sexta-feira, 15 de dezembro de 2017



A ARTE E OS SEUS MECENAS

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 14 de Dezembro de 2017


O termo “mecenas” é hoje usado para caracterizar as individualidades que protegeram ou protegem as Artes, conceito que engloba não só as Artes propriamente ditas, mas também as Letras e as Ciências, a Filosofia e todas as actividades intelectuais desenvolvidas deste a Antiguidade Clássica.
Foi o abastado romano Caio Cílnio Mecenas (Fig.1) – 70 a 8 a.C. – patrono das Letras, amigo pessoal do imperador Augusto e seu tribuno e orador, protector de poetas como Horácio, Virgílio e Propércio, cuja sensibilidade e conhecimento, aliados à sua fortuna, se converteram nos atributos dos homens e mulheres que ao longo dos séculos protegeram as Artes e os Artistas – em sentido lato – e por isso mereceram o título de “mecenas”.
Ao longo dos séculos outros mecenas surgiram, especialmente durante o Renascimento, nalguns casos muito mais conhecidos que o original romano, de que é paradigma Lorenzo de Medici (Fig.2), banqueiro e estadista florentino que patrocinou figuras geniais como os artistas Botticelli, Ghirlandaio e Miguel Ângelo, poetas como Pulci e Poliziano, filósofos como Marsílio Ficino e Picco della Mirandola, ele próprio mecenas também. Miguel Ângelo viria ainda, tal como Rafael e Bramante, a ser patrocinado pelo papa Júlio II que, depois de lhe ter encomendado o próprio túmulo – que nunca foi finalizado – o  obrigou a pintar – a ele, o escultor que menosprezava a Pintura – a extraordinária abóbada da Capela Sistina. O não menos genial Leonardo da Vinci foi ele próprio patrocinado pelo mecenato de Ludovico Sforza “il Moro”, governante de Milão e mais tarde, por Francisco I de França, em cujos braços viria a morrer.
Reis e rainhas, príncipes e princesas, papas, altos prelados, banqueiros, magnatas da indústria e do comércio, notabilizaram-se ao longo dos tempos associados às obras-primas dos seus protegidos e às mais diversas descobertas científicas e tecnológicas da humanidade.
Seria fastidioso enumerá-los e se é verdade que contribuíram materialmente para a sobrevivência, a prosperidade e a obra de figuras tão geniais como Bernini ou Borromini, para apenas citar artistas, também frequentemente se imiscuíram na sua criatividade pressionando-os a adoptar escolhas temáticas ou formais, ou exigindo o seu retrato nas obras de arte encomendadas, como foi comum a muitos deles, que assim tentaram ganhar visualmente a imortalidade.
Em Portugal, tal como nos restantes países, também alguns reis se tornaram o paradigma do mecenato. É o caso de D. Manuel I, enriquecido pelas especiarias dos Descobrimentos, encomendante de uma infinidade de monumentos manuelinos, ainda tributários do Gótico Tardio, e o do seu sucessor, D. João III, que promoveu a penetração em Portugal do gosto renascentista, quer através de encomendas a famosos artistas estrangeiros, quer  pelo envio para Roma e outras cortes europeias de bolseiros, dos quais Francisco de Holanda foi o mais famoso, tendo em Roma conhecido Miguel Ângelo e trazido para a corte numerosos desenhos e pinturas que actualizaram e influenciaram poderosamente a Arte portuguesa.
 D. João V, destinatário do ouro do Brasil, responsável pela construção do mais emblemático e colossal monumento de Portugal, o palácio-convento de Mafra, do estilo barroco, para o qual contratou numerosos artistas estrangeiros, dominantemente italianos, que contribuíram para modificar o panorama e o gosto artístico nacionais, o Patriarcado de Lisboa, destruído pelo Terramoto de 1755, e a maravilhosa Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra.
Também o nosso rei-consorte de D. Maria II, o alemão D. Fernando II, protegeu activamente o património artístico nacional, então em grave perigo, tendo promovido a construção do exemplo acabado da arquitectura romântica nacional, o Palácio de Pena em Sintra.
