sábado, 24 de novembro de 2018



O ÓDIO AOS POBRES (3)

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 22 de Novembro de 2018

(CONCLUSÃO)           

No entanto, uma mulher branca, de meia-idade e de aspecto modesto com quem falámos, ao responder a algumas perguntas que lhe fizemos, exteriorizou um azedume violentíssimo e praticamente gritou que toda a cidade era “uma merrda” (sic), as cidades vizinhas eram “uma merrda”, e Porto Alegre – a capital do Estado – era uma “merrda” e tudo era uma “merrda”, e se o Lula “viesse a ganhar”, tudo ficaria ainda pior… Um dos “ovos de serpente” que viriam a eclodir 18 anos depois?


Mas o racismo desponta um pouco em todo o lado, mas com curiosas nuances. Os taxistas que, segundo soubemos por outro taxista (!), eram racistas a mais não poder, espalhavam que as moças brancas só queriam “nêgos” e que estes as matavam “com aquela doença”. O “medo dos pretos” manifestado pelas grã-finas no Rossio e a possível apetência das “outras” brancas – possivelmente as “pobres” – pelos mesmos negros, representa uma contradição que exigiria uma melhor investigação. Mas não há tempo para isso, e vamos apanhando estes indícios pouco claros, aqui e ali, embora a fábula das “preferências” das brancas por negros não seja estranha sequer ao nosso – “ultra civilizado” – continente…


Conhecemos um negro, engraxador (“engraxate”) de profissão, com cinquenta anos já feitos, de nome Jorge de Vargas, que nos contou um fragmento da sua estória de pobreza: com apenas o terceiro ano (terceira classe) era motorista de “caminhão” noutra cidade, mas a crise fê-lo perder o emprego e rumou a Pelotas em busca de trabalho. Não o encontrou, como o não tem um sexto da população. Muitos recorrem a trabalhos improvisados: moto-táxis, aluguer de póneis e bicicletas, guia de turistas… Ele deitou a mão ao de “engraxate”, mas até para o material improvisado que usa teve que pedir fiado: a uma loja popular (do género dos nossos antigos “trezentos”), uma escova, ao dono do café onde iniciou o seu trabalho, a graxa e, com umas tábuas lá amanhou a caixa… Um homem suave, cheio de dignidade e com alguma alegria, embora nem casa tenha. Perguntou-nos se, de onde vínhamos, havia também “guris” a fazer este serviço. Dissemos-lhe que sim, um pouco contrafeitos, e ele pareceu mais tranquilo, como se isso o justificasse na ordem do mundo. Esta é uma época má para ele, porque as pessoas quase só usam sandálias, mas o Inverno (que só começa em Junho) é amigo: traz a lama e o elegante tem que recorrer a uma dúzia de pessoas como ele que percorrem o centro da cidade. Sente-se feliz, porque é sozinho:
            — Gosto de viver bem — diz ele, e essa declaração absurda caiu como uma cortina de ferro sobre o calor pesado e o azul insuportável daquela tarde.
            — Vivo só com Deus, e estou bem — diziam os seus olhos tranquilos. Quando lhe dissemos que era um filósofo, ele concordou.
            — É uma pessoa que sabe muito — e confirmou-o contando uma estória canalha em que tinha posto na ordem um “negão” que costumava humilhá-lo pelo seu trabalho.
            — Gostei de falar com os senhores — e este cumprimento trouxe àquela tarde quente, uma frescura nova.
            Afastados por muito mais do que os milhares de quilómetros que separam Pelotas de Tomar, encontrámo-nos nesse brevíssimo e caloroso momento, apagando fronteiras, pigmentos, preconceitos…


FOTOS DE C.VELOSO
Vistas do mercado municipal de Pelotas

Sem comentários:

Enviar um comentário