sábado, 28 de dezembro de 2019



ARTE E ICONOGRAFIA DA VIDA E DA MORTE

Carlos Rodarte Veloso

Publicado em Artison, Nº 9, 2019, Revista online do 
Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa

As artes figurativas, isto é, a pintura, a escultura e as artes aplicadas, exigem dos seus estudiosos – historiadores da arte e das mentalidades, conservadores e restauradores do património, e todos os profissionais que de alguma forma lidam com objectos artísticos – a observação e identificação dos temas representados através de duas disciplinas auxiliares, a Iconografia e a Iconologia, desde as suas origens renascentistas muitas vezes confundidas uma com a outra.
No entanto, o grande historiador da Arte que foi Erwin Panofsky, distinguiu-as na sua obra “Estudos de Iconologia”, publicada em 1939. Para ele, Iconografia era a descrição mais imediata do assunto representado numa obra de arte, enquanto a Iconologia aprofundava o seu significado.
Panofsky exemplificava com o acto de “tirar o chapéu”, costume masculino hoje já caído em desuso. Num primeiro momento, (Iconografia), o homem descobre a cabeça, retirando o chapéu. Num segundo momento (Iconologia), identifica-se tal hábito como um acto de cortesia, “resquício do cavalheirismo medieval: os homens armados costumavam retirar os elmos para deixarem claras as suas intenções pacíficas“[1].
Sendo assim, é fundamental o conhecimento dos costumes quotidianos e o estado das mentalidades nas diversas épocas, mormente naquela a que pertence o universo do artista em causa, para se compreender as representações simbólicas que produziu.
No livro citado, Panofsky explicita as suas ideias sobre os três níveis da compreensão da obra de arte:
“Primário, aparente ou natural: o nível mais básico de entendimento, que consiste na percepção da obra na sua forma pura. Tomando-se, por exemplo, a pintura da Última Ceia de Leonardo da Vinci, no primeiro nível o quadro poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa. Este primeiro nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural.
Secundário ou convencional: Este nível avança um degrau e traduz a equação cultural e o conhecimento iconográfico. Por exemplo, um observador do Ocidente entenderia que a pintura dos treze homens sentados à mesa representaria a “Última Ceia de Cristo com os Apóstolos” [2].
  

Fig. 1 - Leonardo da Vinci, “Última Ceia”, Milão

Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): este nível leva em conta a história pessoal, técnica e cultural para entender uma obra de arte. Parece que a arte não é um incidente isolado, mas um produto de um ambiente histórico.”
Por que motivo teria então Leonardo da Vinci pintado na extensa parede frontal do refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, em tamanho natural, as treze personagens evangélicas que, em vez de revelarem Judas como o apóstolo traidor – como era típico até então – manifestam magistralmente a dúvida que corrói a assembleia, o clima de suspeita que se instala, decerto bastante semelhante àquele que imperava nas várias cortes das cidades-estados italianas, nomeadamente na de Ludovico Sforzza, mecenas e protector de Leonardo? De facto, os homicídios políticos por envenenamento eram então comuns na Itália das repúblicas e dos principados, especialmente em banquetes. Por outro lado, a presença quase carnal dos doze apóstolos e de Cristo em face dos monges reunidos numa refeição, dramatiza especialmente este momento fundador do sacramento mais sagrado da Igreja católica, a Eucaristia.
A Iconografia e a Iconologia não se limitam à descrição e interpretação das imagens históricas ou simplesmente míticas, mas estudam também três categorias especiais de representação, que auxiliam a sua identificação e interpretação: as Alegorias, os Símbolos e os Atributos.
As Alegorias, representações que materializam ideias abstractas, como a Ira, a Bondade, a Guerra, o Ciúme e tantas outras, sempre assumindo a forma de homens ou mulheres consoante o género da abstracção: a Virtude como mulher, o Patriotismo como homem.
Os Símbolos, que são insígnias, emblemas e outros sinais convencionais relacionados com a respectiva ideia. A Estrela de David, a Cruz de Cristo, o Crescente muçulmano, a Esfera Armilar, a Coroa imperial...
Os Atributos, muito associados aos elementos anteriores, elementos gráficos que caracterizam figuras históricas ou lendárias, sacras ou profanas, caso de Jesus menino ao colo da Madonna, das setas cravadas no corpo nu de S. Sebastião ou a coroa de louros e a venda no olho cego de Camões.
Ferramentas essenciais no estudo e divulgação das obras de arte, a Iconografia e a Iconologia vêm-se tornando cada vez mais presentes nos curricula dos estudos artísticos.
O estudo da imagem é fundamental na interpretação das artes plásticas, embora os mesmos temas possam ter interpretações diametralmente opostas consoante as épocas em que são produzidos e as ideologias então dominantes.Um dos casos mais interessantes pelo seu contraste, é o das representações de caveiras ou, mesmo, esqueletos, que são conhecidas desde a Antiguidade como avisos para as consequências das formas de comportamento humanas. Um mosaico de Antioquia com c. 2400 anos mostra um esqueleto reclinado legendado, tal como numa banda desenhada moderna, pela frase em Grego, “sê feliz, aproveita a vida”. 
Também na Antiga Roma, a representação de grupos de esqueletos a dançar, ou caveiras acompanhadas de objectos que simbolizam a efemeridade da vida, são convites ao “carpe diem”, isto é, ao gozo dos prazeres dos sentidos, ou seja, da vida, antes que a morte tudo venha destruir. Há aqui um convite ao prazer, de forma alguma considerado pecaminoso na cultura romana pagã. Assim, o mais célebre dos vestígios dessa ideologia da sensualidade, claramente epicurista, está representada numa luxuosa taça de prata esculpida com um friso de esqueletos dançantes, destinada ao vinho e encontrada nas ruínas da villa romana de Boscoreale, próximo de Pompeia que, tal como a cidade do Vesúvio, foi destruída durante a erupção do ano 79 d.C.[3]


