quinta-feira, 15 de março de 2018



URBANISMO DE TOMAR DA ANTIGUIDADE À IDADE MÉDIA
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 15 de Março de 2018

Dou aqui início à publicação de excertos escolhidos, corrigidos e actualizados do meu trabalho apresentado em Dezembro de 1997 ao concurso para professor coordenador do Instituto Politécnico de Tomar, com o título “Urbanismo e Arquitectura Civil de Tomar na Época da Expansão”, na sequência e desenvolvimento de nove artigos denominados “Velhas Pedras de Tomar”, publicados no boletim cultural  “Tomar à Letra,”  de Setembro de 1995 a Outubro de 1997. Carlos Trincão, no seu blogue JÁTENHOUMBLOGUE.BLOGSPOT.PE, apresentou um resumo desses artigos em 3 de Fevereiro de 2018.

            É um dado universalmente reconhecido a singularidade do traçado urbano de Tomar que, desde os tempos medievais, corresponde, muito ao contrário do que era uso nessa época, a uma regularidade e harmonia que apenas encontra paralelo na malha urbana das antigas cidades provinciais fundadas pelos Romanos.
            Se é difícil encontrar  ainda plantas seguindo o modelo do "tabuleiro de xadrez", com as suas ruas principais — o cardo e decumano máximos — cruzando-se perpendicularmente no Forum, e todas as outras paralelas a estas, a verdade é que não precisamos de sair do território da Península Ibérica para encontrarmos exemplos dessa extraordinária regularidade e planeamento urbanos, tradicionalmente atribuídos a Hipódamo de Mileto, mas mais provavelmente inspirados na disciplina militar do acampamento romano. Bom exemplo é Emerita Augusta, actual cidade espanhola de Mérida, capital da Lusitânia Romana, fundada por Augusto em 25 a.C, cujo traçado viário, deduzido da sua rede de esgotos da época romana, revela a indesmentível influência de toda a teorização hipodâmica e, também, vitruviana.
            No actual território português, a cidade romana mais famosa e também a mais escavada, é Conimbriga. Nas traseiras do Forum de Augusto foram identificadas algumas casas modestas que os urbanistas romanos pouparam da demolição efectuada para a edificação do monumento. O que resta desse bairro pré-imperial permite pensar num plano regular das ruas cruzando-se quase perpendicularmente.
            Os vestígios de outras cidades romanas em território português, não permitem tirar grandes conclusões quanto ao seu tecido urbano, no entanto o urbanismo de Aquae Flaviae, actual Chaves, parece ter marcado profundamente o traçado da zona central da cidade dos nossos dias a qual, longe de exibir o anárquico urbanismo medieval comum no centro da maioria das nossas cidades antigas, faz pensar numa continuidade entre a Antiguidade e os tempos actuais.
            Esse mesmo tipo de raciocínio ocorre facilmente em relação a Tomar e à sua antecessora, Sellium. Apesar de ser ainda limitada a área escavada, a verdade é que a localização do Forum, bem como a sua relação com as "insulae" e os vestígios de cardos menores, tudo na margem esquerda do Nabão, aponta para a "orientação e projecção ortogonal da cidade".
Lamentável é que os vestígios do forum visíveis nas traseiras do edifício dos Bombeiros, escavados há cerca de trinta anos por Salete da Ponte, se encontrem num estado de abandono tal que todo o terreno escavado está totalmente coberto de vegetação e irreconhecível como vestígio arqueológico. No entanto, o trabalho arqueológico relativo à ocupação romana e medieval obteve um razoável conhecimento da malha urbana de Tomar. A hipótese da sua eventual transposição para a margem direita através da ponte romana então existente e muito próxima da chamada “Ponte Velha” ou Ponte D. Manuel, parecia igualmente de ser tomada em consideração, o que foi corroborado por Carlos Batata, em “Origens de Tomar - Carta Arqueológica do Concelho”, Tomar, 1997,  tanto no que diz respeito à ponte como ao traçado viário da referida margem direita do rio.
            Na verdade, um simples olhar sobre a planta actual de Tomar, e muito especialmente sobre a margem "medieval", logo chama a atenção pela regularidade do seu traçado, tendencialmente hipodâmico, nada “medieval”, portanto.   A tradição de ser o planeamento urbanístico obra do Infante D. Henrique, Governador e Administrador da Ordem de Cristo desde 1420, por muito sedutora que pareça, é hoje totalmente indefensável . No entanto, não repugnaria enquadrar esse hipotético ordenamento numa realidade local dominada pelo poder político e económico de uma alta personagem como é o caso do Infante, já que se verifica uma atitude mecenática da sua parte em relação à organização da Vila medieval. Chamar-lhe plano renascentista é que não convence, já que a introdução de uma estética classicista em Portugal apenas se inicia, timidamente, no reinado de D. Manuel I, encontrando o seu pleno apenas com D. João III.  A haver "plano quatrocentista", deve ter-se adaptado às vias preexistentes, romanas evidentemente, como provavelmente aconteceu em Chaves e noutros locais.
            Se Sellium era, como se depreende da ausência de vestígios de muralhas, uma cidade aberta, segura pela Pax Romana, nada obsta a que o seu traçado se alargasse, naturalmente, à outra margem do rio. A insegurança dos últimos tempos do Império, marcados pelo temor colectivo e invasões várias, teria assim conduzido ao relativo despovoamento do primeiro núcleo urbano, demasiado exposto militarmente — embora em zona mais salubre — e à preferência pela proximidade do monte, decerto fortificado.
            Terá havido, assim, uma continuidade entre o povoamento romano e o medieval. O recurso à etnografia local permite também tirar algumas conclusões interessantes: o crescimento e irradiação do culto de Santa Iria contradiz as teses do “ermamento”, tão em voga desde Alexandre Herculano, segundo a qual desde o domínio muçulmano no século VIII, à fundação do castelo templário, em 1160, a região de Tomar se teria tornado um autêntico deserto, assombrado apenas pelas ruínas dos velhos edifícios. As recentes declarações de Cláudio Torres, na sua entrevista à revista “Sábado”, acerca da ocupação árabe de parte do território peninsular, obrigam a uma grande cautela em relação às ideias tradicionais sobre o assunto.
            De facto, como explicar a continuidade verificada na agricultura local, especialmente ao nível de sistemas hidráulicos de regadio, muito provavelmente introduzidos pelos Árabes? Como explicar as muitas lápides pré-românicas  e tantos topónimos de origem árabe, o desenvolvimento de culturas mediterrânicas ou as novas árvores de fruto introduzidas?
            Considero muito provável uma ocupação contínua desta região desde o período romano aos nossos dias, certamente com períodos de decréscimo demográfico, mas com um certo número de edifícios e instituições, principalmente religiosas, a manter acesa a chama cultural, reavivada após a Reconquista cristã e a reactivação da Vila. O historiador José Mattoso acentua precisamente o papel dos moçárabes na manutenção do culto de diversos santos nacionais, levantando a hipótese de terem sido os mesmos moçárabes agentes do crescimento de outros cultos nacionais, como o de Santa Iria. De que outros moçárabes se trataria, neste caso, senão dos cristãos nabantinos sob o domínio árabe?
            Mas a Reconquista e o repovoamento consequente vão possibilitar um aumento da população e fundação, em 1160, do Castelo Templário, guarda avançada dos Cristãos próximo da linha do Tejo.
            Na verdade não vejo outra forma de explicar a notável regularidade e a excepcional ortogonalidade viária da margem “medieval” do Nabão, o “paradoxo” de Tomar.


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