ARQUITECTURA EFÉMERA EM PORTUGAL.
DAS
ORIGENS AO RENASCIMENTO
Carlos Rodarte
Veloso
“O Templário”, 30 de Maio de 2019
Os
povos da Antiguidade exaltaram as suas sangrentas vitórias militares com a construção
de portas cerimoniais, como as de Babilónia, os pilones dos templos egípcios e
os arcos triunfais dos Romanos. Estes arcos em pedra são réplica de outros
construídos em materiais perecíveis como o eram os elementos festivos —
pendões, escudos e outros ornatos — dispostos ao longo dos Triunfos, longos cortejos festivos em que os generais e legiões
vitoriosas, acompanhadas pelos magistrados, exibiam perante o povo de Roma os
troféus conquistados, os povos escravizados e os chefes vencidos destinados ao
sacrifício. Os arcos de triunfo em materiais duráveis viriam a ser construídos
na sequência desses Triunfos, para os comemorar e perpetuar (Fig.1).
Um
milénio depois, com o Renascimento, vai a Itália ressuscitar esses antigos
ritos, em cortejos e procissões bem mais pacíficas, como as de Carnaval, ou em
Triunfos quase apenas simbólicos, sob a forma de carros alegóricos ricamente
decorados dedicados às Virtudes, ao Amor, a Cidades, Rios, Mares ou
Continentes, misturando elementos pagãos e cristãos, bem como os provenientes
das Descobertas, tudo sob formas clássicas. Arcos levantados ao longo do
percurso transfiguravam a paisagem urbana, apesar dos materiais “pobres” de que
eram feitos: madeira, pano, gesso, um pouco como os elementos decorativos ainda
hoje usados em festas populares como arraiais, procissões, comemorações… Muitos
deles são conhecidos através de documentos escritos ou iconográficos, alguns de
grandes pintores como Ghirlandaio, Botticelli, Mantegna, Rafael ou o português
Domingos Vieira Serrão, ou presentes na grande arquitectura que neles se
inspirou, como em Alberti e Bramante.
Depois
do triunfo de César Bórgia, em 1500, ao longo das ruas de Roma, a moda destas
encenações invade a Itália e, logo, toda a Europa. Pequenos e grandes artistas
contribuem com a sua criatividade para o êxito destas festas. Veronese, Vasari,
Dürer, Perugino, Pontormo, Bronzinho, Verrocchio, Palladio, João de Ruão,
Canevari e Ludovice, estes três em Portugal, e tantos outros, são os
construtores desta arquitectura fictícia, hoje desaparecida como é de sua
natureza.
Há
um tipo de cerimónia medieval que mantém a continuidade entre os triunfos
romanos e as encenações renascentistas. São as Entradas régias, festas associadas ao fortalecimento do centralismo
monárquico que vão prolongar-se, sob formas cada vez mais faustosas, no período
absolutista. Estas “entradas” tinham lugar quando um monarca visitava uma
cidade ou vila pela primeira vez no seu reinado ou em qualquer ocasião
especial, como um casamento real ou uma vitória militar.
Tratava-se,
como explica Ana Maria Alves, de um cerimonial que incluía duas componentes: “a
primeira é a do conjunto de rituais que dramatizam a situação contratual entre
o Poder Real e a Cidade, ou seja, entre o rei e a burguesia urbana; a segunda,
a do conjunto de festas de hospitalidade e boas vindas. Da primeira
encarregavam-se o rei e a Câmara, da segunda a Câmara, os ofícios e
eventualmente as freguesias e comunas de judeus e mouros”.
A
“espontaneidade” medieval, mais teórica do que real pois era descrita pelos
cronistas de serviço como a manifestação mais espontânea e pura da alegria
popular perante a paternal visita de Sua Majestade, vai sendo gradualmente
substituída por uma intervenção cada vez mais directa da propaganda régia. Essa
tendência coincide com o reforço do estado absolutista, que vai dar origem a
uma tal teatralização do Poder que,
no final do século XVI e em toda a Europa, surge o libreto de entrada descrevendo a decoração construída em honra do
régio visitante, com um relevo muito especial para a arquitectura efémera, seus
encomendantes e significado simbólico, acompanhado, frequentemente, de poesia
apologética das altas virtudes e vitórias, reais ou imaginárias, do monarca.
