A MULHER NA ARTE E A ARTE
DA MULHER
EM PORTUGAL
Carlos Rodarte Veloso
"O Templário", 28 de Dezembro de 2017
"O Templário", 28 de Dezembro de 2017
NOTA: Este
artigo é a síntese de dois artigos dedicados ao mesmo tema, A Mulher na Arte I e II (O Templário, 16 e 23/2/2017), sendo este especialmente focado no
caso português.
Falar sobre a mulher na arte, é tema
bem complicado pela ambiguidade da própria expressão: mulher na Arte, sim, mas
como modelo, como autora, ou como mecenas? Recordando a referência no anterior
artigo a esta última categoria, darei agora um especial realce à sua condição –
milenar – de modelo e, finalmente, de artista.
É que antes ser artista, a mulher na
Arte era, quase exclusivamente, o modelo. De facto, a sociedade dominada pelo
poder masculino sempre mostrou uma tendência crescente para retirar à mulher
toda e qualquer capacidade de actuar sobre o mundo exterior à família. A ela,
ser criador por excelência, restavam a procriação e as actividades artesanais
domésticas, únicas funções vedadas ao sexo masculino, a primeira por motivos
biológicos, as outras por interdito social … por outro lado, era obrigada a
guardar um recato que lhe restringia quase totalmente a possibilidade de
revelar os seus talentos.
No entanto, persiste a dúvida sobre o seu real papel na
primeira criação artística, já que ignoramos tudo sobre a sua acção durante a
Pré-História: as pinturas rupestres de Altamira ou de Foz Côa, ou as
misteriosas figurinhas de vénus não
trazem a assinatura… nem o sexo de quem as produziu… e bem poderiam ter sido
mulheres as suas autoras, dado que a tradicional divisão do trabalho lhes
atribuiria, provavelmente, tarefas mais sedentárias, enquanto ao homem, a
exemplo do que se passa nas tribos ditas “primitivas”, caberia essencialmente a
caça. Também nas Artes Aplicadas, nomeadamente na Cerâmica, na Cestaria, e na
Tecelagem, é bem possível que fosse o sexo feminino o seu principal autor,
desde a sua criação no período Neolítico.
Raramente ligada às artes ditas
“maiores”, a mulher torna-se, em todo o mundo, até aos dois últimos séculos, o motivo
inspirador de gerações de artistas e escritores, que nela exaltam o “eterno
feminino”. Em pinturas ou esculturas, em busto ou em corpo inteiro, ricamente
vestidas ou desnudas, elas são rainhas e camponesas, santas e pecadoras,
mulheres comuns, deusas pagãs ou simples alegorias…
Na Arte portuguesa, aquela que aqui
abordarei, essa tendência foi também dominante, e se dispomos de um inumerável
contingente de santas — em que avulta Maria, mãe de Jesus Cristo — e piedosas
rainhas, princesas e outras veneráveis damas, também podemos apreciar
sugestivas pecadoras sofrendo as penas do Inferno (Fig.1 – Jorge Afonso – “O
Inferno”, MNAA) ou do Purgatório e, até,
diabas! Agentes do Bem ou do Mal, não
havia meios-termos para as mulheres! Tolerados, porque fora do tempo, eram os
belíssimos nus das deusas da Mitologia grega e romana, as alegorias e as
representações da nossa venerável mãe,
Eva!
Pela sua beleza ou pela lenda que as
rodeou, deixaram marca na arte portuguesa e, até, europeia, figuras reais como
Inês de Castro, Leonor Teles, a “Flor de Altura”, Santa Joana, Isabel de
Portugal, esposa do imperador Carlos V, que chegou a ser pintada pelo grande
Ticiano (fig.2 – Ticiano, “Imperatriz Isabel de Portugal”), ou Catarina de
Bragança, rainha de Inglaterra, onde introduziu o hábito do chá e a quem foi
dedicado o famoso bairro novaiorquino de Queens.
