quinta-feira, 29 de novembro de 2018



TRADIÇÃO E PROGRESSO, 
AS DUAS FACES DA HUMANIDADE
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário", 29 de Novembro de 2018

Janus o deus romano das entradas e saídas,
 do Passado e do Futuro, busto do 
Museu Hermitage, S. Petersburgo, Séc. XVIII
.
O Património Cultural tem merecido vários tipos de abordagem ao longo dos últimos séculos, abordagem essa que varia quase diametralmente consoante as posições sociais e políticas dos seus autores, que ora defendem a quase “santidade” de tudo quanto seja tradicional, no sentido das origens remotas de hábitos e costumes, práticas religiosas e profanas, ora exigem um “aggiornamento” dessas práticas, quando não a sua supressão pura e simples.

Tais posições não derivam de capricho ou má vontade em relação a esses vestígios do passado, mas à compreensão do quanto eles se encontram imbuídos de um espírito ofensivo aos avanços da Civilização. 
Para os defensores a todo o transe da Tradição, é altamente reprovável e mesmo escandaloso que se procure abolir os seus aspectos mais desumanos. Para eles, defender o património é o mesmo que incensar os valores do imobilismo e do Passado, sendo motivo de quase excomunhão qualquer crítica, mesmo moderada… É como se quisessem retroceder a esses tempos míticos, essa pretensa Idade do Ouro, e aí viver para sempre, rodeados pelos frutos de uma prosperidade de que se julgam os únicos merecedores…
É evidente que caracterizei, no primeiro caso, os Tradicionalistas, incapazes de abandonar os trilhos que conduzem à aceitação beata de todos os excessos devidamente “autorizados” pela tradição. No segundo, os Progressistas, aqueles que exigem às sociedades em que vivem o abandono de comportamentos cruéis ou, no mínimo, injustos, totalmente desajustados da nossa época, 
Quando pretendemos preservar um determinado costume popular, um traje, uma dança, uma receita culinária, uma técnica de fabrico artesanal, é sempre a tradição que está em causa. Mas será desejável preservar TODA a tradição? Ou melhor: corresponderão todas as tradições às reais necessidades humanas, aos anseios e expectativas do povo seu depositário?
“Vox populi, vox Dei” ou seja, “Voz do povo, voz de Deus”, diz um adágio popular cuja justeza é mais que discutível e que alguns dos nossos grandes escritores como Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e muitos outros desmontaram em muitos dos seus romances, que revelam a violência, a crueldade, a ganância revelada nas tão “puras” aldeias do nosso país por gente inculta que, no entanto, através desses e doutros adágios, revelam aspectos altamente chocantes, não compagináveis com o espírito do nosso tempo.
É evidente que também as cidades enfermam de comportamentos muito censuráveis dos seus habitantes, não poucas vezes associados ao “senso comum” do mundo campestre, que desde sempre procurou encontrar as “explicações” para o Mundo e os defeitos e qualidades humanas, que a Ciência, à medida que se diversificava e progredia, ia desmentindo.
Bem ilustrativo de tais contradições, é o acervo infindável dos já referidos provérbios populares, a parte mais considerável da chamada “sabedoria popular”. Esses ditos, geralmente, curtos, condensam séculos de acumulação de experiências, de saberes, mas também, frequentemente, de não-saberes.
“Tal pai, tal filho”, adágio popular bem conhecido, é a conclusão ditada por inúmeras observações, colhidas de geração em geração. É um conhecimento empírico, pré-científico, portanto, mas a humildade das suas origens em nada invalida a sua justeza dado que era garantido pela observação empírica. O que Mendel fez foi procurar-lhe as causas e, assim, os mecanismos da hereditariedade. Ao formular as suas teses, fez irromper uma nova ciência, a genética.
Voltando aos provérbios com objectivos ideológicos, estes tendem a perpetuar um estatuto – por exemplo da pretensa “inferioridade feminina” – que interessava ao sector dominante da sociedade, obviamente masculino, incluindo comunidades letradas, como os membros do Clero e, até profissionais liberais, académicos, políticos...
No primeiro dicionário da língua portuguesa, o Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau, publicado em 1712, podemos apreciar 77 adágios dedicados à mulher, todos eles extremamente depreciativos e grosseiros: “A molher & a gallinha, com Sol recolhida”, “Dia de S. André, quem não tem porco, mata a molher”!… É claro que “pérolas” deste calibre, as encontramos também na literatura popular e, até, na erudita… mas aqui sob formas mais “polidas… É também claro que o progresso da condição feminina no nosso século as está a converter, espero que definitivamente, em peças de museu, apesar da violentíssima reacção dos homens, sentindo-se apoucados no seu poder e ainda hoje revelando a sua recusa e carácter através da violência doméstica, uma das pragas do nosso tempo…
A própria Cidade era um ninho de contradições, analisadas há mais de um século pelo incomparável Eça de Queiroz, homem sem dúvida progressista, quando se interrogava sobre as terríveis consequências do progresso, se entendido apenas como “progresso técnico”:

