cada vez mais directa da propaganda régia. Essa tendência coincide com o reforço do estado absolutista, que vai dar origem a uma tal teatralização do Poder que, no final do século XVI e em toda a Europa, surge o libreto de entrada descrevendo a decoração construída em honra do régio visitante, com um relevo muito especial para a arquitectura efémera, seus encomendantes e significado simbólico, acompanhado, frequentemente, de poesia apologética das altas virtudes e vitórias, reais ou imaginárias, do monarca. Esta memória dos festejos permitiu superar parcialmente a precaridade própria da Festa e dos seus suportes materiais
            Em Portugal verifica-se uma muito lenta introdução destas novidades, mantendo tais manifestações, até à época filipina, um carácter marcadamente medieval. Mais que por uma arquitectura efémera, apenas excepcionalmente utilizada, estes festejos caracterizam-se pelo uso de carros alegóricos e, obviamente, pelo rico vestuário utilizado pelos participantes.  


            A construção da Porta Especiosa da Sé Velha de Coimbra (Fig.2) integra-se num conjunto de obras de reestruturação urbana ordenadas pelo bispo D. Jorge de Almeida, nos princípios de Quinhentos. É seu autor João de Ruão, que a teria edificado a partir de 1530.
            Relacionado — ou não — com isso, teria sido a Entrada solene de D. João III em Coimbra, em 1526. Esta Entrada foi precedida de alguns meses de preparativos e adiamentos e deixou boa memória na Cidade por ter preparado a reforma do Mosteiro de Santa Cruz e, assim, a instalação definitiva da Universidade em Coimbra, em 1536.
            As celebrações e festividades, repetidas no ano seguinte com a Entrada da Rainha, foram marcadas, sabemo-lo, pela representação de três Autos por Gil Vicente. A construção da referida porta, plenamente integrada no gosto da Renascença Coimbrã, poderá ser marca dessas visitas.
            Esta possibilidade, autorizada ainda pelo facto de ter sido construído, na Sé de Lisboa, aquando do casamento do infante D. João, em 1551, um portal fingido “de Romano”, em pano de algodão, fez Rafael Moreira pensar que a “Porta Especiosa” seria precisamente a passagem à pedra de uma estrutura efémera ao gosto renascentista.
            A dar força a essa hipótese, o gosto extraordinário de D.João III por tudo quanto vinha de Itália e a presença como vereador da Câmara de Coimbra, do grande humanista Francisco de Sá de Miranda, acabado de chegar da sua célebre viagem a Itália (1521-26), durante a qual percorreu Milão, Veneza, Florença, Roma, Nápoles e a Sicília. De facto, “será caso para perguntarmos que outra espécie de decoração poderia Sá de Miranda ter desejado para a sua cidade que não fossem os arcos-de-triunfo e as armações ‘à antiga’ que se usavam em Itália… E já agora, ainda sem sair do domínio das hipóteses: não teria João de Ruão, que poucos meses depois nos aparece plenamente integrado na vida coimbrã, sido o responsável pela parte artística do programa, autor das tão vistosas quão efémeras arquitecturas alegóricas em madeira e pano, de que as ruas e casas, nessas ocasiões se revestiam — trabalho que lhe serviria de 'lançamento', e bastaria, porventura, para justificar a brilhante carreira que veio a ter?”
            As Entradas Régias da época renascentista ganham gradualmente, em toda a Europa, uma cada vez maior importância no quadro das relações entre os cidadãos que as pagavam e os soberanos, adquirindo um carácter de “fête bourgeoise” destinada, muito claramente, à obtenção do favor real em troca de hospitalidade. Esse favor real podia passar pela correcção de abusos das classes privilegiadas, a confirmação de determinados privilégios ou isenções das comunas ou concelhos, abolição de impostos, concessão de novos direitos…

IMAGENS:
1.      Arco de triunfo de Tito, Roma.
2.      Porta Especiosa da Sé Velha de Coimbra (Obra de João de Ruão).

