sexta-feira, 23 de março de 2018



OS “PAÇOS DO INFANTE” E O 

ESPAÇO CONVENTUAL

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 22 de Março de 2018

                    "Continua-se hoje a publicação de excertos do meu trabalho “Urbanismo e Arquitectura Civil de Tomar na Época da Expansão”

               Muitos dos edifícios que hoje podemos admirar no Centro Histórico de Tomar, apesar de numerosas “reabilitações” os terem desfigurado, mantêm ainda grande número de elementos que sobrevivem desde os séculos XV e XVI: janelas, portas, elementos decorativos… Destaca-se especialmente a moradia nobre, o palácio, por muito relativa que essa designação possa ser , especialmente numa vila de média dimensão como é o caso de Tomar. No entanto, muitos dos palácios aqui existentes foram de tal forma adulterados que pouco conservam da traça original, tendo alguns desaparecido de todo, hoje substituídos por edifícios com diferentes funções mas, sobretudo, muito mais pobres do ponto de vista estético.
               Até à nomeação do Infante D. Henrique, em 1420, como governador e administrador apostólico da Ordem de Cristo, toda a vida social de Tomar se concentra em torno e, principalmente, dentro das muralhas do Castelo Templário que, até 1499, continuam a dar abrigo a moradores laicos. Com a administração do Infante assistimos a uma gradual deslocação do centro social da Vila para a margem do Nabão, enquanto se acentua a separação física entre os dois núcleos: o Convento e a Vila de baixo, cindidos mas interdependentes.


               A construção dos “paços velhos”, primeira fase construtiva do chamados Paços do Infante, tem lugar entre 1425 e 1435, na sequência da edificação dos  claustros góticos do  Cemitério e da Lavagem, como eles riscados por Fernão Gonçalves. Esta obra destinava-se a acomodar D. Henrique num espaço digno da sua elevada posição e da imagem que pretendia preservar, o Castelo. A sua contiguidade com a parede do Claustro da Lavagem parece dar continuidade, no espaço e no tempo, a uma expansão na direcção da Alcáçova medieval, ou seja, de poente para nascente. A construção do “Paço da Rainha” ou “paços novos” manuelinos, obra confiada a João de Castilho cerca de 1515, deu-lhes um novo impulso nessa direcção, que viria a ser atingida, já sob formas renascentistas, durante a regência de D. Catarina, entre 1557 e 1562.
               O conhecimento destes paços chega-nos, pela via documental, através do inventário do desembargador Pedro Álvares Sêco que, entre outras valiosas informações, refere grandes modificações estruturais, espaciais e, decerto, funcionais, a que foram sujeitas estas edificações.
               A fachada, hoje muito modificada quanto às aberturas, pode ser admirada na iluminura da portada do Livro IV da Estremadura, da Leitura Nova de D. Manuel I, de 1509. Nela se pode ver a “Porta dos Arcos”, na base da escadaria manuelina e as janelas dispostas aos pares, talvez geminadas, com uma sequência rítmica e uniforme entre as do Claustro da Lavagem e as dos paços. As amplas e sóbrias janelas que hoje as substituem, têm interiormente adossados, pequenos bancos laterais, as chamadas “conversadeiras”
               Uma sondagem arqueológica efectuada em 1985, sob a direcção de Salete da Ponte, no espaço interior destes paços, rectangular e dividido em dois tramos de arcos quebrados, pôs a descoberto uma calçada “em espinha”, possivelmente moçárabe, anterior à construção dos “paços velhos”, bem como as fundações de um muro com meio metro de espessura e vários pavimentos sobrepostos. Um deles, em tijoleira, parece ser contemporâneo da remodelação dos mesmos paços.
               A contribuição moçárabe detectada no espaço civil do Monumento, adequa-se perfeitamente à recusa da tese do ermamento, antes identificando mais uma das sucessivas ocupações do território de Tomar, neste caso islâmica, pois só essa contribuição explica a existência de moçárabes, isto é, cristãos vivendo sob o domínio muçulmano e influenciados pela respectiva cultura.
               Essa diversidade cultural parece-me ser a chave do período áureo da tolerância religiosa em Portugal e, especialmente, nesta Cidade, que se pode honestamente considerar como “das três religiões monoteístas”. Aliás, a construção da Sinagoga, sob o governo e a égide do Infante D. Henrique, completa esse quadro excepcional de inclusão, uma palavra hoje tão corrompida pelo (mau) uso, que quase perdeu o significado.

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