sábado, 23 de maio de 2020


PRAIA MARAVILHOSA

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 21 de Maio de 2020

Há muito que me desinteressei dos prazeres da praia, talvez porque passei a embirrar com a areia que se mete nos nossos locais mais indiscretos, com a exposição impiedosa ao sol e os consequentes escaldões, as projecções de bolas e outros objectos contundentes, além de objectos apenas adivinhados pela sua disformidade, mas só identificáveis pelo cheiro e que se colam teimosa e nojentamente às plantas dos pés, insectos zumbidores que nos picam impiedosamente, a música pimba impingida através de amplificadores topo de gama de gente que, mais que nos ouvidos, apenas pretende dar nas vistas…
Eu, que era um fanático da Praia-a-todo-o-custo, deixei de me sentir seduzido, embora o Mar, o grande Mar que cerca a Terra toda, onde mergulhamos, aí recebendo uma fracção da grande energia nele contida, continue a atrair-me, mesmo com a sabida presença nessas mesmas águas da poluição dos plásticos omnipresentes, além de outros fragmentos da nossa “civilização”, que entopem os animais marinhos e se infiltram nos próprios poluidores.
Dirão que a idade fez o resto, e me agrada muito mais a tranquilidade das serras, do campo sob uma brisa suave, de caminhadas por veredas sombreadas pela magnificência de árvores centenárias, a paisagem das sucessões de montanhas envoltas na misteriosa névoa da distância, a própria pachorra aldeã que autoriza a contemplação de coisas imperecíveis como o pairar das aves de rapina sobre os campos, os rios, lagos, a poesia do mundo…
Isso é tudo verdade, mas custa-me que a pandemia que nos atingiu como um coice, dê agora aso a que a natural paixão pela praia seja disciplinada de forma férrea e que os regulamentos de utilização que começam a divisar-se a conduzam a autênticos campos de concentração.
Sei que as estranhas experiências já encetadas em Espanha e, segundo parece, em S. Martinho do Porto, de “lavar toda a areia com lixívia” não estão felizmente previstas, mas a aproximação do Verão e os regulamentos já esboçados fazem-me temer o pior: que o lugar de liberdade que as praias significavam, apesar dos velhos inconvenientes a que fiz referência, as tornem agora num lugar assustador, vigiado por um aparato tecnológico que faz temer pelo exagero .
Sei que é necessário manter a disciplina nos contactos interpessoais, para evitar a todo o custo a difusão do contágio do coronavírus, mas considero que todas as medidas previstas devem sê-lo tendo em conta a justa medida. A disciplina começa e acaba na educação, e devem ser principalmente os jovens a sensibilizar os adultos para cumprirem eles próprios as regras de ouro que poderão salvar a espécie humana. O papel dos professores nessa sensibilização é fundamental!
Vigilância, sim, e rigorosa, mas espaço para a liberdade! É o maior dos desafios!