sábado, 25 de maio de 2019


DUAS CARTAS DE RESPOSTA À DESAVERGONHADA "DEFESA" DE 
JOSÉ HERMANO SARAIVA NO "EXPRESSO" DE 12 DE JANEIRO DE 1996
Carlos Rodarte Veloso para Orgulho do 17 de Abril
uele jornal sobre a sua "inocência" no tratamento dos estudantes de Coimbra na crise de 1969 e o "mito" das cargas policiais! Junto envio a página do "Expresso" com as referidas cartas. Para que a "pequena História"não esqueça.

quinta-feira, 23 de maio de 2019



A EUROPA NUMA ELEIÇÃO PEQUENINA

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 23 de Maio de 2019

As próximas eleições para o Parlamento europeu têm-se caracterizado, pelo menos em Portugal, por uma campanha anémica em termos da abordagem do tema principal em causa, ou seja, a política que se deseja para este órgão colegial, num momento em que a própria ideia da União Europeia se encontra fragmentada entre os diversos poderes políticos dos 28 estados que (ainda) a compõem.
Esta oportunidade única de fazer inflectir a teoria e a prática desta comunidade de Estados tão poderosa económica e demograficamente, como frágil em termos políticos e estratégicos, no sentido de ocupar o lugar que lhe compete no concerto das nações, depende única e exclusivamente de nós todos, os Portugueses incluídos, na definição da natureza política, social e cultural que a Europa deve assumir.
São bem conhecidas as divisões que opõem as políticas dos diversos estados europeus, hoje não limitadas à clivagem Esquerda/Direita tradicionais, mas abrangendo a Extrema-direita populista, manifestamente em crescimento sob a pressão de uma opinião pública manipulada pelo medo de uma anunciada “invasão” de imigrantes, dominantemente muçulmanos, desejosos de nos converter à sua religião e aos seus costumes e, assim, de alterar radicalmente a nossa maneira de viver.
Se bem que as massas de imigrantes em causa manifestem muito maior fragilidade do que agressividade, e até utilidade em termos económicos, junto de populações europeias em grave crise demográfica, os lamentáveis casos da pressão de minorias fanáticas que convertem algumas zonas urbanas em territórios em grave conflito étnico, servem de pretexto para ondas de xenofobia que não olham às diferenças entre os culpados e as vítimas.
É evidente a importação dos maiores medos em relação aos “outros” que “invadem” o Ocidente ter a marca do grande “dedo” norte-americano, desde a instalação na Casa Branca de Donald Trump, inimigo confesso da União Europeia – e não só – e que tem promovido a união das diversas forças antieuropeístas – dentro da própria União Europeia! – através do seu caixeiro viajante da intriga, Steve Bannon, cuja ideologia próxima da nazi lhe valeu a alcunha de “Leni Riefenstahl” do movimento de extrema direita “Tea Party”.
Mas voltando ao caso português e dado que até ao momento não parecemos atingidos por esses males, na nossa campanha eleitoral para o Parlamento europeu, os diversos partidos com representação parlamentar têm-se entretido quase exclusivamente a zurzir o PS, incluindo os partidos da Esquerda associados à chamada “Geringonça”! É evidente que tanto o PCP como o Bloco de Esquerda procuram assim distanciar-se minimamente do Governo para uma de duas coisas: tomar como mérito exclusivamente seu todas as medidas do Governo favoráveis às classes trabalhadoras e acusar obsessivamente a alegada aproximação entre o mesmo Governo e o PSD, para assim ganharem um espaço eleitoral que lhes permita ganhar posição para outras eleições – as eleições “importantes” – que serão as Legislativas. PSD e CDS limitam-se a atacar permanentemente todas as iniciativas do PS, assim como os seus “erros” passados, presentes e futuros!
Mas falar da política europeia, do Brexit e da sua incidência sobre a economia da União e, ao menos, da situação dos nossos emigrantes no Reino Unido, da gravíssima questão da imigração, da própria representatividade dos diversos Estados no Parlamento europeu e das suas regras de funcionamento, dos grandes problemas internacionais como as relações com os Estados Unidos da América, a Rússia, a China, a Turquia ou o Brasil, da situação na Venezuela, do crescimento da influência da Extrema-direita e das limitações à Democracia, da questão climática e das energias alternativas, nada disso!
E nem uma palavra sobre os doze partidos nacionalistas europeus reunidos em Milão por Matteo Salvini para preparar uma aliança nacionalista parlamentar após as eleições europeias, que poderá vir a ser a terceira força política no futuro Parlamento europeu…
Com estas e outras ameaças sobre as nossas cabeças, vemos a ridícula presidente do CDS e o seu valete, Nuno Melo, a pavonearem a sua irresponsabilidade em relação à sua “brilhante” acção na coligação com Passos Coelho, enquanto Rui Rio procura distanciar-se desse legado, mas com o lamentável acompanhamento de Paulo Rangel, o mais demagógico, incompetente e destituído dos agentes masculinos desta Direita inconcebível… mas sempre atacando o PS por tudo e mais alguma coisa! Um PS com um brilhante desempenho nacional, mas também quase omisso quanto à questão europeia, aquela que devia ocupá-lo dominantemente neste momento.
Vamos conversar sobre a Europa?