Fig. 2 - Museu de Nápoles - Taça de prata de Boscoreale, Pompeia

Com o triunfo do Cristianismo e a sua recusa sectária do prazer, a arte medieval passa a englobar mensagens cuja forma, sendo semelhante à da Antiguidade – de novo esqueletos dançantes ou caveiras, associadas a velas apagadas, relógios, livros, instrumentos musicais, objectos científicos e de luxo – remete para a recusa pura e simples do prazer, única forma considerada segura de evitar a danação eterna, o Inferno. Agora esta figuração macabra aponta para as coisas vãs da vida – a “vãdade”, ou seja, a vaidade a que chamam Vanitas  – e tem o seu triunfo a partir 1347, quando a Peste Negra começa a assolar a Europa. As cenas que antes convidavam ao prazer, são agora denominadas “danças macabras”, arrastando num turbilhão infernal humildes e poderosos, reis e papas, guerreiros e monges, e todas as classes sociais e sexos.


Fig.3 - Guyot Marchant, “Dança macabra”, 1486
(BnF, domínio público)

 Essa associação entre a Morte e o Poder não poderia ser mais transparente do que no quadro de Holbein, “Os Embaixadores” que ostenta, em primeiro plano, uma anamorfose – imagem disfarçada e deformada   – da Vanitas, uma caveira que só pode ser evidenciada mediante o uso de um cilindro óptico funcionando como lente. Em segundo plano, os símbolos do Poder, da Ciência e das Artes – e os próprios embaixadores –  como se vê, armadilhas para perder as pobres almas dos pecadores, sejam eles poderosos senhores, estudiosos, teólogos, frades... sendo a Ciência, tal como a Beleza, uma das portas do Inferno.
Outros exemplos se poderão apontar, uns mais macabros que outros, mas nos séculos XVI e XVII, ensanguentados por contínuas guerras religiosas, é especialmente arrepiante “O Triunfo da Morte” de Bruegel o Velho. O quadro de Pieter Claesz, “Vanitas”, tema recorrente da contraditória condição humana, é um bom representante dessa tendência, que apresenta inúmeras variantes, que também podem ser integrados na classificação de “naturezas mortas”.
As “capelas de ossos”, totalmente revestidas de ossos, de que há vários excelentes exemplos em Portugal, são matéria abundante da condenação da Vanitas, embora especialmente votadas aos espaços religiosos monacais onde constituiam matéria de reflexão para a aspiração ascética a uma “boa morte”[4].  


