sábado, 21 de outubro de 2017


BELAS-ARTES E ARTES APLICADAS, 

A FALSA HIERARQUIA DO GOSTO

Carlos Rodarte Veloso

(“O Templário”, 19 de Outubro de 2017)

Só a partir do Renascimento surge, dentro das concepções de gosto artístico, a oposição entre Belas-Artes, que englobam a Arquitectura, a Escultura e a Pintura, e as Artes Aplicadas, também chamadas Ornamentais ou Decorativas, que abrangem todas as restantes artes, da Ourivesaria ao Mobiliário, da Talha ao Azulejo.
É bem verdade que já na Antiguidade Clássica os grandes artistas produziram obras  de tal forma apreciadas pelos seus contemporâneos, que estes foram equiparados às grandes figuras da cultura universal. Como é óbvio, sem o conhecimento dos seus nomes, as obras ficavam relegadas ao estatuto de “anónimas”, o que acabava por diminuir a sua importância.
O nome de Fídias, escultor do Parténon de Atenas, ficou para a História como o mais “divino” dos artistas e assim também os seus seguidores como Policleto, Lisipo e Praxíteles na Escultura, Ictino e Polícrates na Arquitectura, Exéquias e Eutímedes na Pintura, embora apenas na decoração de vasos, pois frescos e outras obras de pintura sobre grande superfícies não chegaram até nós.
A inferiorização dos valores estéticos humanistas durante a Idade Média, quando a  Igreja católica diaboliza o corpo humano como nada menos do que uma “porta do pecado”, relega todos os artistas para a condição, tida como inferior, de simples artesãos, não havendo diferença entre um pintor de barcos ou de paredes e um pintor de frescos ou de retábulos.
A revalorização do corpo humano como objecto estético e, associado ao antropocentrismo renascentista, o principal objectivo de toda a Arte surge, como acima afirmei, com o Renascimento artístico, quando os “simples artífices”, associados em corporações, ganham vulto entre os seus pares e são protegidos por mecenas, embora o seu estatuto os mantenha num nível pouco superior ao da servidão
É com o reconhecimento social de artistas como Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo e Rafael, disputados por grandes senhores e por papas, que as suas obras ganham a preponderância que viria a destacá-las em relação às “outras” artes.
Estas não são propriamente “pobres”, como se deduz facilmente do suporte material da Ourivesaria e da Joalharia, o mais valioso, mas também da Talha dourada, revestida a folha de ouro, ou o Mobiliário riquíssimo dos séculos XVII em diante, e a Porcelana importada da China e depois produzida na Europa, paga a preço de ouro.
Por outro lado, a mestria exigida aos artistas das Artes Aplicadas é muitas vezes tão exigente como a dos melhores pintores, escultores e arquitectos. Aliás, a associação de todas estas Artes confere-lhes um papel globalmente uno, como acontece com a obra de arte global que representam edifícios barrocos como o Palácio de Versalhes, a Basílica de S. Pedro de Roma ou o Convento de Mafra onde, não o esqueçamos, outras Artes não plásticas se evidenciaram majestosamente, especialmente a Música.

No entanto e à parte estas considerações, o termo estava consolidade e as Belas-Artes passaram a gozar de um estatuto de superioridade que se reflecte nas exposições e respectivos catálogos em Museus de todo o mundo, nos leilões e no senso comum.
Sendo assim, considero que o reconhecimento das Artes Aplicadas como equiparáveis às Belas-Artes mais não é do que a prestação da justiça mais elementar à qualidade e à beleza de obras de arte que revestem paredes e tectos, os pavimentos, portas e janelas, os vastos espaços de igrejas, palácios, teatros e outros edifícios públicos em Portugal e em todo o mundo.

Por falar em Portugal, o estudo do nosso Património artístico é indissociável do estudo e valorização da Talha, do Azulejo, do Vitral, dos Estuques e Embrechados – ainda escassamente estudados – da Faiança e da Porcelana, dos Marfins, do Mobiliário, da Tapeçaria, Paramentaria, Tecidos e Bordados, e da própria Iluminura, arte intermédia entra a Pintura e a Caligrafia, que produziu algumas das mais belas obras da Idade Média.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017



ASSUNÇÃO E ÁGUA BENTA, CADA UM TOMA A QUE QUER

Carlos Rodarte Veloso

(“O Templário”, 12 de Outubro de 2017)