quinta-feira, 16 de maio de 2019



JÁCOME RATTON E TIMÓTEO VERDIER: SEU 

PAPEL NA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL EM TOMAR

Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 16 de Maio de 2019

No 135º Centenário da Escola Jácome Ratton

            O arranque da revolução industrial em Tomar data da época pombalina, mas há importantes antecedentes: de há muito se utilizava a energia hidráulica na moagem de cereais e da azeitona, e nas chamadas ferrarias, manufacturas de armamento diverso cujas ruínas viriam a ser reaproveitadas, já no século XIX, para a criação de diversas fábricas de papel, área de produção hoje em crise mas de grande tradição nesta região.
            A criação, em 1759, da Real Fábrica de Chapéus, marca o início da actividade manufactureira em Tomar. Em 1789, o governo de D. Maria I entrega a Jácome Ratton e ao Engº. Timóteo Verdier a administração da Fábrica de Meias de Lã e Algodão, que viria a converter-se na Real Fábrica de Fiação e Tecidos de Tomar.
            Em 1793 e devido ao desentendimento entre os sócios, ambos interessados no controlo total da empresa, Verdier fica senhor da fábrica, o que não lhe evitou o peso de problemas de diversa índole, especialmente económicos. A causa residiria especialmente na concorrência do fio inglês que entrava livremente em Portugal. Seja como for, Verdier viu-se obrigado a alargar a sociedade, o que viria a trazer novos conflitos pela hegemonia que, por fim, acabariam, principalmente, por atingi-lo.
            Em Dezembro de 1798, uma grande cheia no Nabão causou importantes estragos no açude que movia as respectivas máquinas, facto já antes ocorrido.
            É pouco antes que o naturalista alemão Link, em viagem científica por Portugal, se encontra com Verdier, provavelmente em Agosto de 1798.
            Verdier é personagem verdadeiramente controversa: homem de grande cultura, insigne camonista, industrial empreendedor, pessoa conflituosa e dotada de grande orgulho e teimosia, ficou desacreditado e, por isso, expulso de Portugal sem processo nem sentença por ter dado apoio à primeira tentativa de criação de um regime constitucional no nosso país, quando, em 1808, durante a 2ª invasão francesa, assinou com os diversos vereadores da Câmara de Tomar uma petição dirigida a Napoleão Bonaparte solicitando uma Constituição para Portugal que, na prática, levaria à entrega do Reino nas mãos de “príncipe” da sua confiança, provavelmente Junot.
            Na verdade, fosse ou não a ideia da sua autoria, acabou por ser o bode expiatório deste acto de traição que, sendo colectivo, acabou por lhe ser assacado individualmente, já que os restantes vereadores, na sessão de 29 de Outubro desse ano, decidiram em reunião do Senado Municipal, que fossem riscadas de modo “a que jamais se possa ler a coacta e violenta emissão de votos e suas assinaturas” o que, convenhamos, foi bastante oportuno para os “patrióticos” senadores, deixando o orgulhoso Verdier isolado, para mais sendo de origem francesa…
Seja como for, Verdier foi exilado, indo primeiro para Marrocos e depois para França, onde colaborou com o Morgado de Mateus na sua edição d’ “Os Lusíadas” que, segundo consta – embora sem provas documentais – teria traduzido para o Grego antigo. Publicou, ainda em Paris, entre outros escritos, a 1ª edição de “O Hissope” do cofundador da Arcádia Lusitana, António Diniz da Cruz e Silva, poema heroi-cómico que prefaciou e anotou, redigido ao estilo épico da obra-prima de Camões. O tema do poema é uma conflito de cariz fortemente ridículo sobre o cerimonial litúrgico, entre o bispo de Elvas e o deão da mesma Sé, temática anticlerical muito do agrado de Verdier, segundo o testemunho de Link e de um outro visitante de Tomar, o poeta britânico Robert Southey, que relatam o seu espírito crítico em relação às procissões, ao espírito beato do povo e ao fenómeno dos flagelantes, então ainda praticado em Tomar (VELOSO, Carlos, Tomar setecentista na obra de viajantes estrangeiros, História, Arte, Indústria, Tomar 1988).