Fig.4 - Campo Maior, “Capela de Ossos” (Foto Carlos R. Veloso)

Aliás, a presença de uma caveira, também símbolo da penitência, é atributo de diversos santos, como S. Jerónimo, S. Francisco de Assis, S. Francisco Xavier, Santa Maria Madalena, S. Bruno, e tantos outros.
Também no intradorso do monumento funerário do bispo de Miranda D. Manuel de Moura Manuel, na Capela de Nossa Senhora da Penha de França, em Vista Alegre, obra do escultor barroco Claude Laprade, sobressaem seis caveiras cobertas com tiara, chapéu cardinalíceo, mitra, coroas imperial e real e um elmo, representando os poderes espirituais e temporais, num modo claramente paralelo ao das representações da Vanitas[5].






Figs.5-6 - Túmulo de Vista Alegre e pormenor com representações da “Vanitas”
(Fotos Carlos R. Veloso)

Sempre e sempre, a lembrança da morte inevitável, a influenciar os comportamentos humanos, tanto pela busca do prazer enquanto é tempo, como pela preparação de uma tão boa e virtuosa morte quanto humanamente possível.

BIBLIOGRAFIA
PANOWSKY, Erwin – Estudos de Iconologia. Temas humanísticos na arte do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1986.
VELOSO, Carlos – As capelas de ossos em Portugal, “speculum mortis” no espectáculo barroco”. Coimbra: Livraria Minerva, 1993.
XAVIER, Pedro Amaral – “Imagens da morte na arte (dos finais da Idade Média ao Barroco”, COELHO, António Matias (coord.) – Atitudes perante a morte (Actas do congresso homónimo na Chamusca). Coimbra: Livraria Minerva, 1991, pp. 13-41.




[1] Panowsky, 1986, 19-20.
[2] Ibidem, 22.
[3] XAVIER, 1991, 18-20.
[4] VELOSO, 1993, 8-12.
[5] XAVIER, 1991, 39-41.



DOIS RETRATOS DE ABEL MANTA

Carlos Rodarte Veloso

Publicado em Artison, Nº 9, 2019, Revista online do 
Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa



Abel Manta, pintor modernista, aproximou-se do cézannismo, tendo sido “um dos melhores retratistas da sua geração, género em que conseguiu aliar a interpretação psicológica com o registo do visível”.[1]
Apresenta-se aqui dois retratos de sua autoria, até agora ausentes de referência em qualquer texto de História da Arte, um de 1931, representando a jovem “Mizette” (Maria Julieta de Freitas Gomes Rodarte de Almeida Veloso), minha Mãe, outro de 1936, o seu Pai e meu Avô, o Engenheiro Celestino Germano Rodarte de Almeida (este, no entanto, tendo figurado em catálogo de Cabral Moncada Leilões).
O Engº. Celestino Rodarte de Almeida (Ferreira do Zêzere,1890- Sesimbra,1964) foi director da Escola Industrial Machado de Castro entre 1930 e 1957 e ganhou notoriedade devido à sua colaboração na reforma do ensino técnico em 1948.
Amigo pessoal de Abel Manta e de Fernando Pessoa, frequentou o meio intelectual e artístico de Lisboa e exerceu funções na comissão administrativa do plano de obras da Praça do Império e da zona marginal de Belém, sendo-lhe apontada, na tradição familiar, a autoria (ou co-autoria?) nos projectos de engenharia de vários edifícios conhecidos nomeadamente da torre-mirante de Santa Cruz no concelho de Torres Vedras, a estação de caminho-de-ferro de Tomar, o Liceu D. Filipa de Lencastre e o Instituto do Cancro. Infelizmente não obtive comprovativo documental destas autorias.

       
Fotografias de Carlos Rodarte Veloso e de Jaime Martins Veloso

BIBLIOGRAFIA

FRANÇA, José-Augusto – 100 Quadros Portugueses do século XX. Lisboa: Quetzal Editores, 2000, pp. 58-59, 70-71.
GONÇALVES, Rui Mário – Pioneiros da Modernidade. Lisboa: Publicações Alfa, 1986.
MENDES, Manuel – Abel Manta. Lisboa: Artis, 1958.