“(…) a ideia de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, duma enorme Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e de mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fábricas fumegando com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos ónibus, tramas, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar (…) na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo – o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver!” (“A Cidade as Serras”, Lello & Irmão, Porto, s/d, pág. 15).
Ao definir algumas das contradições entre o campo e a cidade, Eça coloca o dedo na ferida aberta desta civilização de abundância que tanta miséria produziu: entre tantos direitos, onde o direito à felicidade? Progresso, sim, mas QUE progresso?

Mas a cultura tem que ser vivida para se identificar com a comunidade que a criou. As sociedades desenvolvem-se e há valores que acabam por deixar de corresponder às suas necessidades. Mais: há valores tradicionais que passam a contrariar vivamente o progresso dessas sociedades.
É esse o seu lugar, ao lado da Inquisição, da escravatura, das touradas, da pena de morte e de tantas outras coisas… sem esquecermos que povos há que ainda hoje as sofrem no seu dia-a-dia! Bom seria juntar-lhes os muitos outros horrores que continuam a tirar o sono à humanidade…
Há então uma “tradição boa” e uma “tradição má”, como há um “progresso bom” e um “progresso mau”? E, no fundo, tradição e progresso serão atitudes perfeitamente antagónicas?
Parece-me que, como em tudo afinal, é na harmonia das coisas, na justa medida, que reside a solução dos problemas humanos. Progresso, sim, mas com qualidade e gerador da felicidade humana. Tradição também, mas afastada das formas anacrónicas e desumanas que a transformam num travão para o Mundo novo que almejamos, agora cada vez mais problemático, dado o regresso dos fantasmas que incendiaram o século XX...
Aliás, não tenhamos ilusões, é a própria sobrevivência da Humanidade que está em jogo! Então, Progresso e Tradição entrarão em colapso, no colapso final… e não se fala mais nisso!

sábado, 24 de novembro de 2018



O ÓDIO AOS POBRES (3)

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 22 de Novembro de 2018

(CONCLUSÃO)           

No entanto, uma mulher branca, de meia-idade e de aspecto modesto com quem falámos, ao responder a algumas perguntas que lhe fizemos, exteriorizou um azedume violentíssimo e praticamente gritou que toda a cidade era “uma merrda” (sic), as cidades vizinhas eram “uma merrda”, e Porto Alegre – a capital do Estado – era uma “merrda” e tudo era uma “merrda”, e se o Lula “viesse a ganhar”, tudo ficaria ainda pior… Um dos “ovos de serpente” que viriam a eclodir 18 anos depois?


Mas o racismo desponta um pouco em todo o lado, mas com curiosas nuances. Os taxistas que, segundo soubemos por outro taxista (!), eram racistas a mais não poder, espalhavam que as moças brancas só queriam “nêgos” e que estes as matavam “com aquela doença”. O “medo dos pretos” manifestado pelas grã-finas no Rossio e a possível apetência das “outras” brancas – possivelmente as “pobres” – pelos mesmos negros, representa uma contradição que exigiria uma melhor investigação. Mas não há tempo para isso, e vamos apanhando estes indícios pouco claros, aqui e ali, embora a fábula das “preferências” das brancas por negros não seja estranha sequer ao nosso – “ultra civilizado” – continente…


