AS CAPELAS DE OSSOS EM PORTUGAL E A
ARTE DO MACABRO
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 22 de Fevereiro de 2018
As
“capelas de ossos”, espaços sacros revestidos de ossos humanos, organizados em
camadas alternadas de caveiras, tíbias e fémures, em arranjos horizontais e
verticais, leia-se, artísticos, representam uma das mais macabras mas também
originais manifestações de piedade, correspondendo à preparação monacal para
uma “boa morte”.
Essa preparação está
especialmente associada a capelas de conventos, destinadas expressamente à “contemplação
dos ossos”, símbolo da transitoriedade das coisas terrenas, convite à
oração pelas Almas do Purgatório e à reflexão sobre a hora mortis e a necessidade de desprezar as “coisas vãs” do mundo,
as quais conduziriam inevitavelmente à perdição das almas.
Pode
não parecer á primeira vista muito convencional promover a obra de arte as “capelas de ossos”.
Mas a obra de arte consiste em “modificações intencionais que o espírito humano
imprime em objectos da natureza”, como refere Raymond Bayer. Assim e ao
contrário do que se passa com a paisagem natural propriamente dita, a
disposição artificial dos mesmos elementos naturais formando, por exemplo, um
dólmen ou um cromeleque neolíticos ou, no século XX, as composições da “land
art”, já não suscita grandes dúvidas sobre a sua natureza artística. É isso
exactamente que se passa em todos os monumentos cujo material de base são os
últimos dos despojos humanos, os ossos. Dos mais simples “carneiros” — os ossários medievais — às capelas de ossos propriamente ditas, todo o cenário assim organizado tem um propósito implícito e uma organização
que nada tem de natural.
Falei
em cenário, e essa referência remete-nos para o universo das atitudes
humanas perante a morte e das mentalidades que as geraram: o teatro, o
espectáculo, prenúncio do Barroco, já presente no riso sinistro da caveira do
“carpe diem” romano, ou dos túmulos de diferentes épocas, na “dança macabra” medieval,
ou nos repugnantes jacentes dos séculos XIV e XV, representando, em todo o seu
horror, a decomposição do cadáver, símbolo acabado da impureza que a morte traz…
E a oração
pelas Almas do Purgatório logo recorda a problemática da invenção do Purgatório, por volta do
século XI, depois dos primeiros séculos do Cristianismo marcados a fogo pelo
dualismo Paraíso-Inferno, tema caro ao historiador Jacques Le Goff e cuja
importância foi tão expressivamente vincada por Pierre Chaunu. Logo me ocorre
ainda a espontaneidade e o vigor do culto popular das “Alminhas” e de todas as Confrarias que lhes prestaram
culto no nosso País, sendo evidente a sua relação com as capelas de ossos.
É
num contexto pré-barroco que são construídas as primeiras capelas de ossos em
Portugal, havendo também pelo menos um exemplo espanhol, a capela de ossos de
Wamba, próximo de Valladolid, pelo menos duas em Itália e outras em diversos
países da Europa Central, e também uma em Lima, no Peru. É provável a
existência de muitas outras, espalhadas pelo mundo.
Quanto
ao levantamento destas capelas em Portugal, parecem bastante promissores os
resultados obtidos. De momento, podemos referir, globalmente, as seguintes
capelas portuguesas: a de Santa Cruz de Coimbra, quinhentista, e as de Elvas, desaparecidas, a da Igreja de S.
Francisco, no Porto, a de S. Francisco de Évora, a mais célebre, as de Campo
Maior, Monforte, Lagos,Alcantarilha (Silves), Pechão (Olhão) e as duas de Faro. São, assim, doze ao todo, apenas duas delas situadas a norte do Tejo.
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Fig. 1 – Entrada na Capela de Ossos da Igreja de S. Francisco, Évora |
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Fig. 2 – Capela de Ossos da Igreja de S. Francisco, Évora |
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Fig. 3 – Capela de Ossos de Campo Maior |
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Fig. 4 – Capela de Ossos da Igreja do Carmo, Faro |
Há que acentuar que a do
Porto é menos uma “capela de ossos” do que um ossário, correspondente aos
antigos “carneiros” medievais, visto consistir em aglomerados de crânios e
ossadas partidas e dispostas anarquicamente nas criptas da igreja. Estes
macabros despojos eram pertencentes aos irmãos da Ordem Terceira que assim
pretendiam aguardar a ressurreição no dia do Juízo Final em terreno sagrado.
Uma das criptas, repleta de ossos e protegida por uma vidraça, é o que se
oferece à vista dos actuais visitantes.
Quanto às capelas de
ossos propriamente ditas, as ainda existentes podem agrupar-se,
tipologicamente, em duas grandes regiões: a do Alentejo e a do Algarve. As
primeiras são menos elaboradas do ponto de vista decorativo, mais “pesadas” —
leia-se barrocas — devido a um
verdadeiro “horror ao vazio”, contando com o exemplo mais espectacular, o de
Évora. As capelas algarvias apostam numa maior delicadeza decorativa, buscando
reduzir as ossadas a ornatos mais ou menos “inocentes” — leia-se, “disfarçados”
—, o que as identifica, formal e cronologicamente, com o rococó.
O
caso da capela de Coimbra, pretensamente constituída pelos ossos dos cristãos
tombados no campo da mítica batalha de Ourique, é extremamente interessante,
não só por a sua antiguidade situar a respectiva construção entre 1533 e 1541,
mas pela ligação perfeitamente evidente que é estabelecida, desde o primeiro
momento, entre a dita capela e um autêntico culto da figura de D. Afonso
Henriques levada a cabo pelos frades Crúzios, que tudo tentaram junto de D.
João III, e deste junto da Santa Sé, para obterem a canonização do nosso
primeiro rei. Em vão.
Como se vê, não são
poucas as reflexões suscitadas por estas pobres construções, ainda pouco
conhecidas — a capela de ossos da Igreja de S. Sebastião de Lagos era até
desconhecida de muitos dos seus vizinhos mais próximos! — e menos estudadas
ainda. Desprezadas pelos poderes
públicos, é o culto popular das Almas do Purgatório, associado à curiosidade
mórbida de muitos turistas, que as vai mantendo de pé. A capela de ossos de
Évora é o monumento mais visitado de Évora, apenas a par, talvez, do Templo de
Diana, de que não há, obviamente, registo das visitas, visto ser um monumento
aberto, ao ar livre.
De facto é o gosto pelo exótico misturado com o macabro, tão popular em todos os tempos, mas
principalmente na nossa época, que acaba por levar a melhor. É uma estética do
horrível que conduziu à muito rentável visualização do terror em todas as artes
visuais, da pintura ao cinema.