sexta-feira, 29 de dezembro de 2017



A MULHER NA ARTE E A ARTE 

DA MULHER EM PORTUGAL

Carlos Rodarte Veloso

"O Templário", 28 de Dezembro de 2017

 NOTA: Este artigo é a síntese de dois artigos dedicados ao mesmo tema, A Mulher na Arte I e II (O Templário, 16 e 23/2/2017), sendo este especialmente focado no caso português.

            Falar sobre a mulher na arte, é tema bem complicado pela ambiguidade da própria expressão: mulher na Arte, sim, mas como modelo, como autora, ou como mecenas? Recordando a referência no anterior artigo a esta última categoria, darei agora um especial realce à sua condição – milenar – de modelo e, finalmente, de artista.
            É que antes ser artista, a mulher na Arte era, quase exclusivamente, o modelo. De facto, a sociedade dominada pelo poder masculino sempre mostrou uma tendência crescente para retirar à mulher toda e qualquer capacidade de actuar sobre o mundo exterior à família. A ela, ser criador por excelência, restavam a procriação e as actividades artesanais domésticas, únicas funções vedadas ao sexo masculino, a primeira por motivos biológicos, as outras por interdito social … por outro lado, era obrigada a guardar um recato que lhe restringia quase totalmente a possibilidade de revelar os seus talentos.
No entanto, persiste a dúvida sobre o seu real papel na primeira criação artística, já que ignoramos tudo sobre a sua acção durante a Pré-História: as pinturas rupestres de Altamira ou de Foz Côa, ou as misteriosas figurinhas de vénus não trazem a assinatura… nem o sexo de quem as produziu… e bem poderiam ter sido mulheres as suas autoras, dado que a tradicional divisão do trabalho lhes atribuiria, provavelmente, tarefas mais sedentárias, enquanto ao homem, a exemplo do que se passa nas tribos ditas “primitivas”, caberia essencialmente a caça. Também nas Artes Aplicadas, nomeadamente na Cerâmica, na Cestaria, e na Tecelagem, é bem possível que fosse o sexo feminino o seu principal autor, desde a sua criação no período Neolítico.
            Raramente ligada às artes ditas “maiores”, a mulher torna-se, em todo o mundo, até aos dois últimos séculos, o motivo inspirador de gerações de artistas e escritores, que nela exaltam o “eterno feminino”. Em pinturas ou esculturas, em busto ou em corpo inteiro, ricamente vestidas ou desnudas, elas são rainhas e camponesas, santas e pecadoras, mulheres comuns, deusas pagãs ou simples alegorias…
            Na Arte portuguesa, aquela que aqui abordarei, essa tendência foi também dominante, e se dispomos de um inumerável contingente de santas — em que avulta Maria, mãe de Jesus Cristo — e piedosas rainhas, princesas e outras veneráveis damas, também podemos apreciar sugestivas pecadoras sofrendo as penas do Inferno (Fig.1 – Jorge Afonso – “O Inferno”, MNAA)  ou do Purgatório e, até, diabas!  Agentes do Bem ou do Mal, não havia meios-termos para as mulheres! Tolerados, porque fora do tempo, eram os belíssimos nus das deusas da Mitologia grega e romana, as alegorias e as representações da nossa venerável  mãe, Eva!


            Pela sua beleza ou pela lenda que as rodeou, deixaram marca na arte portuguesa e, até, europeia, figuras reais como Inês de Castro, Leonor Teles, a “Flor de Altura”, Santa Joana, Isabel de Portugal, esposa do imperador Carlos V, que chegou a ser pintada pelo grande Ticiano (fig.2 – Ticiano, “Imperatriz Isabel de Portugal”), ou Catarina de Bragança, rainha de Inglaterra, onde introduziu o hábito do chá e a quem foi dedicado o famoso bairro novaiorquino de Queens.