quinta-feira, 14 de maio de 2020



A MALDADE NO PODER

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 14 de Maio de 2020

Está a tornar-se um verdadeiro lugar-comum a identificação de um número crescente de ditaduras instaladas nos lugares de Poder em tantos países da Terra, mas esse fenómeno sinistro começa a espreitar, qual “ovo da serpente” também no nosso país.
A arma dessa gente, violentamente contrária toda e qualquer conquista da parte das massas exploradas, são agora as redes sociais, que ampliam aparentemente a expressão dessas ambições, assinando milhares e milhares de posts com identificações falsas que sugerem o apoio de massas inexistentes e que vão dar uma ideia completamente falsa de adesão por parte de percentagens totalmente falsas de aderentes.
Esse truque, fomentado por forças ligadas às camadas mais poderosas financeiramente, dão a ideia de um apoio popular totalmente fictício.
Chamando as coisas pelos nomes, a Esquerda é confrontada com os “likes” de gente aparentemente desfavorecida, não propiamente pela fortuna, mas pela inteligência, organizada em grupos de ignorantes, apoiados e financiados por igrejas evangélicas que oferecem o mesmo show-off que levou ao poder gente como Trump, mesmo com menos votos que a sua directa opositora, ou Bolsonaro, esse sim, apoiado pela imensa miséria da gente pobre e ignorante do Brasil, cuja lavagem aos cérebros se somou, mais uma vez, à gigantesca operação de desinformação levada a cabo através do elogio da sangrenta ditadura que antecedeu o domínio do PT, diabolizado através da mais fantástica campanha de mentiras algumas vez desenvolvida neste século.
Fake news que também deram o Poder, quase fifty-fifty a Boris Johnson, aproveitando o consabido nacionalismo britânico e os pretensos malefícios de uma Europa, afinal não tão má assim…
De outros países poderia falar mas, no que nos toca, estes são mais do que suficientes para reintroduzir um tema que se vai tornando cada vez mais preocupante, mormente com o efeito de contágio das ideias de extrema-direita que vão gradualmente invadindo outros governos europeus, um pouco como a infecção do corona vírus.
O nosso Portugal sofre agora um ataque directo desferido por uma espécie de partido, o “Chega” de André Ventura, que se revê no salazarismo e nas “saudosas” políticas hitlerianas do confinamento étnico, primeira fase de um apartheid que levou à perseguição aos Judeus, à sua identificação através de emblemas, a sua desclassificação social e internamento em campos de concentração, em ordem à “Solução Final” eufemismo para o Holocausto!
Como bem sabemos, os Judeus foram as suas maiores vítimas em termos numéricos, mas também os Ciganos, minorias religiosas e sexuais, e partidos políticos de Esquerda os acompanharam na deportação e nos campos de extermínio.
Vem agora André Ventura, do alto da sua arrogância racista propor o mesmo “remédio” para os Ciganos portugueses, provocação a que respondeu, e muito bem, o nosso internacional Quaresma, cigano ele próprio, que se mediu do alto da sua dignidade, “simplesmente humana”, com este espécime lamentável de troglodita.
Não é nem será a última vez que a História da Humanidade se confrontará com este tipo de ameaças. Mas estejamos atentos e não minimizemos os perigos que mais uma vez espreitam o nosso perigoso trajecto.

sexta-feira, 8 de maio de 2020



SAUDADES DO FUTURO
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 7 de Maio de 2020

A palavra que mais nos falta neste momento, não é Maré, nem Onda, nada de cíclico, pois tudo o que se repete é certo mas fugaz, e a esperança dessa repetição não encerra mais certeza que a do sabido pôr e nascer do Sol, do movimento universal das galáxias, da vertiginosa queda dos graves, da atracção universal, do galope das nuvens nos céus, da inércia que imprime o movimento perpétuo a todos os corpos celestes, do correr das águas nos grandes como nos pequenos vales, do deslizar das placas tectónicas, no fundo, nada que contribua para os avanços desta espécie ciclotímica, ora ufana das suas realizações, ora completamente desesperada.
            Nada que o livre arbítrio não ultrapasse, já que os ditames autocráticos dos grande sistemas doutrinários, geridos por vultuosas personagens, vendilhões do Templo alicerçadas no poder das armas, nada são perante a vontade destas toscas criaturas que, embora temerosas quando isoladas, conseguem contornar, em felizes momentos de unidade, esses poderes, convertendo-se elas próprias em Poder.
            O momento que vivemos dividiu-nos como espécie empreendedora, tirou-nos provisoriamente o poder em confronto com forças que ainda não compreendemos totalmente, enquanto a nossa divisão e antagonismo nos lança uns contra os outros, indiferentes aos sucessos antigos, dispostos a tudo apostar na divisão entre grupos e sistemas, na hostilidade entre semelhantes, naquilo a que chamamos Guerra.
            Por isso, as palavras que nos faltam são Saudade do Futuro, dimensão que tanto contribuiu para o êxito da Humanidade nos desafios que enfrentou, horizonte mítico que nos levou a outras e inconcebíveis paragens.
            E o actual desafio, porventura o último durante uma longuíssima época, é o mais determinante de todos, porque agora se junta uma pandemia oriunda da mais que provável acção humana, com a ameaça de desastre ambiental prevista há muito tempo, ela própria garantidamente devida à mesma acção.
            Temos agora meios de enfrentar ambas as ameaças, mas apenas a união de todos nós permitirá vencê-las, mesmo com os rostos provisoriamente ocultados por máscaras…

terça-feira, 5 de maio de 2020



APRESENTAÇÃO DE UM PAÍS
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 30 de Abril de 2020

