quinta-feira, 18 de outubro de 2018


E AGORA, ALGO COMPLETAMENTE DIFERENTE…
(AINDA A "DEMOCRACIA ORGÂNICA" DE SALAZAR)

Carlos Rodarte Veloso 

“O Templário”, 18 de Outubro de 2018

Qualquer resposta a um artigo de opinião deve corresponder minimamente à essência do discurso a que responde. Por só muito pontualmente corresponder a uma verdadeira resposta, e evitando a armadilha do combate de ideias em torno de “informações semi-confidenciais e muito pessoais em que o Dr. Sérgio Martins (doravante, SM) é fértil e que eu não poderei contestar pelos motivos óbvios, não vou responder à avalancha de “informações” nascidas do seu contacto pessoal com as mais diversas individualidades de antes e depois do 25 de Abril. Não por as negar – seria chamar mentiroso a SM! – mas pelo relativismo que implicam e a discutível interpretação que ele lhes empresta. 
Apenas num caso as contesto, e é em relação ao papel que atribui a Cavaco Silva entre os grupos que fundaram a tendência social-democrata dentro da SEDES, de que ele próprio, SM – não o porei em dúvida! – foi parte, e cito: “social-democratas (Sá Carneiro, Pinto Balsemão, João Salgueiro, outros, eu próprio, e, se não erro, no final juntou-se Cavaco e Silva”. Isto é, ou não é, uma interessante interpolação, sem quaisquer provas, bastante útil ao “zero à esquerda” – literalmente – que foi, e é Cavaco Silva?
Tenho também o direito de pôr em dúvida diversas declarações ou améns às próprias opiniões, como as relata SM no artigo de 11 de Outubro a propósito do relatório que lhe teria sido encomendado pelo PM António Costa, a propósito dos incêndios de Outubro de 2017. Não acredito que António Costa ou sequer Marcelo Rebelo de Sousa tenham aceitado a ideia “de que ainda vivemos em “’democracia’ orgânica do salazarismo”! SM faz a festa e deita os foguetes, reiteradamente…