[1] GONÇALVES, 1986: pp. 120.

sábado, 21 de dezembro de 2019



REDES MUITO POUCO SOCIAIS

Carlos Rodarte Veloso

“Templário”, 19 de Dezembro de 2019


Desde que as chamadas redes sociais conquistaram a Internet, subiu em flecha a expectativa de que a abertura desse gigantesco fórum da opinião viria a unir as pessoas de todos os continentes e, assim, garantir um diálogo democrático a nível global, eliminando de vez a prepotência de todas as ditaduras.
Ingenuidade pura! A invasão da Internet não só foi rapidamente apropriada pelos poderes autocráticos que, onde estavam estabelecidos, sabiamente limitaram os seus poderes mediáticos através de formas mais ou menos habilidosas de censura e vigilância das opiniões “contra”, como se serviram da exposição a que se sujeitaram voluntária e gostosamente os seus actores, para interferir, anonimamente por vezes, mas também com o crescente “contributo” de muito público e dos próprios media, para intervir politicamente, não de acordo com as maiorias que teoricamente controlariam a opinião, mas frequentemente contra essas mesmas maiorias.
O semianonimato que os mecanismos da Net permitem, introduziram aos milhões – e o número cresce diariamente! – anónimos manipuladores cujo papel político se sobrepõe à lógica das maiorias reais, que já não há já forma de avaliar.
É assim fácil, mesmo nos países mais democráticos, que ideias que num diálogo aberto e face a face, dificilmente encontrariam apoiantes na sociedade no seu conjunto, são sentidas como tendencialmente maioritárias.
São assim fáceis as generalizações, quer para atacar determinado status quo, quer para promover outro, porventura abominável em termos históricos – caso do nazi-fascismo e das diversas formas de totalitarismo – ficando a população usuária completamente desinformada da ordem de grandeza da adesão a essa tendência.
Essa manipulação é agora um facto bem conhecido, apesar da extraordinária dificuldade em denunciá-la factualmente, como tem acontecido com a sua interferência nos actos eleitorais de um número crescente de países – ainda – democráticos, como os Estados Unidos, o Reino Unido, a Espanha, o Brasil…
É evidente a interferência do grande capital internacional nesta manipulação, capaz de deturpar a própria autoridade da Ciência no que toca, muito especialmente, às alterações climáticas, cuja evidência continua a ser negada pelas “autoridades” políticas e religiosas de um número inacreditável de países.
Por outro lado e não desprezivelmente, os próprios utentes a nível individual – falo das pessoas singulares e não ligadas necessariamente a lobbies – servem-se deste mecanismo para se libertarem da opressão social, inevitável nas relações humanas, mas também face ao poder instituído, muitas vezes corrupto mas na maioria das vezes inevitavelmente errado nas suas opções, a mais das vezes devido às naturais limitações materiais, mais sentidas nos países mais pobres, mas também nos mais poderosos.
Não são assim apenas manipulados os dados reconhecidos sobre as opiniões dominantes, mas as próprias opiniões acabam por ser modificadas, muitas vezes radicalmente, dando origem a autênticas inversões de tendências tidas até então como a norma.
A toda esta triste situação se acrescenta a contaminação das relações interpessoais, o recurso crescente ao insulto, a exposição da intimidade da família assim prejudicando a sua própria segurança, a abertura ao discurso do ódio, da inveja e da maledicência…
Por vezes tenho sido tentado a abandonar de vez o Facebook, a rede “social” que ainda acompanho, e só não o faço porque procuro, fugindo evidentemente a esses aspectos mais do que negativos, nojentos, dar um contributo quanto possível isento para transformar este mecanismo de comunicação que tantas esperanças suscitou nos seus começos, numa esperança para o diálogo entre todos os seres humanos.
Com cada vez menos esperança, devo dizer!