Conhecemos um negro, engraxador (“engraxate”) de profissão, com cinquenta anos já feitos, de nome Jorge de Vargas, que nos contou um fragmento da sua estória de pobreza: com apenas o terceiro ano (terceira classe) era motorista de “caminhão” noutra cidade, mas a crise fê-lo perder o emprego e rumou a Pelotas em busca de trabalho. Não o encontrou, como o não tem um sexto da população. Muitos recorrem a trabalhos improvisados: moto-táxis, aluguer de póneis e bicicletas, guia de turistas… Ele deitou a mão ao de “engraxate”, mas até para o material improvisado que usa teve que pedir fiado: a uma loja popular (do género dos nossos antigos “trezentos”), uma escova, ao dono do café onde iniciou o seu trabalho, a graxa e, com umas tábuas lá amanhou a caixa… Um homem suave, cheio de dignidade e com alguma alegria, embora nem casa tenha. Perguntou-nos se, de onde vínhamos, havia também “guris” a fazer este serviço. Dissemos-lhe que sim, um pouco contrafeitos, e ele pareceu mais tranquilo, como se isso o justificasse na ordem do mundo. Esta é uma época má para ele, porque as pessoas quase só usam sandálias, mas o Inverno (que só começa em Junho) é amigo: traz a lama e o elegante tem que recorrer a uma dúzia de pessoas como ele que percorrem o centro da cidade. Sente-se feliz, porque é sozinho:
            — Gosto de viver bem — diz ele, e essa declaração absurda caiu como uma cortina de ferro sobre o calor pesado e o azul insuportável daquela tarde.
            — Vivo só com Deus, e estou bem — diziam os seus olhos tranquilos. Quando lhe dissemos que era um filósofo, ele concordou.
            — É uma pessoa que sabe muito — e confirmou-o contando uma estória canalha em que tinha posto na ordem um “negão” que costumava humilhá-lo pelo seu trabalho.
            — Gostei de falar com os senhores — e este cumprimento trouxe àquela tarde quente, uma frescura nova.
            Afastados por muito mais do que os milhares de quilómetros que separam Pelotas de Tomar, encontrámo-nos nesse brevíssimo e caloroso momento, apagando fronteiras, pigmentos, preconceitos…


FOTOS DE C.VELOSO
Vistas do mercado municipal de Pelotas

quinta-feira, 22 de novembro de 2018


UM RESTAURO DESASTROSO
Carlos Rodarte Veloso
Enciclopédia Ilustrada
22 de Novembro de 2018
Um painel de azulejos neoclássico do Palácio de Queluz, da autoria de Francisco Jorge da Costa (1784) mostra a experiência de #Arquimedes com espelhos destinados a incendiar à distância. 
Foi este o método utilizado por #Arquimedes na defesa da cidade-estado de Siracusa, para destruir a esquadra romana durante a 1ª Guerra Púnica..
Mas no restauro do painel, na 1ª metade do século XX pela Fábrica Aleluia, o Sol que lá devia estar no canto superior ditreito, e era fundamental para a experiência, foi substituído por uma nuvem!

Bibliografia: MECO, José, O Azulejo em Portugal,,Alfa, ,1989, pág.233



domingo, 18 de novembro de 2018


O NAUFRÁGIO DO SAN PEDRO DE ALCÂNTARA EM PENICHE NO ANO DE 1786
TRAGÉDIA MARÍTIMA E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL (*)
Carlos Rodarte Veloso
“Correio Transmontano”, 18 de Novembro de 2018