Southey descreve o encontro com Verdier, numa carta dirigida a Charles Denvers, em 28 de Março de 1801:
“Em Tomar fomos recebidos por um Francês, o Sr. Verdier, a quem eu já escrevera, – um homem com uma erudição e um espírito fora do comum, que desperdiçou os seus talentos e fortuna para montar uma grande manufactura de fiação de algodão. A esposa é muitíssimo inteligente. Têm vários filhos, os quais falam quatro línguas que a mãe lhes ensinou, assim como música e desenho. Aqui pude festejar com os meus pratos predilectos de conversação [com os meus temas de conversa preferidos]. Esta era uma família como algumas que surgem, por vezes, nos romances, mas que, na verdade, nunca tinha encontrado. Ao diabo a manufactura! Um homem que devia estar à frente de uma grande nação, a manejar moinhos e rodas”.
Além destes actos de cariz cultural com que difundiu e elevou os valores literários de Portugal em França, foi um dos que, com o Duque de Lafões, fundaram a Academia Real das Ciências de Lisboa, instituição fundamental para o progresso na investigação e difusão da Ciência e da Técnica no nosso país.
Tido como arquitecto de talento, “edifícios ainda hoje existentes na [extinta] Fábrica de Fiação e o canal da mesma que lhe são atribuídos, atestam indiscutivelmente q sua competência […] Teria também prestado serviço dessa especialidade no Convento de Cristo, em virtude dos laços de amizade que o ligavam ao D. Prior ” (GUIMARÃES, Manuel da Silva, História de uma Fábrica. A Real Fábrica de Fiação de Thomar, Santarém, 1976). Também o Palácio Alvaiázere, construído no lugar onde fora fundada, em 1771, a antiga Fábrica de Meias de Le Maître, junto à Várzea Grande, será, provavelmente, obra de Verdier, tendo sido escritório da Fábrica de Fiação e, de 1911 a 1975, Quartel-general da Região Militar de Tomar. Destruído por um incêndio nesse ano, foi parcialmente reconstruído.
Uma palavra acerca da mulher de Verdier, Helena Frizioni Verdier, também de origem francesa, atrás referida pela sua inteligência e cultura, que conseguiu a reabertura da Fábrica, encerrada após a expulsão do seu marido, mantendo-se na sua direcção até 1819.
A sua direcção foi prejudicada pela hostilidade dos ingleses, depois da expulsão das tropas francesas dominantes nos órgãos o poder, a quem não interessava qualquer concorrência industrial, para mais num sector estratégico como era o têxtil.
O “pecado” de Verdier, o ser liberal convicto, não impediu a muitos outros, alguns dos quais chegaram a acompanhar Napoleão nas suas derradeiras campanhas militares, a obtenção de altos cargos, prestígio e poder, com o advento do Liberalismo. Até cargos políticos de monta. Os seus nomes são celebrados na toponímia de todo o país, quando não foi o bronze dos escultores a imortalizá-los. Mas Verdier, homem notável e que soube ser coerente com os seus ideais, um dos que ajudaram Tomar a crescer, e defendeu e divulgou no Estrangeiro a nossa Cultura, um dos criadores da primeira das instituições científicas de Portugal, aqui, em tempos recentes, apenas lhe deram direito à “sua” rua, próximo da fábrica, continuando, contudo, quase desconhecido e marginalizado!
Criador com Ratton da Real Fábrica de Fiação e Tecidos de Tomar, que foi, até ao seu encerramento em 1993 e à sua dissolução em 2012, a mais antiga fábrica de fiação do mundo, a memória de Verdier dissolveu-se na poeira do tempo. Com o seu encerramento é virada uma importante página na revolução industrial portuguesa.
No entanto, estes dois homens, unidos pelos valores do progresso tecnológico e social e apesar das suas diferenças que ditaram o afastamento mútuo, marcaram poderosamente a época anterior às invasões francesas.