domingo, 8 de dezembro de 2019



ESCÓCIA E CATALUNHA, AS TÃO INCÓMODAS 

COMO INEVITÁVEIS COMPARAÇÕES

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 5 de Dezembro de 2019 

Há mais de dois anos que dirigentes independentistas catalães se encontram presos nas cadeias do estado espanhol. O seu crime? A defesa através de acções não violentas da independência do seu País, através de manifestações e de um referendo, ambos reprimidos com a maior violência, e a prisão dos seus líderes e ordem de prisão para o presidente respectivo, entretanto autoexilado, eleitos pelo povo da Catalunha.
Num país regido por leis democráticas e sob a protecção de uma Constituição ratificada em 6 de Agosto de 1978, que no seu título preliminar proclama “um Estado social e democrático de Direito que propugna como valores superiores do ordenamento jurídico a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo político (…) o princípio de soberania popular, e estabelece a monarquia parlamentar como forma de governo”, em suma, uma Democracia, os dirigentes presos e condenados a longos anos de prisão, configuram-se como verdadeiros PRESOS POLÍTICOS, dêem as voltas que derem os argumentos dos seus carcereiros, para cúmulo baseados na dita Constituição.
O mais estranho é que o poder que os encarcerou e condena a inacreditáveis penas de prisão parece apenas acreditar na repressão como forma de evitar a todo o custo uma possível fragmentação da Espanha, sem tomar em consideração outras formas de solução já secularmente experimentadas noutros países, incluindo soluções federalistas, caso dos Estados Unidos da América, do Brasil e da Suíça, por exemplo.



O facto de os independentistas da Catalunha serem maioritariamente republicanos não impediria decerto que o diálogo, inacreditavelmente recusado pelo Estado espanhol, levasse a soluções criativas e porventura resolvesse a dificuldade do diálogo com outras forças autonomistas que bem conhecemos, e em tempos ainda recentes, bem mais agressivas que os actuais “subversivos” da Catalunha…
Entretanto, no Reino Unido, país também monárquico, a constituição é um conjunto de leis e de princípios, portanto uma constituição não escrita nem codificada, mas “de facto” assente na soberania parlamentar, cujos estatutos são aprovados pelo Parlamento do Reino Unido, suprema e última fonte do Direito.



Mas o Estado britânico, ao contrário da Espanha, e apesar dos paralelismos entre ambos, não pôs obstáculos jurídicos ao referendo efectuado na Escócia, em todos os aspectos semelhante ao caso catalão. E, no entanto, assim como a Espanha, também a Reino Unido possui outros diversos territórios com aspirações também independentistas.
É evidente que Portugal é obrigado a uma grande contenção relativamente ao problema político espanhol, até para respeitar a política de não-ingerência em matérias de política interna.
Já custa muito compreender que a União Europeia, por norma – e bem! – muito crítica em relação a quaisquer atropelos à Democracia nos diversos Estados que a constituem – embora sem grandes resultados, como é sabido – se cale hipocritamente perante a vergonha que constitui, para todos nós, haver presos políticos aqui mesmo ao lado, descaradamente!
Que o nosso governo se cale em nome da diplomacia, isso faz parte da “realpolitik”, mas eu, cidadão português livre dessas amarras, digo e repito que é uma vergonha aceitar tal estado de coisas. A Espanha não é a Hungria, nem a Turquia, e o facto do seu governo – embora periclitante – ser socialista, ainda mais obriga a encontrar um caminho digno no labirinto em que se encontra. No mínimo, a amnistia para os presos políticos!

