quinta-feira, 11 de janeiro de 2018



ARTE E LITERATURA

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 11 de Janeiro de 2018

As tradições orais abrangendo a história real ou imaginária das comunidades humanas ao longo dos séculos, contribuíram para a sua coesão e justificação num mundo repleto de dificuldades e perigos de toda a ordem, muitos deles advindos de comunidades rivais. No entanto, a transmissão oral de geração em geração caracteriza-se pela progressiva alteração da mensagem original, perdendo-se informação ou acrescentando-se-lhe novos dados que acabam por confundir história e lenda. Como diz o povo, “conta-se um conto, acrescenta-se um ponto”.
As figuras reais dos fundadores depressa se convertem em deuses ou heróis dotados de transcendentes poderes, eles próprios míticos criadores dessas comunidades. Só a fixação desse acervo de informação através da escrita, isto é, da Literatura, permitiu fixar essa torrente desenfreada de informação, tantas vezes incoerente e contraditória.
Antes da invenção da Escrita, ainda em plena pré-história, era a representação gráfica desses mitos de fundação, por exemplo através da Arte rupestre, que consolidavam a informação, mesmo falseada, acerca dos diversos povos.
Com a invenção da Escrita torna-se possível guardar na memória – pois de memória estamos a falar – desde os factos corriqueiros do dia a dia relacionados com a economia, a sucessão das dinastias de sacerdotes e reis, verdadeiros ou míticos, as batalhas, os desastres naturais e os pensamentos mais íntimos dos seus autores.
Inscrita na pedra, em placas de argila, em papiro ou noutro qualquer suporte, assim nasce a Literatura nas suas múltiplas vertentes, da histórica à lendária, em verso ou em prosa, sendo o ritmo poético um vestígio da sua origem oral, quando os aedos dele se serviam para memorizar um texto geralmente demasiado longo para reter.
A mais antiga Literatura é baseada no Mito, nos factos imaginários associados à criação do Universo, às origens dos deuses e da humanidade, às suas estratégias de sobrevivência e às suas relações mútuas confundindo, num todo caótico, História e Religião. A esse caos fabuloso chamou-se Mitologia, a primeira das narrativas literárias.
Assim como a primeira arte da humanidade, a arte pré-histórica, nasce da observação directa da natureza e da narrativa oral, a narrativa escrita vai inspirar uma arte crescentemente complexa e ambiciosa, que vai ter o seu apogeu com o Romantismo, já no século XIX, sem esquecer a importância das artes desde a Antiguidade ao chamado Antigo Regime que precede a Revolução Francesa.
Sendo manifestamente impossível desbravar num só artigo um tão vasto terreno, limitar-me-ei a referir alguns artistas oitocentistas e  novecentistas cuja obra ilustrou alguns dos mais populares temas da Literatura universal. Assim seleccionei cenas de algumas das obras imortais de Homero, Dante Alighieri, Camões, Shakespeare e Cervantes, pintadas por artistas que revelaram especial vocação para essa temática.
O mais antigo e enigmático é Homero, designação do autor – ou autores – dos  poemas épicos fundadores da Literatura europeia, “A Ilíada” e “A Odisseia”, escritos ou passados a escrito entre os séculos IX e VIII a.C., cuja temática gira em torno da Guerra entre Gregos e Troianos, dos seus heróis e deuses, e das aventuras fabulosas do lendário rei de Ítaca, Ulisses, o herói “fértil em recursos”, cuja périplo de dez anos entre o Mar Egeu e o Mar Jónio constitui talvez a primeira narrativa de aventuras da história literária ocidental. Muitos artistas, desde os anónimos pintores de vasos da Grécia Clássica, aos artistas pré-rafaelitas da Inglaterra vitoriana, se ocuparam desta história imortal, recuperando-a também para o Cinema, a 7ª Arte, onde conheceu êxitos extraordinários. Como exemplo da arte pré-rafaelita, apresento a pintura de Waterhouse representando o episódio de “A Odisseia”, Ulisses e as Sereias (fig.1) pintada em 1891.


Segue-se o poeta e político florentino Dante Alighieri (séc. XIII-XIV),  considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana e intitulado o sumo poeta", sendo ele próprio o criador do Italiano moderno. As suas aventuras visitando os três reinos dos mortos, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, nos dois primeiros acompanhado pelo poeta romano Virgílio, no terceiro pela sua própria e defunta noiva, Beatriz, são relatadas na “Divina Comédia”. Tema romântico por excelência, encontramo-lo no dramático quadro do pintor francês Delacroix, A Barca de Dante, pintado em 1822 (fig.2). A bordo da barca de Caronte, o barqueiro do Inferno, Dante e Virgílio são assediados pelas almas insepultas que procuram subir para bordo.


O nosso Camões não poderia ficar de fora desta mini-antologia de obras imortais, neste caso representado pelo famoso episódio do Canto IX de “Os Lusíadas”, tema fortemente pagão que chegou a ser proibido no programa oficial dos Liceus da época salazarista dado o seu carácter vincadamente sensual. Trata-se do tema A Ilha dos Amores, quando os heróicos navegadores portugueses obtém a recompensa dos perigos experimentados na primeira viagem à Índia, nas carícias das belíssimas Ninfas enviadas por Vénus. José Malhoa, grande pintor naturalista português passou-o à tela c. 1908 (fig.3).


Shakespeare, para muitos o maior escritor da História da Literatura, foi abundantemente revisitado por artistas pré-rafaelitas como Arthur Hugues, no caso presente através de um tema da peça “Hamlet” (1599 – 1601), Ofélia, a bela noiva do Príncipe da Dinamarca, deambulando pelos bosques (fig.4) pintado em 1865.


Finalmente, o grande escritor espanhol Cervantes e a sua obra-prima, “ O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha”, publicada em 1605. Esta narrativa trágico-cómica põe em confronto os altíssimos ideais de Cavalaria da Idade-Média e o espírito mercantilista da época do Escritor, através da viagem por Espanha de um fidalgote obcecado pela gesta desses heróis românticos, acompanhado pelo seu fiel escudeiro Sancho Pança, este personificando o materialismo e o oportunismo do Século de Ouro de Espanha. Excelente ilustração disto mesmo é a obra do espanhol Picasso, de 1955, representando D. Quixote, Sancho Pança e os Moinhos (fig.5), que ele via como gigantes ameaçadores.


Em todos estes autores, a superação dos limites humanos através do heroísmo, da inteligência e da honradez. 

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