Gravura de João Abel Manta

Desde o período da ocupação filipina, Portugal teve o “fado” de se ter tornado quase invisível no panorama histórico mundial, frequentemente confundido com a Espanha à qual concedia o seu enorme peso colonial para a engrandecer.
Era de facto o tempo do “Império onde o sol nunca se punha”, título depois da Restauração herdado pelo Império Britânico.
Da nossa História, apenas sobravam imagens espectrais duma época nebulosa de marinheiros e navegadores, descobridores, sim, mas “pés descalços”, pouco enaltecidos face à prosápia espanhola da descoberta da América e de outros feitos marítimos e militares, a que não faltava, pasme-se, o fracasso monumental de uma dita “Invencível Armada”!
Nem o domínio da Índia, a colonização brasileira e a precoce chegada à China e ao Japão foram suficientes para plasmar com verdadeiro sucesso a aventura portuguesa nas páginas da historiografia europeia.
O peso monumental da Espanha sempre se sobrepunha a nós, pequena nação, dominada depois pela concorrência neerlandesa e pelos traiçoeiros aliados ingleses, sempre atrasada, sempre retrógrada, vitimada pela superstição católica romana que, embora comum ao atraso espanhol não se alicerçava sobre um poder das armas ou prestígio internacional, para não falar do seu défice de influência religiosa junto da Santa Sé.
Tal como a Espanha tivemos a Inquisição, e momentos de grande prestígio internacional, mas com pouca continuidade, caso do reinado de D. João V, embora a reboque do ouro do Brasil, e do fugaz episódio pombalino, depressa submerso nas grandes invasões francesas e na guerra civil entre liberais e absolutistas, num século de altos e baixos dominados pela predominância económica britânica e uma apenas relativa “revolução industrial”…
O século XX, dilacerado pela Grande Guerra para a qual foi arrastada a nossa jovem República em prol da defesa do domínio colonial africano, logo seguido do gigantesco desastre humanitário da pandemia da “gripe espanhola”, ainda deu tempo para algumas importantes reformas educativas, mas marcadas pela instabilidade social e política do País, que conduziu ao golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 e à edificação do chamado Estado Novo e do regime ditatorial de Salazar, época de férrea repressão policial, à imagem e semelhança das ditaduras nacionalistas europeias, cópia próxima dos fascismos italiano, germânico e espanhol.
Foi nesse quadro de ditadura nacional, que muito desprestigiou o País, que teve início a guerra colonial, a que apenas o 25 de Abril de 1974 pôs fim, com Portugal mobilizado colectivamente, em torno de umas Forças Armadas inesperadamente democratizadas, cujo vitorioso golpe de Estado acaba por dar origem a uma verdadeira Revolução popular.
É exactamente a edificação do regime democrático nascido em 25 de Abril mas alimentado desde a época mais repressiva da ditadura pela revolta popular dos mais diversos sectores da vida social e política, que confere ao nosso País uma imagem de modernidade e de desenvolvimento completamente nova, a que não é alheia – apesar das controvérsias a que deu aso – a adesão ao Mercado Comum Europeu e à União Europeia.
A nossa Revolução – não tenhamos medo dos nomes, pois de uma Revolução se trata – abriu aos olhos de uma Europa fortemente lusocéptica, este pequeno País em que vivemos, tornado um “caso de estudo”, tanto pelo muito que se desenvolveu no aspecto científico e tecnológico, político, artístico, literário e, até, desportivo, como pelo prestígio de muitos dos seus dirigentes que, embora de contraditórias tendências políticas, marcaram fortemente as suas áreas de influência, mesmo nos maiores areópagos internacionais.
As críticas com que, desde sempre, a nossa democracia tem sido mimoseada, nomeadamente pelos sectores politicamente mais adversos às tendências dominantes, são mais uma prova da vitalidade de um regime que nem uma pandemia como a que agora nos vitima, impede o pluralismo, verdadeiro apanágio da Democracia.