sexta-feira, 15 de novembro de 2019



O LÍTIO DO NOSSO (DES)CONTENTAMENTO

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 14 de Novembro de 2019


A riqueza em lítio existente no nosso País, se reconhecida há umas dezenas de anos não daria azo a qualquer polémica: era uma inesperada riqueza que apenas traria prosperidade a Portugal, vindo ainda por cima beneficiar o ambiente, dada a sua utilização nas baterias dos veículos eléctricos, uma das alternativas aos movidos a energias fósseis…
Esta contribuição para a diminuição da pegada carbónica deveria ser saudada como um triunfo da tecnologia e parte importante do conjunto de medidas destinadas a travar o aquecimento global que, dentro de poucos anos trará consequências ainda mais dramáticas à vida sobre o nosso pobre planeta, já tão martirizado nos nossos dias: alterações catastróficas dos ciclos climáticos, secas e desertificação, alternadas com inundações cada dia mais mortíferas, tufões e maremotos, subida do nível dos oceanos, cidades cada vez mais irrespiráveis, incêndios florestais incontroláveis, oceanos e organismos poluídos pelos plásticos, extinção em massa de um número inacreditável de espécies animais e vegetais.
Tudo isto é repetitivo, mas a sua denúncia por um número cada vez mais generalizado dos cientistas pouco efeito provoca na comodista atitude dos inconscientes habitantes da Terra, que pensam ter sempre mais algum tempo para manter os seus hábitos consumistas e predatórios em relação aos recursos naturais.
A difusão da irracionalidade pelos gurus das pseudociências, pondo constante e estupidamente em causa os avisos da Ciência, mais ajuda a alimentar essa atitude irresponsável para com a necessidade de mudar radicalmente as rotinas de uma população mundial em crescimento contínuo.
É ver – e pasmar! – com a enormidade de infinitas “opiniões” veiculadas nas redes sociais, ao nível do “melhor” trumpismo acerca do ambiente e dos perigos que, dizem elas, não o ameaçam… mas também outras opiniões, igualmente desinformadas, embora bem intencionadas, em sentido contrário!
Os ecologistas, por definição na linha da frente da defesa do ambiente, dividem-se agora em grupos de influência em relação à utilização de certas alternativas energéticas, não se conseguindo entender entre eles e, por vezes, dando mostras de um egoísmo nacional pouco consentâneo com os altos ideais defendidos.
Assim, no caso do lítio, a defesa da paisagem passa à frente dos evidentes benefícios da sua exploração e utilização nos veículos de transporte, só aceitável se trazido de outras paragens – mais pobres, evidentemente… – onde já não haverá problemas desde que os desperdícios dessa indústria por lá fiquem a poluir os solos e ambientes e a desfear a paisagem, numa perspectiva no mínimo neocolonialista.
Assim, para protegermos a limpidez da nossa paisagem rural, abdicaremos da exploração desse mineral que, apesar de alguns inconvenientes que apresenta, é abundante em Portugal e uma legislação cautelosa sobre a sua exploração poderia acautelar quaisquer malefícios ambientais e/ou estéticos?
Mais ainda, serão desprezíveis os benefícios económicos trazidos às regiões ricas em lítio pela exploração de uma parte dessas minas, tanto a nível demográfico como social? Não há aqui um lamentável elitismo destes defensores da paisagem, completamente esquecidos dos habitantes que dizem defender?
Dando dois outros exemplos e guardadas as devidas proporções, parece-me perfeitamente ridículo o ataque que alguns grupos ambientalistas desferem contra todos os alimentos geneticamente modificados, como se não fossem eles a esperança que nos resta para alimentar, no futuro, a inevitável fome que já ameaça uma população mundial em crescimento explosivo, ou contra os parques eólicos, devido ao seu alegado efeito pernicioso sobre as aves, cujas rotas migratórias ficariam assim prejudicadas, como se não houvesse muito maior prejuízo para elas devido aos desperdícios das cidades, que lhes alteram os hábitos alimentares e contribuem para, isso sim, alterar profundamente as suas rotinas e migrações naturais.
Sem menosprezar o papel fundamental do AMBIENTALISMO INFORMADO CIENTIFICAMENTE sobre as medidas a favor do Planeta, alerto para o imediatismo pouco ou nada fundamentado de um número crescente de boas-vontades, ignorantes dos mecanismos naturais que dizem defender.
As suas acções, abundantemente cobertas pelos media, variam entre efeitos verdadeiramente benéficos e educativos através da sua acção no terreno, que saúdo vivamente, e um fundamentalismo ridículo que só pode desprestigiar a sua acção.
Estudemos e aprendamos com os cientistas como fez e faz Greta Thunberg, grande defensora, por exemplo, dos automóveis eléctricos, com baterias a lítio... Dá trabalho, mas vale a pena!
 

