sábado, 10 de fevereiro de 2018



NATUREZA MORTA e "TROMPE L’OEIL" NA

HISTÓRIA DA ARTE


Carlos Rodarte Veloso


“O Templário”, 8 de Fevereiro de 2018

O conceito de “natureza morta” é quase tão antigo como a História da Arte, embora essa designação apenas surja, nas várias línguas europeias, a partir do século XVII, nomeadamente no Neerlandês. Anteriormente era associado a temas mais restritos, como a representação de fruta (fruytagie), de um banquete (bancket), ou de pequeno-almoço (ontbijt). Estas designações acabaram concentradas numa única, stilleven, significando objecto inanimado, ou natureza imóvel. Rapidamente adoptada em outras línguas, ficou “Natureza Morta” no Português, “Bodegón” no Castelhano (associado a “bodega” ou taberna), “Nature morte” no Francês, “Still life” no Inglês...
É conveniente acentuar uma característica que acompanha desde o berço este conceito artístico: o de um naturalismo extremo na representação dos produtos naturais que o constituem, a ponto de enganar o observador. Esse naturalismo enganador deu origem à noção de “trompe l’oeil” (literalmente, “engana o olho”), o mesmo que ilusão de óptica.
Um excelente exemplo, é o do pintor grego Zeuxis que, segundo o naturalista romano Plínio o Velho, teria pintado um quadro com uvas, de tal modo perfeito na ilusão, que pássaros o teriam debicado gulosamente. Não tendo chegado até nós qualquer pintura grega para além de pinturas em vasos e do “Rapto de Proserpina”, já pertencente à cultura helenística, resta-nos este testemunho de Plínio.
No entanto, são os próprios romanos, com os famosos frescos encontrados nas cidades destruídas pelo Vesúvio e noutras no Império Romano, que revelam a sua mestria no naturalismo genial com que criaram nas paredes das suas domus e villae, paisagens ilusionísticas representando jardins, vistas de cidades e bucólicas paisagens rurais, com um tal grau de sofisticação que revelam uma inesperada aproximação às regras da perspectiva que só viriam a ser desenvolvidas no Renascimento.
Do mesmo modo, quer em pintura, quer em mosaico, os romanos deixaram-nos ainda deliciosos apontamento de naturezas mortas tal como as classificávamos já na época barroca ou seja, reproduções de conjuntos de seres inanimados como frutos, flores, utensílios domésticos, em que a cerâmica e o vidro (fig.1) são magnífica e ilusionisticamente representados, alimentos ricamente confeccionados e apresentados, mas também animadas pela ocasional presença de animais vivos, muitas vezes verdadeiras obras-primas do naturalismo.

Fig. 1 - Fresco de Pompeia
Condenada pelos teólogos católicos durante a Idade-Média, a Natureza Morta vem a ressurgir no pré-renascimento associada a cenas generalistas, como acessório ou ornamento, só vindo a autonomizar-se no Maneirismo e no Barroco, com as primeiras naturezas mortas holandesas e italianas, nomeadamente a “Cesta de Fruta” de Caravaggio pintada c. 1596 (fig.2), revelando já propósitos não apenas naturalísticos, mas a introdução da ideia de transitoriedade da vida, evidente nas marcas de podridão reveladas em alguns frutos, o que convergia com um especíalíssimo tema, o da “vanitas”, também já documentado desde a Antiguidade em representações em que se associam objectos relacionados com a efemeridade da vida e, portanto, a “inutilidade” de quanto foi feito de notável por um ser efémero como o é o ser humano. Também se caracteriza pela presença de caveiras ou esqueletos humanos. A este conceito voltarei, em próximo texto.

Fig. 2 - Caravaggio, "Cesta com Fruta"

Caso também especialíssimo de “natureza morta” é boa parte da obra do pintor maneirista Arcimboldo, com os seus retratos e alegorias preenchidas com elementos heteróclitos, desde animais e vegetais, a livros e outros objectos culturais (fig.3), prenunciando o que viria a ser o Surrealismo do século XX.
Fig. 3 - Arcimboldo, "Água"
Entre tantos outros exemplos, é caso que especialmente nos interessa, o das naturezas mortas de Josefa de Óbidos, representando flores e os doces e outras iguarias preparadas nos conventos, hoje famosas especialidades regionais (fig.4), a par de cenas hagiográficas e de representações do “Agnus Dei”, ele próprio uma natureza morta. 




Fig. 4 - Josefa de Óbidos


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