            Se é verdade que, especialmente em Portugal, foram poucas as mulheres que, antes do século XX, sobressaíram como artistas, há, mesmo assim, um razoável número de exemplos. Ocorre-nos facilmente o nome da pintora seiscentista Josefa d’Óbidos, especialmente famosa pela ingenuidade tocante com que compôs algumas das mais pitorescas pinturas do nosso período barroco:  quem não conhece os Cordeiros Místicos, as Naturezas-mortas, a infindável série de cenas religiosas, especialmente incidindo sobre a vida da Virgem e de alguns santos especialmente populares em Portugal, ou os Meninos Jesus Salvadores do Mundo? Com uma sensibilidade muito própria de quem contactou muito de perto com a realidade da vida religiosa dos conventos femininos do nosso século XVII, multiplicou-se em rendinhas, laços, bordados e outros mimos, com que enfeitou “Meninos Jesus” (Fig.3 – Josefa de Óbidos, “Menino Jesus Salvador do Mundo), tal como as freiras iam vestindo amorosamente, com desvelo de mães que não poderiam ser, as rechonchudas imagens rosadas
            As próprias naturezas-mortas ou “bodegones”, gulosas imagens de frutos, flores, queijos, doces e bolos, correspondem a esse ambiente em que o grande misticismo da maior parte do tempo era frequentemente mitigado com os saborosos doces conventuais que eram importante parte das receitas dos milhares de mosteiros espalhados pelo País, obra de mulheres, a maior parte das vezes…



            Desde Josefa d’Óbidos ao século seguinte, vão surgindo algumas mulheres dedicadas às Artes, mas sempre mais como excepção do que como regra: uma escultora, Inácia de Almeida e três arquitectas,  Agustina Barbosa e Silva, Umbelina Joana Mendes de Távora e D. Margarida de Noronha, autora da planta da Igreja da Anunciada, em Lisboa, ombreiam com razoável número de mulheres dedicadas à pintura, especialmente freiras e damas da alta aristocracia, de cuja formação faziam parte aulas de pintura. É o caso de Soror Maria dos Anjos, D. Maria de Guadalupe e Lencastre Cardenas, duquesa de Aveiro, D. Ana Catarina de Lorena e a própria Infanta D.Maria Benedita, a quem é atribuído um dos quadros da Basílica da Estrela. Algumas familiares — e discípulas — de pintores se destacam: Catarina Vieira, irmã de Vieira Lusitano, e Teodora Maria Andrina, filha de João Rodrigues Andrino, além de algumas portuenses de origem inglesa, como Isabel Brown e, também no Porto, Luísa Maria Rosa, que não só conseguiu viver da profissão, mas aí chegou a abrir uma escola de pintura para raparigas. Mas a pintora portuguesa mais destacada no século XVIII, foi sem dúvida Joana do Salitre, que pintou diversos retratos do Marquês de Pombal e de seus irmãos, hoje no Palácio de Oeiras, e quadros religiosos para a Conceição Velha de Lisboa.
            Na passagem do século XIX para o XX, sobressaem as pintoras Josefa Garcia Greno e Aurélia de Sousa, correspondendo ao movimento naturalista. Esta rarefacção de mulheres nas artes apenas viria a ser ultrapassada em pleno século XX.           
         Nos dois últimos séculos são inúmeras as artistas portuguesas de renome, desde as mais internacionais, Maria Helena Vieira da Silva (Fig.4 – Vieira da Silva, “O Desastre” ou “A Guerra”, 1942), Graça Morais e Paula Rego (Fig. 5 – Paula Rego “O Tempo – Passado e Futuro”, 1990), uma das mais originais criadoras do nosso tempo, a um conjunto de nomes de que poderei salientar Sarah Afonso, Maria Keil, Menez, Mily Possoz, Maria José Aguiar e Ana Vidigal, além da tomarense Maria de Lourdes de Mello e Castro que cultivou o naturalismo do seu mestre José Malhoa até meados do século XX.

Embora seja ainda aos pintores do sexo masculino que cabe a maior parte da produção artística nacional, há bons motivos de esperança num futuro mais equilibrado em termos de género. 




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