Esta memória dos festejos permitiu
superar parcialmente a precaridade própria da Festa e dos seus suportes
materiais
Em
Portugal verifica-se uma muito lenta introdução destas novidades, mantendo tais
manifestações, até à época filipina, um carácter marcadamente medieval. Mais
que por uma arquitectura efémera, apenas excepcionalmente utilizada, estes
festejos caracterizam-se pelo uso de carros alegóricos e, obviamente, pelo rico
vestuário utilizado pelos participantes.
A
construção da Porta Especiosa da Sé
Velha de Coimbra (Fig.2) integra-se
num conjunto de obras de reestruturação urbana ordenadas pelo bispo D. Jorge de
Almeida, nos princípios de Quinhentos. É seu autor João de Ruão, que a teria
edificado a partir de 1530.
Relacionado
— ou não — com isso, teria sido a Entrada solene de D. João III em Coimbra, em
1526. Esta Entrada foi precedida de alguns meses de preparativos e adiamentos e
deixou boa memória na Cidade por ter preparado a reforma do Mosteiro de Santa
Cruz e, assim, a instalação definitiva da Universidade em Coimbra, em 1536.
As
celebrações e festividades, repetidas no ano seguinte com a Entrada da Rainha,
foram marcadas, sabemo-lo, pela representação de três Autos por Gil Vicente. A
construção da referida porta, plenamente integrada no gosto da Renascença
Coimbrã, poderá ser marca dessas visitas.
Esta
possibilidade, autorizada ainda pelo facto de ter sido construído, na Sé de
Lisboa, aquando do casamento do infante D. João, em 1551, um portal fingido “de Romano”, em pano de
algodão, fez Rafael Moreira pensar que a “Porta Especiosa” seria precisamente a
passagem à pedra de uma estrutura efémera ao gosto renascentista.
A
dar força a essa hipótese, o gosto extraordinário de D.João III por tudo quanto
vinha de Itália e a presença como vereador da Câmara de Coimbra, do grande
humanista Francisco de Sá de Miranda, acabado de chegar da sua célebre viagem a
Itália (1521-26), durante a qual percorreu Milão, Veneza, Florença, Roma,
Nápoles e a Sicília. De facto, “será caso para perguntarmos que outra espécie
de decoração poderia Sá de Miranda ter desejado para a sua cidade que não
fossem os arcos-de-triunfo e as armações ‘à antiga’ que se usavam em Itália… E
já agora, ainda sem sair do domínio das hipóteses: não teria João de Ruão, que
poucos meses depois nos aparece plenamente integrado na vida coimbrã, sido o
responsável pela parte artística do programa, autor das tão vistosas quão
efémeras arquitecturas alegóricas em madeira e pano, de que as ruas e casas,
nessas ocasiões se revestiam — trabalho que lhe serviria de 'lançamento', e
bastaria, porventura, para justificar a brilhante carreira que veio a ter?”
As
Entradas Régias da época
renascentista ganham gradualmente, em toda a Europa, uma cada vez maior
importância no quadro das relações entre os cidadãos que as pagavam e os
soberanos, adquirindo um carácter de “fête
bourgeoise” destinada, muito claramente, à obtenção do favor real em troca de
hospitalidade. Esse favor real podia passar pela correcção de abusos das
classes privilegiadas, a confirmação de determinados privilégios ou isenções
das comunas ou concelhos, abolição de impostos, concessão de novos direitos…
IMAGENS:
1.
Arco
de triunfo de Tito, Roma.
2.
Porta
Especiosa da Sé Velha de Coimbra (Obra de João de Ruão).