Enquanto o PSD lambe as feridas do combate autárquico em que comprometeu irremediavelmente algum resto de prestígio que ainda pudesse conservar, os outros derrotados assumem atitudes diametralmente opostas em relação ao seu caso particular:
            Assunção Cristas, cujos votos decresceram desde as últimas eleições, grávida da transferência de votos de que beneficiou em Lisboa à custa dos erros de Passos Coelho e seus apoiantes, dançou e deu espectáculo na noite eleitoral, com os seus jovens apoiantes, enquanto a “isenta” comunicação social afecta à Direita, a coloca – quase! – como a verdadeira vencedora destas Autárquicas em que a vitória do Partido Socialista é de tal forma indesmentível!
            E já vimos claramente, na sua atitude perante as forças políticas com que virá a conviver, uma atitude de arrogância e de paternalismo – ou maternalismo? – de quem se considera já o eixo do mundo autárquico português! É ridículo, eu sei, mas a táctica de negar as derrotas à custa de “verdades alternativas” já há muito tempo, mesmo antes das famosas “teorias” de Donald Trump, mesmo antes de Adolf Hitler e de Joseph Goebbels, sempre surtiram o efeito pretendido, isto é, transformar os derrotados em virtuais vencedores.
            De facto, a “vitória” dos vencidos tem sido um divertido “fait divers” que tem acompanhado a maior parte dos balanços eleitorais. Curiosamente, Jerónimo de Sousa, que desde sempre apresentou os resultados da CDU como  “avanços” significativos na luta a favor do povo português, nunca como derrotas, e apesar de superar largamente o número de autarquias conquistadas pelo CDS, apresenta-se como “derrotado” devido à perda de câmaras municipais e  juntas de freguesia que justifica, atenção(!), como erro crasso dos eleitores que, diz ele, virão a arrepender-se deste seu erro fatal. E o despeito é tanto, que dias depois assaca a assumida derrota a uma suja campanha de difamação conduzida pelo PS!
            Devo dizer que não fiquei com a menor ideia de uma tal campanha. Pelo contrário, as declarações pós-eleitorais de António Costa de forma alguma misturam o PCP com o desastre da Direita, antes mostrando um grande respeito e consideração pelo partido de Jerónimo de Sousa, que continua a considerar como aliado e imprescindível à Democracia, assim como ao Bloco de Esquerda, também não propriamente um vencedor nestas eleições.

            Mas as coisas são como são, e o regresso da época dos fogos vai devolver algum fôlego a uma Direita exangue, sempre pronta a embarcar na demagogia e na mentira, se isso parecer dar-lhe alguns dividendos políticos.         

domingo, 8 de outubro de 2017



UMA IGREJA ROMÂNICA NO ALTO MINHO: BRAVÃES

Carlos Rodarte Veloso

(“Correio Transmontano”, 8 de Outubro de 2017)



        Praticamente inexistentes a sul do Tejo, o que se explica por a sua construção ter terminado em finais do século XII, quando o grande rio foi atravessado em definitivo pela Reconquista cristã, as igrejas românicas serão substituídas, no século seguinte, por uma nova concepção arquitectónica, o Gótico. 
           As principais características dos edifícios religiosos românicos variam conforme a sua implantação se faça no meio urbano, ou no rural. Em qualquer dos casos, são caracterizadas pelo uso do arco romano de volta inteira, quer nas portas , quer nas janelas, integrando arcos concêntricos a que se chamou arquivoltas e uma extraordinária robustez das suas muralhas. Herdeiras da basílica, edifício romano destinado a actividades não religiosas,  podem ter uma ou várias naves, contendo assim um considerável número de frequentadores. Essa mesma característica explica a sua adopção como templo cristão.
As igrejas urbanas, de maior dimensão, geralmente protegidas pelas muralhas da vila ou cidade onde se situam, são igrejas matriz ou catedrais, consoante a sua importância, dispensando o aspecto defensivo das fortalezas medievais, embora as suas aberturas, em forma de estreitas frestas, dificulte também o seu acesso a partir do exterior.
Nas igrejas rurais, geralmente afastadas de um povoado fortificado, a sua construção aposta exactamente na autosuficiência em termos defensivos: rarefacção de aberturas, geralmente situadas nos pontos mais altos do edifício, contrafortes maciços reforçando a solidez dos muros, sólidos portões chapeados a ferro ou bronze, menor dimensão.
Se há bons exemplos desta tipologia em território português, a Igreja de S. Salvador de Bravães, próxima de Ponte da Barca, é um dos melhores. De uma só nave, a sua forma  paralelipipédica, a escassez de aberturas e a solidez das paredes contribuem para ser uma autêntica fortaleza em território inseguro. Aqui, perante uma possível invasão, os habitantes locais encontrariam um refúgio, pelo menos provisório, enquanto aguardavam o desfecho dessas frequentes guerras privadas que ensombraram a Alta Idade Média.
Nada disso impediu a fruste tentativa dos seus construtores, situados entre os séculos XI e XII, de curarem a sua estética e os aspectos doutrinais da decoração, o que é sublinhado pela riqueza de pormenores iconográficos dos três portais da igreja e dos capitéis de colunas interiores.





