ARTE E ICONOGRAFIA DA VIDA E
DA MORTE
Carlos Rodarte Veloso
Publicado
em Artison, Nº 9, 2019, Revista online do
Instituto de
História da Arte da Universidade de Lisboa
As artes figurativas,
isto é, a pintura, a escultura e as artes aplicadas, exigem dos seus estudiosos
– historiadores da arte e das mentalidades, conservadores e restauradores do
património, e todos os profissionais que de alguma forma lidam com objectos artísticos
– a observação e identificação dos temas representados através de duas
disciplinas auxiliares, a Iconografia e a Iconologia, desde as suas origens
renascentistas muitas vezes confundidas uma com a outra.
No entanto, o grande
historiador da Arte que foi Erwin Panofsky, distinguiu-as na sua obra “Estudos
de Iconologia”, publicada em 1939. Para ele, Iconografia era a descrição mais
imediata do assunto representado numa obra de arte, enquanto a Iconologia
aprofundava o seu significado.
Panofsky exemplificava
com o acto de “tirar o chapéu”, costume masculino hoje já caído em desuso. Num
primeiro momento, (Iconografia), o homem descobre a cabeça, retirando o chapéu.
Num segundo momento (Iconologia), identifica-se tal hábito como um acto de
cortesia, “resquício do cavalheirismo medieval: os homens armados costumavam retirar
os elmos para deixarem claras as suas intenções pacíficas“[1].
Sendo assim, é
fundamental o conhecimento dos costumes quotidianos e o estado das mentalidades
nas diversas épocas, mormente naquela a que pertence o universo do artista em
causa, para se compreender as representações simbólicas que produziu.
No livro citado, Panofsky explicita as
suas ideias sobre os três níveis da compreensão da obra de arte:
“Primário, aparente ou natural:
o nível mais básico de entendimento, que consiste na percepção da obra na sua
forma pura. Tomando-se, por exemplo, a pintura da Última Ceia de Leonardo da Vinci, no primeiro nível o quadro
poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa.
Este primeiro nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de
qualquer conhecimento ou contexto cultural.
Secundário ou convencional: Este nível avança
um degrau e traduz a equação cultural e o conhecimento iconográfico. Por exemplo,
um observador do Ocidente entenderia que a pintura dos treze homens sentados à
mesa representaria a “Última Ceia de
Cristo com os Apóstolos” [2].
Fig. 1 - Leonardo da Vinci, “Última
Ceia”, Milão
Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): este nível leva em conta a história
pessoal, técnica e cultural para entender uma obra de arte. Parece que a arte
não é um incidente isolado, mas um produto de um ambiente histórico.”
Por que motivo teria
então Leonardo da Vinci pintado na extensa parede frontal do refeitório do
Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, em tamanho natural, as treze
personagens evangélicas que, em vez de revelarem Judas como o apóstolo traidor
– como era típico até então – manifestam magistralmente a dúvida que corrói a
assembleia, o clima de suspeita que se instala, decerto bastante semelhante
àquele que imperava nas várias cortes das cidades-estados italianas,
nomeadamente na de Ludovico Sforzza, mecenas e protector de Leonardo? De facto,
os homicídios políticos por envenenamento eram então comuns na Itália das
repúblicas e dos principados, especialmente em banquetes. Por outro lado, a
presença quase carnal dos doze apóstolos e de Cristo em face dos monges
reunidos numa refeição, dramatiza especialmente este momento fundador do
sacramento mais sagrado da Igreja católica, a Eucaristia.
A Iconografia e a
Iconologia não se limitam à descrição e interpretação das imagens históricas ou
simplesmente míticas, mas estudam também três categorias especiais de representação,
que auxiliam a sua identificação e interpretação: as Alegorias, os Símbolos e
os Atributos.
As Alegorias,
representações que materializam ideias abstractas, como a Ira, a Bondade, a
Guerra, o Ciúme e tantas outras, sempre assumindo a forma de homens ou mulheres
consoante o género da abstracção: a Virtude como mulher, o Patriotismo como
homem.
Os Símbolos, que são
insígnias, emblemas e outros sinais convencionais relacionados com a respectiva
ideia. A Estrela de David, a Cruz de Cristo, o Crescente muçulmano, a Esfera
Armilar, a Coroa imperial...
Os Atributos, muito
associados aos elementos anteriores, elementos gráficos que caracterizam
figuras históricas ou lendárias, sacras ou profanas, caso de Jesus menino ao
colo da Madonna, das setas cravadas no corpo nu de S. Sebastião ou a coroa de
louros e a venda no olho cego de Camões.
Ferramentas essenciais
no estudo e divulgação das obras de arte, a Iconografia e a Iconologia vêm-se
tornando cada vez mais presentes nos curricula dos estudos artísticos.
O estudo da imagem é fundamental na interpretação das artes plásticas,
embora os mesmos temas possam ter interpretações diametralmente opostas
consoante as épocas em que são produzidos e as ideologias então dominantes.Um
dos casos mais interessantes pelo seu contraste, é o das representações de
caveiras ou, mesmo, esqueletos, que são conhecidas desde a Antiguidade como
avisos para as consequências das formas de comportamento humanas. Um mosaico de
Antioquia com c. 2400 anos mostra um esqueleto reclinado legendado, tal como
numa banda desenhada moderna, pela frase em Grego, “sê feliz, aproveita a
vida”.
