JÁCOME RATTON E TIMÓTEO VERDIER: SEU
PAPEL NA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL EM TOMAR
Carlos
Rodarte Veloso
“O Templário”,
16 de Maio de 2019
No 135º
Centenário da Escola Jácome Ratton
O arranque da revolução industrial
em Tomar data da época pombalina, mas há importantes antecedentes: de há muito
se utilizava a energia hidráulica na moagem de cereais e da azeitona, e nas
chamadas ferrarias, manufacturas de armamento diverso cujas ruínas viriam a ser
reaproveitadas, já no século XIX, para a criação de diversas fábricas de papel,
área de produção hoje em crise mas de grande tradição nesta região.
A criação, em 1759, da Real Fábrica
de Chapéus, marca o início da actividade manufactureira em Tomar. Em 1789, o
governo de D. Maria I entrega a Jácome Ratton e ao Engº. Timóteo Verdier a administração
da Fábrica de Meias de Lã e Algodão, que viria a converter-se na Real Fábrica
de Fiação e Tecidos de Tomar.
Em 1793 e devido ao desentendimento
entre os sócios, ambos interessados no controlo total da empresa, Verdier fica
senhor da fábrica, o que não lhe evitou o peso de problemas de diversa índole,
especialmente económicos. A causa residiria especialmente na concorrência do
fio inglês que entrava livremente em Portugal. Seja como for, Verdier viu-se
obrigado a alargar a sociedade, o que viria a trazer novos conflitos pela
hegemonia que, por fim, acabariam, principalmente, por atingi-lo.
Em Dezembro de 1798, uma grande
cheia no Nabão causou importantes estragos no açude que movia as respectivas
máquinas, facto já antes ocorrido.
É pouco antes que o naturalista
alemão Link, em viagem científica por Portugal, se encontra com Verdier,
provavelmente em Agosto de 1798.
Verdier é personagem verdadeiramente
controversa: homem de grande cultura, insigne camonista, industrial
empreendedor, pessoa conflituosa e dotada de grande orgulho e teimosia, ficou
desacreditado e, por isso, expulso de Portugal sem processo nem sentença por
ter dado apoio à primeira tentativa de criação de um regime constitucional no nosso
país, quando, em 1808, durante a 2ª invasão francesa, assinou com os diversos
vereadores da Câmara de Tomar uma petição dirigida a Napoleão Bonaparte
solicitando uma Constituição para Portugal que, na prática, levaria à entrega
do Reino nas mãos de “príncipe” da sua confiança, provavelmente Junot.
Na verdade, fosse ou não a ideia da
sua autoria, acabou por ser o bode expiatório deste acto de traição que, sendo
colectivo, acabou por lhe ser assacado individualmente, já que os restantes
vereadores, na sessão de 29 de Outubro desse ano, decidiram em reunião do Senado
Municipal, que fossem riscadas de modo “a que jamais se possa ler a coacta e
violenta emissão de votos e suas assinaturas” o que, convenhamos, foi bastante
oportuno para os “patrióticos” senadores, deixando o orgulhoso Verdier isolado,
para mais sendo de origem francesa…
Seja
como for, Verdier foi exilado, indo primeiro para Marrocos e depois para
França, onde colaborou com o Morgado de Mateus na sua edição d’ “Os Lusíadas”
que, segundo consta – embora sem provas documentais – teria traduzido para o
Grego antigo. Publicou, ainda em Paris, entre outros escritos, a 1ª edição de
“O Hissope” do cofundador da Arcádia Lusitana, António Diniz da Cruz e Silva, poema
heroi-cómico que prefaciou e anotou, redigido ao estilo épico da obra-prima de
Camões. O tema do poema é uma conflito de cariz fortemente ridículo sobre o
cerimonial litúrgico, entre o bispo de Elvas e o deão da mesma Sé, temática anticlerical
muito do agrado de Verdier, segundo o testemunho de Link e de um outro
visitante de Tomar, o poeta britânico Robert Southey, que relatam o seu
espírito crítico em relação às procissões, ao espírito beato do povo e ao
fenómeno dos flagelantes, então ainda praticado em Tomar (VELOSO, Carlos, Tomar setecentista na obra de viajantes
estrangeiros, História, Arte, Indústria, Tomar 1988).