Logo na porta principal, o respectivo tímpano apresenta um Cristo Pantocrator rodeado da “mandorla”, a “amêndoa mística”, rodeado de duas personagens que têm sido interpretadas como anjos ou como os apóstolos Pedro e Paulo. Nos colunelos que rodeiam o portal, além de macacos, serpentes e outros animais ao tempo considerados diabólicos, o anjo Gabriel em frente de Maria, representando a Anunciação.
No portal norte, uma representação da Árvore da Vida, ladeada por dois animais. A sul, o portal do Agnus Dei, representando Cristo na sua forma de Cordeiro sacrificial.
Como sempre acontece, um edifício secular como este não poderia deixar de ser recheado posteriormente por outras obras de arte, nomeadamente pinturas. As que sobraram do envio de um fresco representando o orago, Jesus Cristo Salvador do Mundo e de diversas pinturas levadas para o Museu Nacional de Arte Antiga, são uma Nossa Senhora com o Menino e um Martírio de S. Sebastião, que têm sido datadas, conforme os estudiosos, do século XIV ao XVI, além de decoração padronizada ainda não estudada. Também motivo de interesse é uma pia baptismal cilíndrica.

Por todos os motivos, esta jóia rústica do nosso património das origens da Nacionalidade merece ser conhecida, protegida e reintegrada com o seu recheio primitivo.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017


RAJOY, O NOVO "CAUDILLO" DA ESPANHA

Carlos Rodarte Veloso

(“O Templário”, 5 de Outubro de 2017)

No passado dia 1 de Outubro, três países ibéricos puseram em prática os mecanismos políticos da participação popular. Três países?! Eu explico.
De Portugal já sabemos: a esperada e esmagadora vitória do Governo e a triste actuação do PSD e do seu ainda líder, Passos Coelho, reconhecendo a derrota com o seu neurónio semi-activo e hesitando na desistência com o outro, um tanto deficiente... Por outro lado, a alegada vitória de uma Assunção Cristas bastante mais espevitada do que o mais elementar bem-senso autorizaria, embandeirando em arco com a claríssima transfusão dos votos do PSD para o seu pequeno partido, que continua a ser um pequeno partido por muitos saltos que ela e os seus jovens apoiantes dêem, por muita gritaria com que tentem disfarçar o enorme vazio desse “sucesso”... Mas a comunicaçãozinha social da Direita apoia essa ficção, “logo existe”!
Os dois restantes países são a Espanha e a Catalunha, a primeira parece que esquecida momentaneamente da Democracia aí instaurada após a morte do “Caudillo”, o sanguinário ditador, o Generalíssimo Franco, esquecida dos cravos rubros herdados do Portugal de Abril, regressando à violência pela mão do seu primeiro ministro, o tresloucado Mariano Rajoy, disposto a considerar todo um povo como criminoso. Um pequeno político  infectado pelo vírus do autoritarismo, repetindo em nome da “legalidade constitucional” as lições dos ditadores dos anos trinta do século XX. Para ele, tal como para Franco, tudo é permitido em nome de uma “Espanha una, grande e livre”, até as cargas da Guardia Civil contra uma população indefesa, balas de borracha, a mais selvagem repressão que não poupou sequer idosos, mulheres e crianças. Mais de oitocentos feridos parece ser um preço demasiado alto para proclamar a “grandeza da Espanha”. E o que mais virá, pois as cenas ocorridas na Catalunha do Primeiro de Outubro são a vergonha de um país dito civilizado, enquanto a União Europeia se alheia em parte deste “susto”, reconhecido como muito grave por muitos dos seus dirigentes, e a ONU, honra lhe seja feita, exige um diálogo entre as partes, que Madrid nem sequer teve em consideração.
O outro país, a Catalunha, resgatada pela sua coragem da subalternidade de “região autónoma” ao enfrentar pacificamente, de peito descoberto, a repressão das “forças de ocupação” de Castela, mobilizadas para evitar a todo o custo o referendo que o seu povo deseja há tão longos anos. O referendo que, embora algo ferido na sua legalidade pela destruição de muitos boletins de voto – não decerto devido à declaração de “inconstitucionalidade” com que Rajoy o crismou – o encerramento dos locais de votação, a repressão mais sangrenta, conquistou mais de dois milhões de votantes e ganhou o direito de se autoproclamar um Estado independente e Republicano, pela voz do seu Presidente do Governo, Puigdemont, que para isso aguarda apenas o resultado da contagem dos votos.

Assim vai a Península Ibérica, a “Jangada de Pedra”, como José Saramago lhe chamou num dos seus momentos mais brilhantes de inspiração. Mas não tenham ilusões os aprendizes de ditador: o milhão de mortos de uma guerra civil que terminou há quase 80 anos e preparou uma outra guerra, ainda mais terrível, a segunda mundial, serão – parece-me – suficientemente trágicos e assustadores, para que uma réstea de esperança subsista acima do nacionalismo desenfreado de um “Arriba España” que parece estar no espírito deste galego tão arrogantemente castelhano que domina o governo de Madrid.