Também na Antiga Roma, a representação de grupos de esqueletos a dançar, ou
caveiras acompanhadas de objectos que simbolizam a efemeridade da vida, são
convites ao “carpe diem”, isto é, ao gozo dos prazeres dos sentidos, ou seja,
da vida, antes que a morte tudo venha destruir. Há aqui um convite ao prazer,
de forma alguma considerado pecaminoso na cultura romana pagã. Assim, o mais
célebre dos vestígios dessa ideologia da sensualidade, claramente epicurista,
está representada numa luxuosa taça de prata esculpida com um friso de
esqueletos dançantes, destinada ao vinho e encontrada nas ruínas da villa
romana de Boscoreale, próximo de Pompeia que, tal como a cidade do Vesúvio, foi
destruída durante a erupção do ano 79 d.C.[3]
Fig. 2 - Museu de Nápoles - Taça de prata de Boscoreale, Pompeia
Com o triunfo do Cristianismo e a sua recusa sectária do prazer, a arte
medieval passa a englobar mensagens cuja forma, sendo semelhante à da
Antiguidade – de novo esqueletos dançantes ou caveiras, associadas a velas
apagadas, relógios, livros, instrumentos musicais, objectos científicos e de
luxo – remete para a recusa pura e simples do prazer, única forma considerada
segura de evitar a danação eterna, o Inferno. Agora esta figuração macabra
aponta para as coisas vãs da vida – a “vãdade”, ou seja, a vaidade a que chamam Vanitas
– e tem o seu triunfo a partir 1347, quando a Peste Negra começa a assolar a
Europa. As cenas que antes convidavam ao prazer, são agora denominadas “danças
macabras”, arrastando num turbilhão infernal humildes e poderosos, reis e
papas, guerreiros e monges, e todas as classes sociais e sexos.
Fig.3 - Guyot Marchant, “Dança macabra”, 1486
(BnF, domínio público)
Essa associação entre a Morte e o Poder não
poderia ser mais transparente do que no quadro de Holbein, “Os Embaixadores”
que ostenta, em primeiro plano, uma anamorfose – imagem disfarçada e deformada
– da Vanitas, uma caveira que só pode ser evidenciada mediante o uso de um
cilindro óptico funcionando como lente. Em segundo plano, os símbolos do Poder,
da Ciência e das Artes – e os próprios embaixadores – como se vê,
armadilhas para perder as pobres almas dos pecadores, sejam eles poderosos
senhores, estudiosos, teólogos, frades... sendo a Ciência, tal como a Beleza,
uma das portas do Inferno.
Outros exemplos se poderão apontar, uns mais macabros que outros, mas nos
séculos XVI e XVII, ensanguentados por contínuas guerras religiosas, é
especialmente arrepiante “O Triunfo da Morte” de Bruegel o Velho. O quadro de
Pieter Claesz, “Vanitas”, tema recorrente da contraditória condição humana, é
um bom representante dessa tendência, que apresenta inúmeras variantes, que
também podem ser integrados na classificação de “naturezas mortas”.
As “capelas de ossos”, totalmente revestidas de ossos, de que há vários
excelentes exemplos em Portugal, são matéria abundante da condenação da
Vanitas, embora especialmente votadas aos espaços religiosos monacais onde
constituiam matéria de reflexão para a aspiração ascética a uma “boa morte”[4].
Fig.4 - Campo Maior, “Capela de Ossos” (Foto Carlos R. Veloso)
Aliás, a presença de uma caveira, também símbolo da penitência, é atributo
de diversos santos, como S. Jerónimo, S. Francisco de Assis, S. Francisco
Xavier, Santa Maria Madalena, S. Bruno, e tantos outros.
Também no intradorso do monumento funerário do bispo de Miranda D. Manuel
de Moura Manuel, na Capela de Nossa Senhora da Penha de França, em Vista
Alegre, obra do escultor barroco Claude Laprade, sobressaem seis caveiras
cobertas com tiara, chapéu cardinalíceo, mitra, coroas imperial e real e um
elmo, representando os poderes espirituais e temporais, num modo claramente
paralelo ao das representações da Vanitas[5].
Figs.5-6 - Túmulo de Vista Alegre e pormenor com representações da
“Vanitas”
(Fotos Carlos R. Veloso)
Sempre e sempre, a lembrança da morte inevitável, a influenciar os
comportamentos humanos, tanto pela busca do prazer enquanto é tempo, como pela
preparação de uma tão boa e virtuosa morte quanto humanamente possível.
BIBLIOGRAFIA
PANOWSKY, Erwin – Estudos de
Iconologia. Temas humanísticos na arte do Renascimento. Lisboa: Editorial
Estampa, 1986.
VELOSO, Carlos – As capelas de ossos em Portugal, “speculum mortis” no
espectáculo barroco”. Coimbra: Livraria Minerva, 1993.
XAVIER, Pedro Amaral – “Imagens da morte na arte (dos finais da Idade Média
ao Barroco”, COELHO, António Matias (coord.) – Atitudes perante a morte (Actas do congresso homónimo na Chamusca).
Coimbra: Livraria Minerva, 1991, pp. 13-41.
[1]
Panowsky, 1986, 19-20.
[2]
Ibidem, 22.
[3]
XAVIER, 1991, 18-20.
[4]
VELOSO, 1993, 8-12.
[5]
XAVIER, 1991, 39-41.