sexta-feira, 1 de novembro de 2019


O SONHO DA RAZÃO PRODUZ MONSTROS

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 31 de Outubro de 2019


Há pouco mais de dois anos publiquei, neste Jornal, um artigo sobre as jornadas de 1 de Outubro, reinício da luta activa dos independentistas catalães, nas ruas de Barcelona e por todo o seu território, pelo referendo com que tentaram legitimar democraticamente o estatuto de independência para este rico e progressista pedaço da terra ibérica.
As esperanças desses dias foram totalmente goradas, primeiro pelo autoritarismo castelhano de um galego de má memória, Mariano Rajoy, com o devido “respaldo” do seu rei, Filipe VI, esperando-se agora, quando a “solução judicial” contra os dirigentes desse movimento patriótico vinha dar alguma esperança de que um indulto ou, simplesmente, a inteligência de não repetir erros do passado, poderia apaziguar os ânimos e conduzir ao urgente diálogo.
Pelo contrário, vemos os dirigentes independentistas presos condenados a pesadíssimas penas de prisão, ao estilo da Santa Inquisição, e Puigdemont, o Presidente eleito, chamado a Espanha para arcar com as consequências do seu “crime”, sem que o actual dirigente socialista da Espanha tenha mexido uma palha para abrir o urgentíssimo diálogo entre a ressabiada Espanha franquista e este heróico povo que ainda consegue manter propósitos pacifistas apesar da repressão que regressou em força às suas ruas.
A presença nas manifestações de grupos extremistas e provocadores, vem dar ainda maior força à necessidade de um diálogo urgente fraterno.
A memória sangrenta da Guerra Civil, com os seus incontáveis mortos, poderá ser um pesado dissuasor da clemência devida aos catalães independentistas, porventura um perigoso agitar das águas em vésperas de dificílimas eleições… mas momentos difíceis exigem dirigentes corajosos e com fortes convicções e capacidade de diálogo, não dirigentes pusilânimes e borrados de medo, se me é permitida a expressão pouco educada…
Goya, o pintor das guerras napoleónicas e das suas atrocidades que, nos “Desastres da Guerra” e nos “Fuzilamentos de 3 de Maio” plasmou toda uma denúncia arrepiante dos males da guerra, representara já, graficamente, poucos anos antes, nos seus “Caprichos” cuja primeira gravura, “El sueño de la razón produce monstruos”, os perigos do domínio do irracional sobre a razão, associada aquela aos piores horrores que assombraram e continuam a assombrar a humanidade.



Esses desenhos e pinturas proféticas parecem prever com uma arrepiante precisão, essa outra guerra, a que atrás me refiro, a Guerra Civil de Espanha de que outros grandes pintores espanhóis como Dalí e Picasso, deixaram testemunhos, respectivamente a “Premonição da Guerra Civil”, de 1934 a 1936, e a famosíssima “Guernica” de 1937. 



Aí se regressa a Goya e aos seus terríveis fantasmas, com os pesadelos que, pelos vistos, fazem ainda muitos espanhóis transpirar…