Fez este ano 232 anos que ocorreu o naufrágio do célebre navio de guerra espanhol San Pedro de Alcântara, em Peniche . Este navio, com as suas sessenta peças de artilharia e 419 ocupantes entre tripulação e passageiros, carregado com os tesouros do Peru, tinha partido de Lima a 14 de Abril de 1784, com destino à cidade de Cádis. A bordo viajava, prisioneiro, com outros peruanos, o filho do último rei inca Tupac-Amaru II, Fernando Tupac-Amaru, com 11 anos de idade, o qual se salvou da morte no mar, mas não da prisão à qual o tinham destinado, em Espanha.
O naufrágio, na noite de 2 para 3 de Fevereiro de 1786, contra os recifes do grande rochedo em forma de torre, a Papôa, provocou uma sentida emoção entre a população marítima da vila que, em vez de pilhar os salvados do navio e os próprios sobreviventes, com era então prática corrente entre muitos povos vivendo junto ao mar, salvou muitos da morte, tratou dos feridos e alimentou e vestiu carinhosamente todos os sobreviventes com eles dividindo as suas casas e recursos. As operações de salvamento foram documentadas pelas pinturas de Jean Pillement (fig.1), um artista francês residente em Portugal, que de imediato se deslocou ao local. Outro artista, este espanhol, Luis Peret Y Alcázar, também deixou testemunhos gráficos da tragédia e subsequentes acções de recuperação de salvados (fig.2).



Quanto aos bens materiais, eles foram sendo recolhidos, desde o primeiro momento, primeiro por meios rudimentares e, depois da chegada de duas fragatas espanholas enviadas para o efeito, com o apoio de mergulhadores. Entre moedas de ouro e prata foram resgatadas 4 066 585 patacas (moeda de prata de 320 réis). O recurso aos mergulhadores equipados com equipamento denominado “búzios”, deveu-se à profundidade a que se encontravam as riquezas perdidas, cerca de 9 metros na maré vazante. Um texto oficial (**) documenta os elogios dos representantes diplomáticos espanhóis perante a generosidade evidenciada pelo povo da vila e a acção imediata das autoridades portuguesas e da própria rainha, D. Maria I, ao facultarem todos os meios possíveis para a salvação de corpos e almas dos náufragos.
A arqueologia confirmou a narrativa, e dois pesquisadores, Jean-Yves e Maria Luísa Blot, encontraram, no Verão de 1985 e 1986, os esqueletos dos náufragos sepultados pelos habitantes da vila, e ainda moedas e artefactos que tinham escapado às buscas efectuadas havia duzentos anos, nomeadamente grilhetas (fig.3) dos prisioneiros incas. Mais do que isso, detectaram ainda, entre os habitantes da Peniche dos nossos dias, lendas e superstições relativas ao longínquo naufrágio.


(*) Extracto da versão portuguesa da comunicação Causes de naufrage dans les routes maritimes portugaises de l’ancien régime - de l’erreur humaine à la violence organisée, apresentada ao 4th International Congress of Maritime History, em Corfu, Grécia, 23 de Junho de 2004.
(**) Relação dos Grandes Elogios Que Tem Feito os Hespanhoes À Nação Portuguesa, e ao Excelentissimo Senhor Duque de Lafoens, pela vigilancia, e cuidado com que lhe assistirão aos que se salvarão do Naufraugio da Nao de Guerra S. Pedro de Alcantara, sucedido nas costas da Peniche, com a noticia de todo o cabedal que se tem tirado; e do Naufragio proximamente sucedido no fim do mez de Abril na dita Costa, Na Officina de Filippe da Silva e Azevedo, Lisboa, 1786.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018



O ÓDIO AOS POBRES (2)
Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 15 de Novembro de 2018


(CONTINUAÇÃO) 

Há também um número razoável de africanos, decerto descendentes dos antigos escravos que por aqui trabalhavam nas charqueadas, a indústria da salga da carne. Aqui bem perto existem ainda as ruínas de um quilombo, o do Morro de Quinongongo, local de fuga e resistência dos escravos fugidos, hoje apenas do interesse de historiadores e arqueólogos. São hoje evidentemente “livres”, mas mantém-se a sua herança de pobreza, vivendo a maioria na periferia. 

Relativamente às casas de habitação mais representativas, estas raramente ultrapassam um piso de altura, com uma fachada que pouco excede a largura de uma porta e duas janelas, são invariavelmente rematadas por uma platibanda recortada e esculpida. Também as cores, geralmente vivas e contrastantes, aumentam o pitoresco das ruas de Pelotas. Um exemplo pobre desta tipologia está aí, em imagem, uma sede local do PT, o Partido do Trabalhadores, então a três anos de distância do poder, que depois, tão dramática e polemicamente perdeu.