Se é verdade que, especialmente em
Portugal, foram poucas as mulheres que, antes do século XX, sobressaíram como
artistas, há, mesmo assim, um razoável número de exemplos. Ocorre-nos facilmente
o nome da pintora seiscentista Josefa d’Óbidos, especialmente famosa pela
ingenuidade tocante com que compôs algumas das mais pitorescas pinturas do
nosso período barroco: quem não conhece os Cordeiros Místicos, as Naturezas-mortas,
a infindável série de cenas religiosas, especialmente incidindo sobre a vida da
Virgem e de alguns santos especialmente populares em Portugal, ou os Meninos
Jesus Salvadores do Mundo? Com uma
sensibilidade muito própria de quem contactou muito de perto com a realidade da
vida religiosa dos conventos femininos do nosso século XVII, multiplicou-se em
rendinhas, laços, bordados e outros mimos, com que enfeitou “Meninos Jesus”
(Fig.3 – Josefa de Óbidos, “Menino Jesus Salvador do Mundo), tal como as
freiras iam vestindo amorosamente, com desvelo de mães que não poderiam ser, as
rechonchudas imagens rosadas
As próprias naturezas-mortas ou
“bodegones”, gulosas imagens de frutos, flores, queijos, doces e bolos,
correspondem a esse ambiente em que o grande misticismo da maior parte do tempo
era frequentemente mitigado com os saborosos doces conventuais que eram
importante parte das receitas dos milhares de mosteiros espalhados pelo País,
obra de mulheres, a maior parte das vezes…
Desde Josefa d’Óbidos ao século
seguinte, vão surgindo algumas mulheres dedicadas às Artes, mas sempre mais
como excepção do que como regra: uma escultora, Inácia de Almeida e três
arquitectas, Agustina Barbosa e Silva,
Umbelina Joana Mendes de Távora e D. Margarida de Noronha, autora da planta da
Igreja da Anunciada, em Lisboa, ombreiam com razoável número de mulheres
dedicadas à pintura, especialmente freiras e damas da alta aristocracia, de
cuja formação faziam parte aulas de pintura. É o caso de Soror Maria dos Anjos,
D. Maria de Guadalupe e Lencastre Cardenas, duquesa de Aveiro, D. Ana Catarina
de Lorena e a própria Infanta D.Maria Benedita, a quem é atribuído um dos
quadros da Basílica da Estrela. Algumas familiares — e discípulas — de pintores
se destacam: Catarina Vieira, irmã de Vieira Lusitano, e Teodora Maria Andrina,
filha de João Rodrigues Andrino, além de algumas portuenses de origem inglesa,
como Isabel Brown e, também no Porto, Luísa Maria Rosa, que não só conseguiu
viver da profissão, mas aí chegou a abrir uma escola de pintura para raparigas.
Mas a pintora portuguesa mais destacada no século XVIII, foi sem dúvida Joana
do Salitre, que pintou diversos retratos do Marquês de Pombal e de seus irmãos,
hoje no Palácio de Oeiras, e quadros religiosos para a Conceição Velha de
Lisboa.
Na passagem do século XIX para o XX,
sobressaem as pintoras Josefa Garcia Greno e Aurélia de Sousa, correspondendo
ao movimento naturalista. Esta rarefacção de mulheres nas artes apenas viria a
ser ultrapassada em pleno século XX.
Nos dois últimos séculos são inúmeras as artistas portuguesas de renome, desde as mais internacionais, Maria Helena Vieira da Silva (Fig.4 – Vieira da Silva, “O Desastre” ou “A Guerra”, 1942), Graça Morais e Paula Rego (Fig. 5 – Paula Rego “O Tempo – Passado e Futuro”, 1990), uma das mais originais criadoras do nosso tempo, a um conjunto de nomes de que poderei salientar Sarah Afonso, Maria Keil, Menez, Mily Possoz, Maria José Aguiar e Ana Vidigal, além da tomarense Maria de Lourdes de Mello e Castro que cultivou o naturalismo do seu mestre José Malhoa até meados do século XX.
Embora seja ainda aos pintores do sexo masculino que cabe a maior parte da produção artística nacional, há bons motivos de esperança num futuro mais equilibrado em termos de género.
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