TRADIÇÃO E PROGRESSO,
AS DUAS FACES DA HUMANIDADE
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário", 29 de Novembro de 2018
Janus o deus romano das entradas e saídas,
do Passado e do Futuro, busto do
Museu Hermitage, S. Petersburgo, Séc. XVIII
.
O Património Cultural tem merecido vários tipos de abordagem ao longo dos últimos séculos, abordagem essa que varia quase diametralmente consoante as posições sociais e políticas dos seus autores, que ora defendem a quase “santidade” de tudo quanto seja tradicional, no sentido das origens remotas de hábitos e costumes, práticas religiosas e profanas, ora exigem um “aggiornamento” dessas práticas, quando não a sua supressão pura e simples.
Tais posições não derivam de capricho ou má vontade em relação a esses vestígios do passado, mas à compreensão do quanto eles se encontram imbuídos de um espírito ofensivo aos avanços da Civilização.
Para os defensores a todo o transe da Tradição, é altamente reprovável e mesmo escandaloso que se procure abolir os seus aspectos mais desumanos. Para eles, defender o património é o mesmo que incensar os valores do imobilismo e do Passado, sendo motivo de quase excomunhão qualquer crítica, mesmo moderada… É como se quisessem retroceder a esses tempos míticos, essa pretensa Idade do Ouro, e aí viver para sempre, rodeados pelos frutos de uma prosperidade de que se julgam os únicos merecedores…
É evidente que caracterizei, no primeiro caso, os Tradicionalistas, incapazes de abandonar os trilhos que conduzem à aceitação beata de todos os excessos devidamente “autorizados” pela tradição. No segundo, os Progressistas, aqueles que exigem às sociedades em que vivem o abandono de comportamentos cruéis ou, no mínimo, injustos, totalmente desajustados da nossa época,
Quando pretendemos preservar um determinado costume popular, um traje, uma dança, uma receita culinária, uma técnica de fabrico artesanal, é sempre a tradição que está em causa. Mas será desejável preservar TODA a tradição? Ou melhor: corresponderão todas as tradições às reais necessidades humanas, aos anseios e expectativas do povo seu depositário?
“Vox populi, vox Dei” ou seja, “Voz do povo, voz de Deus”, diz um adágio popular cuja justeza é mais que discutível e que alguns dos nossos grandes escritores como Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e muitos outros desmontaram em muitos dos seus romances, que revelam a violência, a crueldade, a ganância revelada nas tão “puras” aldeias do nosso país por gente inculta que, no entanto, através desses e doutros adágios, revelam aspectos altamente chocantes, não compagináveis com o espírito do nosso tempo.
É evidente que também as cidades enfermam de comportamentos muito censuráveis dos seus habitantes, não poucas vezes associados ao “senso comum” do mundo campestre, que desde sempre procurou encontrar as “explicações” para o Mundo e os defeitos e qualidades humanas, que a Ciência, à medida que se diversificava e progredia, ia desmentindo.
Bem ilustrativo de tais contradições, é o acervo infindável dos já referidos provérbios populares, a parte mais considerável da chamada “sabedoria popular”. Esses ditos, geralmente, curtos, condensam séculos de acumulação de experiências, de saberes, mas também, frequentemente, de não-saberes.
“Tal pai, tal filho”, adágio popular bem conhecido, é a conclusão ditada por inúmeras observações, colhidas de geração em geração. É um conhecimento empírico, pré-científico, portanto, mas a humildade das suas origens em nada invalida a sua justeza dado que era garantido pela observação empírica. O que Mendel fez foi procurar-lhe as causas e, assim, os mecanismos da hereditariedade. Ao formular as suas teses, fez irromper uma nova ciência, a genética.
Voltando aos provérbios com objectivos ideológicos, estes tendem a perpetuar um estatuto – por exemplo da pretensa “inferioridade feminina” – que interessava ao sector dominante da sociedade, obviamente masculino, incluindo comunidades letradas, como os membros do Clero e, até profissionais liberais, académicos, políticos...
No primeiro dicionário da língua portuguesa, o Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau, publicado em 1712, podemos apreciar 77 adágios dedicados à mulher, todos eles extremamente depreciativos e grosseiros: “A molher & a gallinha, com Sol recolhida”, “Dia de S. André, quem não tem porco, mata a molher”!… É claro que “pérolas” deste calibre, as encontramos também na literatura popular e, até, na erudita… mas aqui sob formas mais “polidas… É também claro que o progresso da condição feminina no nosso século as está a converter, espero que definitivamente, em peças de museu, apesar da violentíssima reacção dos homens, sentindo-se apoucados no seu poder e ainda hoje revelando a sua recusa e carácter através da violência doméstica, uma das pragas do nosso tempo…
A própria Cidade era um ninho de contradições, analisadas há mais de um século pelo incomparável Eça de Queiroz, homem sem dúvida progressista, quando se interrogava sobre as terríveis consequências do progresso, se entendido apenas como “progresso técnico”:
“(…) a ideia de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, duma enorme Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e de mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fábricas fumegando com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos ónibus, tramas, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar (…) na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo – o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver!” (“A Cidade as Serras”, Lello & Irmão, Porto, s/d, pág. 15).
Ao definir algumas das contradições entre o campo e a cidade, Eça coloca o dedo na ferida aberta desta civilização de abundância que tanta miséria produziu: entre tantos direitos, onde o direito à felicidade? Progresso, sim, mas QUE progresso?
Mas a cultura tem que ser vivida para se identificar com a comunidade que a criou. As sociedades desenvolvem-se e há valores que acabam por deixar de corresponder às suas necessidades. Mais: há valores tradicionais que passam a contrariar vivamente o progresso dessas sociedades.
É esse o seu lugar, ao lado da Inquisição, da escravatura, das touradas, da pena de morte e de tantas outras coisas… sem esquecermos que povos há que ainda hoje as sofrem no seu dia-a-dia! Bom seria juntar-lhes os muitos outros horrores que continuam a tirar o sono à humanidade…
Há então uma “tradição boa” e uma “tradição má”, como há um “progresso bom” e um “progresso mau”? E, no fundo, tradição e progresso serão atitudes perfeitamente antagónicas?
Parece-me que, como em tudo afinal, é na harmonia das coisas, na justa medida, que reside a solução dos problemas humanos. Progresso, sim, mas com qualidade e gerador da felicidade humana. Tradição também, mas afastada das formas anacrónicas e desumanas que a transformam num travão para o Mundo novo que almejamos, agora cada vez mais problemático, dado o regresso dos fantasmas que incendiaram o século XX...
Aliás, não tenhamos ilusões, é a própria sobrevivência da Humanidade que está em jogo! Então, Progresso e Tradição entrarão em colapso, no colapso final… e não se fala mais nisso!