Mas para saborear os gostos e os olhares que marcam as diferenças, nada melhor que o comércio popular, dos restaurantes às lojas de produtos religiosos afro-católicos, como a Iemanjá da figura anexa, do mercado municipal ao comércio paralelo. 


Ver a recolha do lixo é um espectáculo desportivo, os funcionários a correr, à vez, atrás do camião, a apanhar os sacos em corrida… E os subúrbios nada têm que ver com a regularidade urbana do centro de Pelotas. Ruas que são caminhos serpenteantes de terra batida, ladeados por casas pequenas de um andar, muitas delas em cimento.
Em chocante contraste, aqui e ali, prédios altos com os telhados revestidos de arame farpado e torres de vigilância, algo que recorda graves clivagens sociais, aliás ilustradas por chocantes declarações de três jovens rio-grandenses das classes médias-altas, evidentemente brancas e racistas a um ponto inacreditável, que se horrorizaram no ano seguinte, ao visitar a nossa luminosa Lisboa, por ter que atravessar, “cheias de medo” um Rossio “cheio de pretos”!
Mais do que ódio racial, aqui bem documentado, o que me pareceu muito óbvio e bastantes vezes declarado, foi a atitude de “ódio aos pobres” revelado por gente bem colocada socialmente nessas comunidades do Sul. Inacreditável, no País do multiculturalismo! Entre os jovens estudantes que contactámos, essas atitudes negativas pareciam mais diluídas, embora se não possam comparar com as relações mais abertas existentes nos Estados do Norte.
Isto não explica nada, no contexto destas tão estranhas eleições brasileiras, em que os pobres forneceram todas as armas – literalmente! – aos seus inimigos mais figadais…

quinta-feira, 8 de novembro de 2018


O ÓDIO AOS POBRES (1)
Carlos Rodarte Veloso


“O Templário”, 8 de Novembro de 2018


Visitei, no final do ano 2000, a cidade de Pelotas, no Estado mais meridional do Brasil, Rio Grande do Sul, integrado num grupo académico do Instituto Politécnico de Tomar. Comemorava-se, então, o quinto centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral a “Terras de Vera Cruz”, um dos nomes com que foi baptizada essa terra que ainda nem sonhava a extensão, nem a riqueza que o futuro lhe destinava.
Nesse ano do achamento, era ainda um país de sonho que emergia das brumas de um éden reconquistado, quem sabe se uma derradeira oportunidade de iludir o pecado original, de apaziguar o tremendo Velho dos Dias e fundar o Reino de Deus na Terra… Mas era tudo ilusão, ou melhor, era quase tudo ilusão… Passaram-se os anos e novos herdeiros desse pecado, já tão pouco original, encheram a terra e povoaram-na. Terra Prometida, como toda a América, acolheu gente de todo o mundo, em busca de fortuna, acotovelando-se e acotovelando os últimos nativos, que se foram retirando, na ponta de baionetas, para o sertão, depressa substituídos, no trabalho escravo, por milhares de africanos, os escassos sobreviventes de viagens de pesadelo no bojo das nossas naus transatlânticas.
Às cidades de raiz portuguesa foram-se juntando novas cidades, de influência italiana, alemã, espanhola, enquanto libaneses, japoneses, ingleses, descendentes dos escravos africanos e gente de mil outras desvairadas origens, juntavam as suas culturas a esse efervescente caldo cultural que, é afinal, todo o Brasil.
Pela beira da estrada sucediam-se manadas intermináveis de bovinos, enquanto junto às chácaras, improvisados postos de venda expunham cebolas e outros produtos agrícolas, enquanto espaços arborizados nos mostravam oliveiras, figueiras, pinheiros, tudo bem ao nosso jeito, sinal de que este território, embora com características subtropicais, se encontra na zona temperada do sul.
As origens portuguesas e a posterior fixação de numerosos imigrantes provenientes dos Açores e outras províncias lusas, dá-lhe um certo ar familiar, visível em muitas das suas casas
No mercado, bem parecido com as nossas feiras, em que o plástico e o “made in China” dominam cada vez mais todo o comércio popular, algumas barracas rompem com a “invasão” asiática vendendo chás, ervas diversas, cascas de árvores e raízes e, claro, o mate, erva de que se faz a famosa bebida gaúcha que constitui um hábito bem enraizado em toda a população.
A praia atlântica mais próxima da velha cidade de Rio Grande é Cassino, pequena povoação que acompanha a extensa faixa de areia, plana como uma larga estrada, que vai morrer nos molhes da barra, grandes pedras amontoadas penetrando quatro quilómetros pelo mar dentro.
A primeira coisa que vimos, à entrada da povoação, foi uma grande imagem de Iemanjá, a venerada deusa africana das Águas, a quem rezavam, ajoelhadas, duas mulheres. As semelhanças com o culto mariano não se ficam pelas aparências imediatas e exteriores. Há mesmo um paralelismo assumido, na religião afro-americana a que se chama Macumba, entre esta divindade marinha e a catolicíssima Nossa Senhora, como o há entre as outras deidades africanas, para aqui trazidas pelos escravos negros, e o próprio Cristo e muitos dos santos do calendário litúrgico, o Diabo incluído… Religião popular, religião de resistência
Marca desses cultos, que já conhecia das saborosas leituras de Jorge Amado, ramos de flores e moedas depositadas na areia, na orla das ondas, constituem respeitosa oferenda que a leve ondulação marinha vem beijar. E é agora o extenso areal que percorremos, com o chão tão plano e tão duro como uma pista de aviação, que bicicletas e carros de todos os tamanhos nele deslizam como na auto-estrada! … Até o nosso ónibus, bem pesado, nele desliza, bem rente à orla da maré baixa, até que o distante molhe se torna próximo e se vislumbram estranhas caranguejolas deslizando sobre carris, munidas de vela triangular, como se de barcos se tratasse…

