O ÓDIO AOS POBRES (3)
Carlos
Rodarte Veloso
“O Templário”, 22 de Novembro de 2018
(CONCLUSÃO)
No entanto, uma mulher branca, de meia-idade e de aspecto
modesto com quem falámos, ao responder a algumas perguntas que lhe fizemos, exteriorizou
um azedume violentíssimo e praticamente gritou que toda a cidade era “uma
merrda” (sic), as cidades vizinhas eram “uma merrda”, e Porto Alegre – a
capital do Estado – era uma “merrda” e tudo era uma “merrda”, e se o Lula
“viesse a ganhar”, tudo ficaria ainda pior… Um dos “ovos de serpente” que
viriam a eclodir 18 anos depois?
Mas o racismo desponta um pouco em todo o lado, mas com
curiosas nuances. Os taxistas que, segundo soubemos por outro taxista (!), eram
racistas a mais não poder, espalhavam que as moças brancas só queriam “nêgos” e
que estes as matavam “com aquela doença”. O “medo dos pretos” manifestado pelas
grã-finas no Rossio e a possível apetência das “outras” brancas – possivelmente
as “pobres” – pelos mesmos negros, representa uma contradição que exigiria uma
melhor investigação. Mas não há tempo para isso, e vamos apanhando estes
indícios pouco claros, aqui e ali, embora a fábula das “preferências” das
brancas por negros não seja estranha sequer ao nosso – “ultra civilizado” –
continente…
Conhecemos um negro, engraxador (“engraxate”) de profissão,
com cinquenta anos já feitos, de nome Jorge de Vargas, que nos contou um
fragmento da sua estória de pobreza: com apenas o terceiro ano (terceira
classe) era motorista de “caminhão” noutra cidade, mas a crise fê-lo perder o
emprego e rumou a Pelotas em busca de trabalho. Não o encontrou, como o não tem
um sexto da população. Muitos recorrem a trabalhos improvisados: moto-táxis,
aluguer de póneis e bicicletas, guia de turistas… Ele deitou a mão ao de
“engraxate”, mas até para o material improvisado que usa teve que pedir fiado:
a uma loja popular (do género dos nossos antigos “trezentos”), uma escova, ao
dono do café onde iniciou o seu trabalho, a graxa e, com umas tábuas lá amanhou
a caixa… Um homem suave, cheio de dignidade e com alguma alegria, embora nem
casa tenha. Perguntou-nos se, de onde vínhamos, havia também “guris” a fazer
este serviço. Dissemos-lhe que sim, um pouco contrafeitos, e ele pareceu mais
tranquilo, como se isso o justificasse na ordem do mundo. Esta é uma época má
para ele, porque as pessoas quase só usam sandálias, mas o Inverno (que só
começa em Junho) é amigo: traz a lama e o elegante tem que recorrer a uma dúzia
de pessoas como ele que percorrem o centro da cidade. Sente-se feliz, porque é
sozinho:
— Gosto de viver bem — diz ele, e
essa declaração absurda caiu como uma cortina de ferro sobre o calor pesado e o
azul insuportável daquela tarde.
— Vivo só com Deus, e estou bem —
diziam os seus olhos tranquilos. Quando lhe dissemos que era um filósofo, ele
concordou.
— É uma pessoa que sabe muito — e
confirmou-o contando uma estória canalha em que tinha posto na ordem um “negão”
que costumava humilhá-lo pelo seu trabalho.
— Gostei de falar com os senhores —
e este cumprimento trouxe àquela tarde quente, uma frescura nova.
Afastados por muito mais do que os
milhares de quilómetros que separam Pelotas de Tomar, encontrámo-nos nesse
brevíssimo e caloroso momento, apagando fronteiras, pigmentos, preconceitos…
FOTOS
DE C.VELOSO
Vistas
do mercado municipal de Pelotas
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