quinta-feira, 1 de novembro de 2018



TEMPOS PARA D. QUIXOTE
Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 1 de Novembro de 2018

Há uma ideia-feita, construída ao longo de quatro séculos, de que o herói de Cervantes, D. Quixote da la Mancha, o leitor que desvairou os sentidos na leitura dos livros de Cavalaria medievais e acabou por encarnar um desses cavaleiros, era louco varrido. Na verdade, o magnífico texto dessa obra imortal parece apontar para um grave problema de percepção da personagem principal, que confunde moinhos com gigantes e vê inimigos e injustiças a todo o momento, actuando em conformidade e por isso sofrendo as consequências.

"D.Quixote e Sancho Pança, 
gravura de Lima de Freitas

Necessariamente complementar a presença a seu lado do seu fiel “escudeiro”, Sancho Pança, um burguês que o segue sem qualquer convicção, antes movido pelas promessas de feudos, dinheiro e glória, bolas de sabão que a sua ignorância não identificava como logros, embora visse claramente vistas as armadilhas da razão que assolavam o entendimento do seu amo.
Um e outro ignorantes:  D. Quixote, do “novo mundo” em que vivia, de que há muito se tinham evaporado os Lancelotes, Percivais, Rolandos e outros cavaleiros andantes das fábulas medievais, fumo dentro do fumo, criados ou recriados apenas pela imaginação de férteis aedos, que confundiram misericordiosamente a brutalidade e venalidade dos barões com as regras da Cavalaria – posteriormente inventadas… – que aliás, nunca corresponderam à verdade histórica. Do outro lado, a ignorância de Sancho Pança que, embora provido de uma dose considerável de senso comum, era completamente analfabeto culturalmente.
Esta associação aparentemente espúria de idealismo com calculismo, da ideologia cristã medieval com a ideologia capitalista moderna é uma excelente e muito expressiva construção dos vícios e virtudes de duas épocas que chocam frontalmente uma com a outra.
Será então D. Quixote apenas uma figura patética, cómica ao ponto de ridícula, como é vista – e tratada – por outras personagens que com ela contracenam, e Sancho Pança a voz da razão, a crítica interna ao “sono da razão” a que se referiu o grande Goya, anos mais tarde? O tal “sono da razão” que produziu monstros?
Mas, afinal, que monstros aparecem nesta obra literária, nascidos do desvario da razão? Os moinhos, tomados por gigantes ameaçadores, perfeitamente impávidos perante a heroicidade do cavaleiro, entes mecânicos imbuídos de maldade, uma premonição da civilização das máquinas que hoje nos invade, nos nivela como uma multidão de súbditos de novos Sanchos Pança?
Mas D. Quixote não se rebaixou ao seu poder, não se rebaixaria jamais, antes daria o peito ao golpe fatal para não ser escravo. Como dizia Dolores Ibárruri, La Passionaria uma sua compatriota do século XX, “mais vale morrer de pé, do que viver de joelhos” ou Unamuno, pouco depois, também no contexto da Guerra Civil de Espanha, assinou a sua sentença de morte ao responder a Millan Astrey, o dirigente fascista que gritara “Viva la muerte!” na Universidade de Salamanca:
“Há circunstâncias em que calar-se é mentir. Acabo de ouvir um grito mórbido e desprovido de sentido: Viva a morte! Este paradoxo bárbaro é para mim repugnante. O general Millan Astray é um doente. Isto não é falta de cortesia. Cervantes era-o também. Infelizmente, há hoje, em Espanha, demasiados doentes. Eu sofro ao pensar que o general Millan Astray possa lançar as bases de uma psicologia de massas. Um doente que não tem a grandeza espiritual de um Cervantes procura habitualmente conforto nas mutilações que produz à sua volta.” Dirigindo-se em seguida pessoalmente a Millan Astray : “Vencereis, porque possuís força bruta mais do que a suficiente. Mas não convencereis. Porque, para convencer, seria necessário que persuadísseis. Ora, para persuadir, precisaríeis de ter o que vos falta em absoluto: a Razão e o Direito na luta. Considero inútil exortar-vos a pensar na Espanha. Tenho dito.”
Para revelar coragem não é necessário ser um D. Quixote, mas ajudaria muito, mais ainda num mundo que vê ressurgir os monstros de eras julgadas passadas, definitivamente passadas… Mas os pacatos moinhos que ainda restam em La Mancha podem descansar em paz. Os monstros do nosso tempo são bem outros!
Moinhos de Consuegra, Castilla La Mancha 
(foto de C.Veloso)

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