No entanto, não deixa de arremessar mais uma seta envenenada ao actual regime, “dito democrático” no seu dizer! E aí surge a minha principal discordância em relação ao seu arrazoado: a tal “democracia orgânica” que atribui ao actual regime e a pobreza que lhe inculca, pelo menos igual à do passado!!!
Também não sou analfabeto em relação aos acontecimentos anteriores à Revolução de 1974, e a verdade é que conheci-os in loco, não por interpostas “personalidades”, mas directamente, no fogo de um movimento que cresceu à margem de negociatas de bastidores, e de opiniões puramente teóricas e benevolentes para com um regime corrupto a um ponto abissalmente maior que o actual. Eu vivi pessoalmente essa época, perigosa para quem se movia fora do círculo do poder, conheci muitos dos intervenientes na revolta e arrisquei a liberdade e a vida em diversas situações, tanto no Movimento Estudantil como no Serviço Militar. Poderá dizer o mesmo, Dr. SM?
Também conheci in loco a miséria da população e para isso tive que sair da redoma em que a minha média situação social me confinava. Não foi em gabinetes insonorizados com vista para o Tejo – ou para outra qualquer paisagem inspiradora – à volta de compridas mesas polidas, acompanhado de circunspectas personagens engravatadas, alinhadas como os pinos de bólingue, tão iguais como gotas de água…
Pondo o pontos nos ii, a minha crítica ao artigo de 27 de Setembro radica em dois pontos essenciais, de que não me desviarei: a interpolação da figura de Cavaco nos antecedentes do Partido Social Democrata – a faço aqui o favor de não lhe chamar o seu nome original e bem mais verdadeiro, Partido Popular Democrático – e as completas enormidades que representam a denominação de “democracia orgânica” ao nosso actual sistema e a declaração surrealista de hoje se manter a miséria do “antigamente”. 
No artigo de 4 de Outubro, indiquei as diferenças entre o regime salazarista, de essência claramente fascista, e o democrático representativo, nascido do 25 de Abril, sem esquecer as vantagens sociais nascidas da igualdade de direitos, da liberdade de expressão, do acesso aos vários graus de ensino independentemente das possibilidades económicas, da alfabetização, do acesso à saúde, etc. direitos obtidos na luta contra as forças que sobraram do salazarismo e marcelismo e que continuam bem vivas.
Não endeuso a situação actual, e sabemos bem as deficiências que foram ultrapassadas e as que se mantêm, a todos os níveis. E sabemos bem que pesadas ameaças incidem sobre o nosso país e sobre o próprio planeta, tanto política como ecologicamente. Mas não irei por aí, que de chorar estamos todos fartos.
Lembro apenas que há ainda muita gente que recorda saudosamente, os “bons velhos tempos” do chamado “Estado Novo”, tempo mítico em que “tudo corria bem”, em que os políticos eram “honestos e devotados servidores da Nação”, em que “a criminalidade passava despercebida”, os preços estáveis, e a própria guerra provocava “menos baixas que os acidentes de viação”, enquanto o País era governado pela mão firme e paternal do inefável Professor Salazar e, depois, pelas simpáticas “conversas em família” de Marcelo Caetano. Era o tempo de “a minha política é o trabalho”, dos “três F’s” de Fátima, Fado e Futebol (esta trilogia ainda não foi ultrapassada…), do “tudo pela Nação, nada contra a Nação”… E, no entanto, esse tempo idílico foi sempre uma farsa, encenada perante uma Nação “informada” por uma imprensa amordaçada e/ou conivente. Diversos autores têm desmitificado, uma a uma, as “maravilhas” desse regime em que a corrupção foi bem mais longe do que os casos hoje tão badalados… Em que a origem de muito do ouro armazenado era mais vil ainda do que o dito metal mereceria… Em que a criminalidade era estatal e isso prova-o a então popular oração “Meu Deus, livra-nos da polícia, que dos malfeitores nos livramos nós”… Em que os “inexistentes” bairros de lata eram vedados à fotografia dos turistas em busca de “cor local”… Em que os milhares de mortos em África morriam, quase todos, em “acidentes de viação“… Em que… Enfim!…
Embora seja vasta a bibliografia sobre o assunto, convidaria, quem tiver dúvidas, a ler o magnífico trabalho de Fernando Dacosta, “As Máscaras de Salazar”, em que é traçado o retrato, apesar de tudo piedoso, de um homem em tudo pequenino, que quis moldar um país antes grandioso à sua imagem e semelhança.
Mas adiante: a verdade é como o azeite e seria curioso avivar a memória dos indefectíveis do “antigamente” numa comparação, ponto por ponto, entre o ante e o após 25 de Abril, mesmo com todos os seus erros e contradições. Mas mais do que tudo, é bom recordar que a grande fraqueza da democracia é, simultaneamente, a sua maior grandeza: a generosidade que lhe permite conviver com todos aqueles que a todo o momento a refutam, atraiçoam e difamam… Esses mesmos que, no Poder, nunca permitiriam qualquer oposição…
Pede-se, exige-se aos políticos, honestidade, transparência, competência. Pede-se, exige-se aos partidos políticos, que representem os interesses e propostas dos cidadãos que representam, mas que defendam sobretudo os interesses mais gerais da população. Mas não tenhamos ilusões: O preço da democracia passa pelo envolvimento pessoal de cada um e de todos na vida política e, assim, por algum incómodo e possíveis desilusões. Será que não vale a pena?
Não tenho a pretensão de ter convencido o Dr. Sérgio Martins de coisa alguma. Mas aqui fica a opinião de alguém que viveu na pele momentos únicos da história do seu país e se orgulha de ter sido e continuar a ser coerente com os seus ideais.

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