Exemplo de prelados portugueses que se notabilizaram pela sua cultura e protecção das Artes com a contratação de artistas e a construção de monumentos, é o Bispo de Coimbra D. Jorge de Almeida, que beneficiou a Sé Velha de Coimbra com o concurso de Olivier de Gand e Jean d’Ypres para o magnífico retábulo gótico da altar-mor, e de João de Ruão para a criação da sua belíssima “Porta Especiosa” já renascentista.
Também o bispo de Viseu D. Miguel da Silva, mecenas do grande pintor Vasco Fernandes, o “Grão Vasco” e, exilado em Roma onde foi nomeado cardeal, tornou-se de tal forma famoso pela sua cultura e espírito humanista, que lhe foi dedicado o famoso livro de Baldassare Castiglione, “O Cortesão”, que descreve o completo homem do Renascimento, de que ele seria o melhor exemplo.
O bispo de Beja, depois arcebispo de Évora, frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas, além de uma acção persistente a favor do desenvolvimento dos estudos científicos em Portugal dentro do espírito do Iluminismo, foi colaborador do marquês de Pombal na reforma da Universidade de Coimbra e coleccionou um valioso espólio arqueológico e literário que o tornou o pioneiro dos museus em Portugal. Fundou a Academia Eclesiástica de Beja em 1793, e instituiu no seu próprio paço episcopal um curso de humanidades. 
Também a rainha D. Leonor (Fig.3), esposa de D. João II se notabilizou, não só pela criação das Misericórdias, mas também pela protecção a escritores como Gil Vicente e a encomendação de obras como a igreja manuelina de Nossa Senhora do Pópulo nas Caldas da Rainha, localidade que prosperou sob a sua protecção até se tornar cidade.
A Infanta D. Maria, filha de D. Manuel I, a mulher mais rica de Portugal, impedida pelo próprio pai de se casar, tornou-se a verdadeira patrona das Artes na nossa época renascentista, sendo a figura central de um círculo cultural na sua corte privada.
Além dos exemplos mencionados e fora da esfera real e eclesiástica, a figura decerto mais significativa no âmbito do mecenato em Portugal e da própria educação artística foi sem dúvida o engenheiro e empresário arménio Calouste Sarkis Gulbenkian (Fig.4) – 1869-1955 – pioneiro da exploração do petróleo no Médio-Oriente que, a partir da sua vinda para o nosso país e mercê da sua fabulosa fortuna, se converteu num quase “ministro da cultura”, quando não existia um Ministério da Cultura, ao criar o Museu e a Fundação Gulbenkian, patrocinadora de boa parte dos estudos artísticos e científicos através da concessão de bolsas de estudos e a publicação de uma infinidade de ensaios e revistas de grande qualidade.
Finalmente e deixando injustamente de parte mais de uma dúzia de individualidades nacionais, terminarei referindo a acção de Ricardo do Espírito Santo Silva – 1900 a 1955 – banqueiro, coleccionista de arte, mecenas e desportista, próximo assim do ideal renascentista do “homem total” e criador da Fundação com o seu nome, destinada à musealização e conservação e restauro do património artístico português e editora de numerosas publicações destinadas à História da Arte.
Outras individualidades se têm destacado, como ficou dito, embora muitas vezes o seu mecenato seja favorecido por benefícios fiscais concedidos pelo Estado o que, sendo de todo justificado, “envenena” por vezes a sua acção cívica e cultural com a suspeição do mercantilismo. Mas será que ele não é uma constante na maior parte dos casos?


                   
Fig. 1 – “Caio Cílnio Mecenas” – busto italiano no Coole Park, Galway, Irlanda



Fig. 2 – Verrocchio – “Busto de Lourenço de Medici”, terracota

 
      
                
            Fig. 3 - Francisco  Franco – “Rainha D. Leonor” - Caldas da Rainha, 1935



            Fig. 4 - Leopoldo de Almeida – “Gulbenkian” - Jardins da Fundação Gulbenkian, 1965



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