quinta-feira, 2 de maio de 2019


ORIGENS DO TURISMO
Carlos Rodarte Veloso
"O Templário", 2 de Maio de 2019


Para além dos muitos viajantes que na Antiguidade se deslocavam, não apenas como aconteceu com mercadores, soldados, pastores ou aventureiros, muitas cidades, monumentos ou eventos ganharam uma tal notoriedade que justificavam, só para os ver, viagens a grandes distâncias: Babilónia, Delfos, Olímpia, Atenas, Alexandria, Roma, ou as Sete Maravilhas do Mundo eram outros tantos pólos de atracção de multidões.
Um interesse muito “moderno” pela viagem como factor de formação, encontramo-lo já em Heródoto de Halicarnasso, conhecido como “o pai da História”, que visitou no século V a.C. o Egipto, a Babilónia, a Pérsia e outros países do Próximo Oriente pela pura e simples razão de querer conhecer e registar “os feitos dos homens, com o tempo”. Ele próprio conta a história do célebre governante ateniense Sólon, famoso pela sua sabedoria – um dos “Sete Sábios da Grécia”- que antes dele viajou para fora do seu país, para o Egipto e Sardes, “movido pelo gosto de saber e pela vontade de conhecer muitos países”…
Marco Polo, o famoso veneziano que atravessou toda a Ásia no século XIII, deu continuidade a gerações de viajantes que, umas vezes comerciando, outras combatendo, foram conhecendo outros povos e culturas, cidades lendárias e impérios desconhecidos. O seu famoso livro, que constava da biblioteca do Infante D. Pedro, filho de D. João I e um dos homens mais cultos do seu tempo, em muito contribuiu para criar nos Europeus uma curiosidade que só a descoberta do mundo poderia saciar… e bem sabemos o quanto esse apelo foi sentido e correspondido pelos Portugueses!
Mas a ideia de Turismo como hoje o entendemos, nasceu muito mais tarde, já entre o século XVII e o XVIII, quando entre os filhos da aristocracia e da alta burguesia britânicas se institucionalizou o costume, já com raízes antigas e não só na Inglaterra — o caso do nosso Infante D. Pedro, ainda no século XV, é exemplar —, de ser considerada incompleta a educação de um homem que não tivesse viajado pelo Estrangeiro.
Um famoso príncipe europeu do século XVII, Cosimo de Médicis, herdeiro do Grão-Ducado da Toscana, viajou também pela Europa acompanhado por um brilhante séquito de 27 pessoas, terminando o seu último périplo em Portugal em 1669.
A viagem tinha manifestado objectivos diplomáticos, procurando o príncipe documentar-se sobre a recentemente assinada paz de Portugal com Castela, na sequência da Guerra da Restauração, em que a inesperada vitória de um pequeno país após 28 anos de guerra com uma potência de primeira grandeza, espantava toda a Europa. Entretanto, quatro dos seus acompanhantes elaboraram interessantíssimos diários de viagem e um pintor deixou uma riquíssima colecção de vistas de todas as cidades e vilas visitadas…
Interessa-nos especialmente o relato oficial da viagem, da autoria do conde Lorenzo Magalotti e a colecção de aguarelas do pintor Pier Maria Baldi, por incluírem a passagem por Tomar e uma vista panorâmica da nossa cidade - v. imagem (VELOSO, Carlos, “Um príncipe florentino em Tomar, no rescaldo da Guerra da Restauração”, Boletim Cultural e Informativo da C. M. Tomar, pp.47-55).