Southey
descreve o encontro com Verdier, numa carta dirigida a Charles Denvers, em 28
de Março de 1801:
“Em
Tomar fomos recebidos por um Francês, o Sr. Verdier, a quem eu já escrevera, –
um homem com uma erudição e um espírito fora do comum, que desperdiçou os seus
talentos e fortuna para montar uma grande manufactura de fiação de algodão. A
esposa é muitíssimo inteligente. Têm vários filhos, os quais falam quatro
línguas que a mãe lhes ensinou, assim como música e desenho. Aqui pude festejar
com os meus pratos predilectos de conversação [com os meus temas de conversa
preferidos]. Esta era uma família como algumas que surgem, por vezes, nos
romances, mas que, na verdade, nunca tinha encontrado. Ao diabo a manufactura!
Um homem que devia estar à frente de uma grande nação, a manejar moinhos e
rodas”.
Além
destes actos de cariz cultural com que difundiu e elevou os valores literários
de Portugal em França, foi um dos que, com o Duque de Lafões, fundaram a
Academia Real das Ciências de Lisboa, instituição fundamental para o progresso
na investigação e difusão da Ciência e da Técnica no nosso país.
Tido
como arquitecto de talento, “edifícios ainda hoje existentes na [extinta] Fábrica
de Fiação e o canal da mesma que lhe são atribuídos, atestam indiscutivelmente
q sua competência […] Teria também prestado serviço dessa especialidade no
Convento de Cristo, em virtude dos laços de amizade que o ligavam ao D. Prior ”
(GUIMARÃES, Manuel da Silva, História de
uma Fábrica. A Real Fábrica de Fiação de Thomar, Santarém, 1976). Também o
Palácio Alvaiázere, construído no lugar onde fora fundada, em 1771, a antiga
Fábrica de Meias de Le Maître, junto à Várzea Grande, será, provavelmente, obra
de Verdier, tendo sido escritório da Fábrica de Fiação e, de 1911 a 1975,
Quartel-general da Região Militar de Tomar. Destruído por um incêndio nesse
ano, foi parcialmente reconstruído.
Uma
palavra acerca da mulher de Verdier, Helena Frizioni Verdier, também de origem
francesa, atrás referida pela sua inteligência e cultura, que conseguiu a
reabertura da Fábrica, encerrada após a expulsão do seu marido, mantendo-se na
sua direcção até 1819.
A
sua direcção foi prejudicada pela hostilidade dos ingleses, depois da expulsão
das tropas francesas dominantes nos órgãos o poder, a quem não interessava qualquer
concorrência industrial, para mais num sector estratégico como era o têxtil.
O
“pecado” de Verdier, o ser liberal convicto, não impediu a muitos outros,
alguns dos quais chegaram a acompanhar Napoleão nas suas derradeiras campanhas
militares, a obtenção de altos cargos, prestígio e poder, com o advento do
Liberalismo. Até cargos políticos de monta. Os seus nomes são celebrados na
toponímia de todo o país, quando não foi o bronze dos escultores a
imortalizá-los. Mas Verdier, homem notável e que soube ser coerente com os seus
ideais, um dos que ajudaram Tomar a crescer, e defendeu e divulgou no
Estrangeiro a nossa Cultura, um dos criadores da primeira das instituições
científicas de Portugal, aqui, em tempos recentes, apenas lhe deram direito à “sua”
rua, próximo da fábrica, continuando, contudo, quase desconhecido e
marginalizado!
Criador
com Ratton da Real Fábrica de Fiação e Tecidos de Tomar, que foi, até ao seu
encerramento em 1993 e à sua dissolução em 2012, a mais antiga fábrica de
fiação do mundo, a memória de Verdier dissolveu-se na poeira do tempo. Com o
seu encerramento é virada uma importante página na revolução industrial
portuguesa.
No
entanto, estes dois homens, unidos pelos valores do progresso tecnológico e
social e apesar das suas diferenças que ditaram o afastamento mútuo, marcaram
poderosamente a época anterior às invasões francesas.
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