Foto de C. Veloso - À vela sobre carris

É este mais um indício dos recursos inesperados a que uma população em dificuldades pode lançar mão para melhorar a vida. As vagonetes à vela (ver imagem), como que tiradas das páginas de Júlio Verne, são decerto um complemento para os magros meios de muitos, mesmo nestes bem pouco estivais meses de Verão.
Além de História e estórias, que são tantas, é nas ruas da cidade de Pelotas que encontramos aquele sabor único que só o Brasil pode proporcionar, principalmente nesse tempo quente que Dezembro oferece, tão em contraste com a quadra natalícia que se anunciava em cada “camelô” do Calçadão, com as gambiarras a acender e a apagar, presépios, estrelas e outros enfeites e uns Pais Natal (Papais Noel!) bem em carne-e-osso, suando copiosamente debaixo dos deslocados gorros e casacões vermelhos, guarnecidos de golas bem peludas!
E nesta terra gaúcha é a carne de bovino a imagem de marca em todos os restaurantes, nos grandes rodízios, em que a refeição não é barata como nos pequenos restaurantes populares, bem em conta, em que vimos uma mãe de família a negociar o preço do almoço, dela e de uma filha e em que se encontra o prato regional, carne na panela, de vaca, claro, cozinhada com feijão, e que feijão! …
Mas falta falar, mais detidamente, da gente que aqui se desloca num vaivém ininterrupto. Nestes estados do Sul predominam as etnias europeias, com predomínio dos luso-descendentes, mas também um bom número de descendentes de italianos, espanhóis, alemães, libaneses e, também, africanos e índios. Estes, que eram os senhores das terras do antigo Território das Missões, expulsos para outros lados depois das sangrentas campanhas luso-espanholas do século XVIII, estão reduzidos à miséria, e é fácil identificá-los nas bermas das estradas, em acampamentos improvisados com miseráveis tendas de lona e pedaços de plástico, a vender os seus artísticos cestos multicolores e as redes, vestígios de uma identidade que teima em sobreviver. (...)

quinta-feira, 1 de novembro de 2018



TEMPOS PARA D. QUIXOTE
Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 1 de Novembro de 2018

Há uma ideia-feita, construída ao longo de quatro séculos, de que o herói de Cervantes, D. Quixote da la Mancha, o leitor que desvairou os sentidos na leitura dos livros de Cavalaria medievais e acabou por encarnar um desses cavaleiros, era louco varrido. Na verdade, o magnífico texto dessa obra imortal parece apontar para um grave problema de percepção da personagem principal, que confunde moinhos com gigantes e vê inimigos e injustiças a todo o momento, actuando em conformidade e por isso sofrendo as consequências.

