MAR E MARINHEIROS.
O LADO AMARGO DAS DESCOBERTAS
Carlos Rodarte Veloso
"Correio Transmontano", 24 de Outubro de 2018
A extraordinária familiaridade entre Portugal e o mar parece explicar a precocidade da aventura portuguesa nos mares de todo o mundo, a bordo de frágeis embarcações, assim abrindo a uma Europa ainda estremunhada, horizontes bem mais vastos do que as lendas e fábulas medievais deixavam adivinhar.
Nau de Vasco da Gama na 1ª viagem à Índia |
O prestígio que se encontra associado a esta aventura intercontinental não impediu que o seu principal agente, o Marinheiro, perdesse rapidamente, nos textos literários nacionais, a imagem francamente positiva dos primeiros escritos, nomeadamente d’Os Lusíadas. Passa então a assumir aspectos francamente negativos, em que se associam a brutalidade com a ignorância, a impiedade e a agressividade mais básicas. Essa imagem veio a ser radicalmente alterada com o advento dos nacionalismos dos séculos XIX e primeiro terço do XX, em total consonância com as ideologias romântica e nacionalista então em voga.
Porto de Lisboa em gravura de Theodore de Bry |
A verdade é que, em plena época da Expansão, a “Carreira da Índia”, organização de poderosas esquadras destinadas a transportar as riquezas asiáticas para Lisboa e a Europa, corresponde a um surto crescente de naufrágios, em que tem um importante papel o factor humano: a negligência ou, até, a incompetência de muitos pilotos e outros responsáveis pela tripulação, o envelhecimento dos navios e seus equipamentos somadas à ganância de quase todos, tripulantes, militares e passageiros, prejudicam a estabilidade e a segurança indispensáveis a viagens de longa duração, em mares ora tempestuosos, ora com longas e mortíferas calmarias em climas insalubres. Aos erros humanos soma-se a violência organizada da pirataria e do corso, e o criminoso negócio da escravatura, fenómenos generalizados a nível planetário e a que nenhum povo marítimo escapou.
As más condições de navegação dos navios portugueses são comentadas com uma curiosa mistura de indignação e admiração pelos corsários holandeses que se apoderaram do galeão Santiago, em 16 de Março de 1602, na Ilha de Santa Helena, depois de um combate de três dias:
“[…] que nação haverá no mundo tão bárbara e cobiçosa que cometa passar o cabo da Boa Esperança na forma que todos passais, metidos no profundo do mar com carga, pondo as vidas a tão provável risco de as perder, só por cobiça; e por isso não é maravilha que percais tantas naus e tantas vidas […].”
Dessa realidade multifacetada e contraditória, tanto no que se refere às causas de naufrágio, quanto à imagem do marinheiro português da Expansão, nos dão conta os diários de bordo, a literatura de viagens e de divulgação de naufrágios e curiosidades náuticas, a literatura popular ¬¬(mais conhecido como “literatura de cordel”) a própria religiosidade popular nas suas atitudes de devoção, e ainda a hagiografia associada às viagens e à protecção divina dos viajantes.
Mas tudo isso seria revisto no século XIX, quando ressurge a ideia da vocação marítima do povo português e das suas virtudes náuticas, com o seu auge no XX, com o ultra-nacionalismo de Salazar, que transformou a gente do mar em heróis e em santos, em figuras hieráticas, estátuas apenas…
Hoje começa-se a desmitificar as coisas. Nem santos, nem demónios… ou, melhor, anjos e demónios, ao mesmo tempo. Ou, simplesmente, seres humanos. Com os seus vícios e virtudes, culpados de naufrágios trágicos, culpados do encontro, tantas vezes trágico, de civilizações, culpados de ganância, crentes que ousam afrontar o desconhecido. Os marinheiros portugueses desvendaram o mundo, por isso não será herético falar em Descobertas. De parte a parte. Mais do que qualquer outro povo, eles abriram uma nova era, a da globalização. Para o melhor e para o pior.
NOTA FINAL: Este texto é a adaptação e resumo de diversos textos que publiquei entre 2004 e 2005, em comunicações a seminários e congressos, nomeadamente a conferência “Causes de naufrage dans les routes maritimes portugaises de l'ancien regime - de l'erreur humaine à la violence organisée” apresentada ao 4th International Congress of Maritime History, que decorreu em Corfu, Grécia, entre 22 e 27 de Junho de 2004.
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