O NAUFRÁGIO DO SAN PEDRO DE ALCÂNTARA EM PENICHE NO ANO DE 1786
TRAGÉDIA MARÍTIMA E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL (*)
Carlos Rodarte Veloso
“Correio Transmontano”, 18 de Novembro de 2018
Fez este ano 232 anos que ocorreu o naufrágio do célebre navio de guerra espanhol San Pedro de Alcântara, em Peniche . Este navio, com as suas sessenta peças de artilharia e 419 ocupantes entre tripulação e passageiros, carregado com os tesouros do Peru, tinha partido de Lima a 14 de Abril de 1784, com destino à cidade de Cádis. A bordo viajava, prisioneiro, com outros peruanos, o filho do último rei inca Tupac-Amaru II, Fernando Tupac-Amaru, com 11 anos de idade, o qual se salvou da morte no mar, mas não da prisão à qual o tinham destinado, em Espanha.
O naufrágio, na noite de 2 para 3 de Fevereiro de 1786, contra os recifes do grande rochedo em forma de torre, a Papôa, provocou uma sentida emoção entre a população marítima da vila que, em vez de pilhar os salvados do navio e os próprios sobreviventes, com era então prática corrente entre muitos povos vivendo junto ao mar, salvou muitos da morte, tratou dos feridos e alimentou e vestiu carinhosamente todos os sobreviventes com eles dividindo as suas casas e recursos. As operações de salvamento foram documentadas pelas pinturas de Jean Pillement (fig.1), um artista francês residente em Portugal, que de imediato se deslocou ao local. Outro artista, este espanhol, Luis Peret Y Alcázar, também deixou testemunhos gráficos da tragédia e subsequentes acções de recuperação de salvados (fig.2).
Quanto aos bens materiais, eles foram sendo recolhidos, desde o primeiro momento, primeiro por meios rudimentares e, depois da chegada de duas fragatas espanholas enviadas para o efeito, com o apoio de mergulhadores. Entre moedas de ouro e prata foram resgatadas 4 066 585 patacas (moeda de prata de 320 réis). O recurso aos mergulhadores equipados com equipamento denominado “búzios”, deveu-se à profundidade a que se encontravam as riquezas perdidas, cerca de 9 metros na maré vazante. Um texto oficial (**) documenta os elogios dos representantes diplomáticos espanhóis perante a generosidade evidenciada pelo povo da vila e a acção imediata das autoridades portuguesas e da própria rainha, D. Maria I, ao facultarem todos os meios possíveis para a salvação de corpos e almas dos náufragos.
A arqueologia confirmou a narrativa, e dois pesquisadores, Jean-Yves e Maria Luísa Blot, encontraram, no Verão de 1985 e 1986, os esqueletos dos náufragos sepultados pelos habitantes da vila, e ainda moedas e artefactos que tinham escapado às buscas efectuadas havia duzentos anos, nomeadamente grilhetas (fig.3) dos prisioneiros incas. Mais do que isso, detectaram ainda, entre os habitantes da Peniche dos nossos dias, lendas e superstições relativas ao longínquo naufrágio.
(*) Extracto da versão portuguesa da comunicação Causes de naufrage dans les routes maritimes portugaises de l’ancien régime - de l’erreur humaine à la violence organisée, apresentada ao 4th International Congress of Maritime History, em Corfu, Grécia, 23 de Junho de 2004.
(**) Relação dos Grandes Elogios Que Tem Feito os Hespanhoes À Nação Portuguesa, e ao Excelentissimo Senhor Duque de Lafoens, pela vigilancia, e cuidado com que lhe assistirão aos que se salvarão do Naufraugio da Nao de Guerra S. Pedro de Alcantara, sucedido nas costas da Peniche, com a noticia de todo o cabedal que se tem tirado; e do Naufragio proximamente sucedido no fim do mez de Abril na dita Costa, Na Officina de Filippe da Silva e Azevedo, Lisboa, 1786.
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