"D.Quixote e Sancho Pança, 
gravura de Lima de Freitas

Necessariamente complementar a presença a seu lado do seu fiel “escudeiro”, Sancho Pança, um burguês que o segue sem qualquer convicção, antes movido pelas promessas de feudos, dinheiro e glória, bolas de sabão que a sua ignorância não identificava como logros, embora visse claramente vistas as armadilhas da razão que assolavam o entendimento do seu amo.
Um e outro ignorantes:  D. Quixote, do “novo mundo” em que vivia, de que há muito se tinham evaporado os Lancelotes, Percivais, Rolandos e outros cavaleiros andantes das fábulas medievais, fumo dentro do fumo, criados ou recriados apenas pela imaginação de férteis aedos, que confundiram misericordiosamente a brutalidade e venalidade dos barões com as regras da Cavalaria – posteriormente inventadas… – que aliás, nunca corresponderam à verdade histórica. Do outro lado, a ignorância de Sancho Pança que, embora provido de uma dose considerável de senso comum, era completamente analfabeto culturalmente.
Esta associação aparentemente espúria de idealismo com calculismo, da ideologia cristã medieval com a ideologia capitalista moderna é uma excelente e muito expressiva construção dos vícios e virtudes de duas épocas que chocam frontalmente uma com a outra.
Será então D. Quixote apenas uma figura patética, cómica ao ponto de ridícula, como é vista – e tratada – por outras personagens que com ela contracenam, e Sancho Pança a voz da razão, a crítica interna ao “sono da razão” a que se referiu o grande Goya, anos mais tarde? O tal “sono da razão” que produziu monstros?
Mas, afinal, que monstros aparecem nesta obra literária, nascidos do desvario da razão? Os moinhos, tomados por gigantes ameaçadores, perfeitamente impávidos perante a heroicidade do cavaleiro, entes mecânicos imbuídos de maldade, uma premonição da civilização das máquinas que hoje nos invade, nos nivela como uma multidão de súbditos de novos Sanchos Pança?
Mas D. Quixote não se rebaixou ao seu poder, não se rebaixaria jamais, antes daria o peito ao golpe fatal para não ser escravo. Como dizia Dolores Ibárruri, La Passionaria uma sua compatriota do século XX, “mais vale morrer de pé, do que viver de joelhos” ou Unamuno, pouco depois, também no contexto da Guerra Civil de Espanha, assinou a sua sentença de morte ao responder a Millan Astrey, o dirigente fascista que gritara “Viva la muerte!” na Universidade de Salamanca:
“Há circunstâncias em que calar-se é mentir. Acabo de ouvir um grito mórbido e desprovido de sentido: Viva a morte! Este paradoxo bárbaro é para mim repugnante. O general Millan Astray é um doente. Isto não é falta de cortesia. Cervantes era-o também. Infelizmente, há hoje, em Espanha, demasiados doentes. Eu sofro ao pensar que o general Millan Astray possa lançar as bases de uma psicologia de massas. Um doente que não tem a grandeza espiritual de um Cervantes procura habitualmente conforto nas mutilações que produz à sua volta.” Dirigindo-se em seguida pessoalmente a Millan Astray : “Vencereis, porque possuís força bruta mais do que a suficiente. Mas não convencereis. Porque, para convencer, seria necessário que persuadísseis. Ora, para persuadir, precisaríeis de ter o que vos falta em absoluto: a Razão e o Direito na luta. Considero inútil exortar-vos a pensar na Espanha. Tenho dito.”
Para revelar coragem não é necessário ser um D. Quixote, mas ajudaria muito, mais ainda num mundo que vê ressurgir os monstros de eras julgadas passadas, definitivamente passadas… Mas os pacatos moinhos que ainda restam em La Mancha podem descansar em paz. Os monstros do nosso tempo são bem outros!
Moinhos de Consuegra, Castilla La Mancha 
(foto de C.Veloso)