sábado, 12 de outubro de 2019



UM PLANETA EM CHAMAS

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário, 10 de Outubro de 2019


Antes fosse o “lume vivo” de Camões, o “fogo de Sant’Elmo” que anunciava aos navegantes o fim da tempestade que tinha posto em grave perigo pessoas e bens, os corpos prestes a afundar-se no turbilhão das águas, e também as ricas mercadorias, a pimenta e a canela das Índias…
Mas não é! É um fogo real que tudo queima, derrete e mata, e não anuncia a bonança, antes promete mais e mais do mesmo, a destruição pura e simples das criaturas de um planeta que foi rico e alimentava os seus filhos.
A ganância e a extraordinária ideia de um desenvolvimento imparável, capaz de esgotar os recursos de vários planetas, inscrita nos ideais de um sistema económico que apenas beneficia os detentores da riqueza, não permite que olhemos para trás e tentemos moderar as ambições de acumulação pela acumulação…
É sabido o erro trágico de prosseguir a exploração dos recursos não renováveis – especialmente dos combustíveis fósseis – os quais, não só não são eternos, mas produzem males que cada vez mais se fazem sentir, apesar dos negacionistas das alterações climáticas considerarem essas alterações como naturais e desligadas da acção humana.
Líderes mundiais irresponsáveis negam as mais elementares provas do aquecimento global e actuam como se o seu enriquecimento à custa dos recursos do planeta fosse um direito seu, exclusivo.
Por isso, os astronómicos lucros gerados pela exploração dos hidrocarbonetos e o facto de as suas reservas serem ainda muito consideráveis, vai relegar para décadas o seu abandono, apesar dos prejuízos ambientais causados pela sua manutenção, que poderá ultrapassar o período de vida útil que nos resta.
Esta noção dramática do escasso tempo que nos resta para inverter o processo de autodestruição do nosso planeta, levou à iniciativa da jovem sueca Greta Thunberg de iniciar uma greve semanal à escola como protesto contra a inércia dos políticos, iniciativa que se converteu num movimento de massas de jovens de todo o mundo, chegado já à ONU e a outras instâncias internacionais, que a converteu na figura de proa de uma acção colectiva a favor do ambiente.
O facto de sofrer da síndrome de Asperger, um transtorno obsessivo-compulsivo associado ao autismo, contribuiu para a radicalização da sua denúncia da situação ambiental e da urgência de acatar os protocolos internacionais assinados pela comunidade internacional – nomeadamente o Acordo de Paris – que, embora insuficientes, foram abandonados nomeadamente pelos Estados Unidos, pela mão do seu truculento e ambientalmente criminoso presidente, Donald Trump.
As razões de alarme são muitas e gravíssimas, desde o aquecimento global que já está a fundir os gelos dos pólos e a elevar, lenta mas inexoravelmente, as águas oceânicas na invasão dos litorais povoados, os fenómenos climáticos extremos, crescentemente destrutivos, a extinção em massa de um número crescente de espécies, a destruição das florestas pelas crescentes vagas de incêndios ou pelo seu desmatamento intensivo, a poluição das terras e dos mares e das suas criaturas, os seres humanos inclusivamente, pelos plásticos das embalagens com que se embrulha todo o tipo de produtos comerciais e industriais, além de, evidentemente, o dióxido de carbono, o metano e todos gases que respiramos…
Entretanto, uma vaga de censuras contra Greta Thunberg invadiram as redes sociais, nomeadamente contra os seus pais, que a apoiam incondicionalmente, como se a manipulassem, e contra ela própria, pela emotividade de que deu mostras – alguns chamaram-lhe ódio! – nas Nações Unidas, ao acusar os dirigentes mundiais do pouco ou nada que fizeram a favor do clima, quando o tempo se está a esgotar e se torna cada vez mais difícil conseguir em tempo útil – doze anos, segundo o IPCC – a redução de pelo menos 50% nas nossas emissões de anidrido carbónico, e do limite do aquecimento global em 1,5 a 2 graus centígrados.
Seria muito moroso referir a avalancha de críticas que a jovem sueca, agora com 16 anos de idade, tem recebido. Até as suas palavras nas Nações Unidas, "you have stolen my dreams and my childhood" (“vocês roubaram os meus sonhos e a minha infância”) são por muitos consideradas impossíveis na boca de uma adolescente e, portanto, da autoria de gente bastante suspeita “que a manipula e dela se aproveita”, com os seus pais à cabeça!
É evidente que ela parece excessiva, o que cola com a sua condição de autista, mas também com a sua faixa etária. Uma adolescente em choque com a injustiça do mundo... Já vimos isso tantas vezes! A luta pela salvação do planeta e da espécie humana parece-me suficientemente heróica para a entusiasmar e para congregar uma adolescente invulgarmente culta e, com ela, uma geração inteira!
Porque é que uma jovem de 16 anos é incapaz de dizer o que ela disse?! Tive alunos e alunas pouco mais velhas que eram capazes de raciocinar e ter opiniões tão maduras como estas. Não seria uma maioria, mas a Greta não faz parte da maioria. Leia-se o livro "A nossa casa está a arder", editado pelos pais dela e com textos dela e da sua irmã, Beata, e aí se percebe realmente as circunstâncias educativas e comportamentais em que se insere a sua formação.
Esta jovem está a dar lições de militância às massas indiferentes deste planeta. Onde alguns apenas vêm ódio, eu vejo amor pela Terra e pelas suas criaturas. Onde a acusam de ser manipulada, vejo a sua coragem de, sem quaisquer vantagens materiais, ir contra o sistema miserável que nos rege que só vê cifrões! Manipulação, sim, mas dos Trump, Bolsonaros, Johnson, dos emires do petróleo do mundo inteiro! Onde a acusam, vejo apenas o despeito e a cobardia de quem nada faz pela nossa Casa comum, nem nada quer fazer!