Eram o príncipe florentino e os seus acompanhantes legítimos precursores do Grand Tour, expressão francesa universalmente aceite no século XVIII designando a viagem de enriquecimento cultural a que apenas uma elite tinha acesso e que daria origem à palavra turismo.
Dizia nas suas Memórias publicadas em 1746, o viajante português Pedro Norberto d’Aucourt e Padilha, decerto resumindo o sentir da sua época: “Não poderás negar que as jornadas foram as primeiras escolas, e os que corriam terras, os primeiros sábios”. Do mesmo modo expandia-se entre as classes dominantes da Europa a ideia de que conhecer na prática outras geografias, outros povos e as suas maravilhas artísticas era o atributo do verdadeiro cavalheiro, do “gentleman”, tornado verdadeira imagem de marca do Reino Unido.
Como vemos, o turismo, na época em que nasceu, associava os objectivos culturais mais exigentes com a fruição da viagem como prazer, o que não seria difícil a pessoas que viajavam com grande desafogo económico. Mas, para estes pioneiros, viajar era um caso muito sério: era uma escola do mundo e da vida, fundamental para a sua preparação para as funções que os esperavam no regresso à pátria, como dirigentes políticos, diplomatas, armadores, grandes negociantes, administradores, quando se não limitassem a gozar os rendimentos, mas sempre brilhando em sociedade…
Os alvos mais procurados dos britânicos eram, por ordem aproximada de preferência, a Itália, a França, seguindo-se o Império, alguns estados germânicos e só depois, muito depois, os países periféricos como a Espanha e Portugal, mesmo assim em segundo plano perante escolhas mais “exóticas” como a Terra Santa, o Egipto ou a Grécia…
De facto, a travessia dos Pirenéus era considerada aventura de monta, a que não faltavam perigos bem reais: estradas impraticáveis, assaltos frequentes, instabilidade política e social, intolerância religiosa, prepotência das autoridades, burocracia levada aos limites do… impossível! E se a Espanha, mesmo assim, era relativamente bem conhecida, o nosso País era tido como uma província espanhola e a nossa língua um idioma do Castelhano!
A esse turismo sofisticado, de elites, sucedeu o de massas, ao mesmo tempo que o Planeta como que se contraía… A actual afluência a Portugal de milhões de turistas, embora enriqueça o país em preciosas divisas, trouxe um sem-número de problemas com que actualmente nos defrontamos, nomeadamente ao nível da degradação do património, construído e natural, mas principalmente na área social, com a população mais modesta das grandes cidades a ser empurrada dos centros urbanos para as periferias pela ocupação das suas casas pela próspera e gananciosa indústria turística.