DO CARPE DIEM À
VANITAS
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 15 de Fevereiro de 2018
O estudo da imagem é fundamental na interpretação das artes plásticas, embora os mesmos temas possam ter interpretações diametralmente opostas consoante as épocas em que são produzidos e as ideologias então dominantes.Um dos casos mais interessantes pelo seu contraste, é o das representações de caveiras ou, mesmo, esqueletos, que são conhecidas desde a Antiguidade como avisos para as consequências das formas de comportamento humanas. Um mosaico de Antioquia com c. 2400 anos mostra um esqueleto reclinado legendado, tal como numa banda desenhada moderna, pela frase em Grego, “sê feliz, aproveita a vida”. Também na Antiga Roma, a representação de grupos de esqueletos a dançar, ou caveiras acompanhadas de objectos que simbolizam a efemeridade da vida, são convites ao “carpe diem”, isto é, ao gozo dos prazeres dos sentidos, isto é, da vida, antes que a morte tudo venha destruir. Há aqui um convite ao prazer, de forma alguma considerado pecaminoso na cultura romana pagã. Assim, o mais célebre dos vestígios dessa ideologia da sensualidade, claramente epicurista, está representada numa luxuosa taça de prata esculpida com um friso de esqueletos dançantes, destinada ao vinho (fig.1) e encontrada nas ruínas da villa romana de Boscoreale, próximo de Pompeia que, tal como a cidade do Vesúvio, foi destruída durante a erupção do ano 79 d.C.
Com o triunfo do Cristianismo e sua recusa sectária do prazer, a arte medieval passa a englobar mensagens cuja forma, sendo semelhante à da Antiguidade – de novo esqueletos dançantes ou caveiras, associadas a velas apagadas, relógios, livros, instrumentos musicais, objectos científicos e de luxo – remete para a recusa pura e simples do prazer, única forma considerada segura de evitar a danação eterna, o Inferno. Agora esta figuração macabra aponta para as coisas vãs da vida – a “vãdade”, ou seja, a vaidade a que chamam Vanitas – e tem o seu triunfo a partir 1347, quando a Peste Negra começa a assolar a Europa.As cenas que antes convidavam ao prazer, são agora denominadas “danças macabras”, arrastando num turbilhão infernal humildes e poderosos, reis e papas, guerreiros e monges, e todas as classes sociais e sexos (fig. 2).
Essa associação entre a Morte e o Poder não poderia ser mais transparente do que no quadro de Holbein, “Os Embaixadores” (fig.3) que ostenta, em primeiro plano, uma anamorfose – imagem disfarçada e deformada – da Vanitas, uma caveira que só pode ser evidenciada mediante o uso de um cilindro óptico funcionando como lente. Em segundo plano, os símbolos do Poder, da Ciência e das Artes – e os próprios embaixadores – como se vê, armadilhas para perder as pobres almas dos pecadores, sejam eles poderosos senhores, estudiosos, teólogos, frades... sendo a Ciência, tal como a Beleza, uma das portas do Inferno.
Outros exemplos se poderão apontar, uns mais macabros que outros, mas nos séculos XVI e XVII, ensanguentados por contínuas guerras religiosas, é especialmente arrepiante “O Triunfo da Morte” de Bruegel o Velho. O quadro de Pieter Claesz, “Vanitas” (fig. 4), tema recorrente da contraditória condição humana, é um bom representante dessa tendência, que apresenta inúmeras variantes, que também podem ser integrados na classificação de “naturezas mortas”.
As
“capelas de ossos”, totalmente revestidas de ossos, de que há vários excelentes
exemplos em Portugal, são matéria abundante da condenação da Vanitas, embora
especialmente votadas aos espaços religiosos monacais onde constituiam matéria
de reflexão para a aspiração ascética a uma “boa morte”. Aliás, a presença de uma caveira, também
símbolo da penitência, é atributo de diversos santos, como S. Jerónimo, S.
Francisco de Assis, S. Francisco Xavier, Santa Maria Madalena, S. Bruno, e
tantos outros.
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