sábado, 28 de dezembro de 2019



ARTE E ICONOGRAFIA DA VIDA E DA MORTE

Carlos Rodarte Veloso

Publicado em Artison, Nº 9, 2019, Revista online do 
Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa

As artes figurativas, isto é, a pintura, a escultura e as artes aplicadas, exigem dos seus estudiosos – historiadores da arte e das mentalidades, conservadores e restauradores do património, e todos os profissionais que de alguma forma lidam com objectos artísticos – a observação e identificação dos temas representados através de duas disciplinas auxiliares, a Iconografia e a Iconologia, desde as suas origens renascentistas muitas vezes confundidas uma com a outra.
No entanto, o grande historiador da Arte que foi Erwin Panofsky, distinguiu-as na sua obra “Estudos de Iconologia”, publicada em 1939. Para ele, Iconografia era a descrição mais imediata do assunto representado numa obra de arte, enquanto a Iconologia aprofundava o seu significado.
Panofsky exemplificava com o acto de “tirar o chapéu”, costume masculino hoje já caído em desuso. Num primeiro momento, (Iconografia), o homem descobre a cabeça, retirando o chapéu. Num segundo momento (Iconologia), identifica-se tal hábito como um acto de cortesia, “resquício do cavalheirismo medieval: os homens armados costumavam retirar os elmos para deixarem claras as suas intenções pacíficas“[1].
Sendo assim, é fundamental o conhecimento dos costumes quotidianos e o estado das mentalidades nas diversas épocas, mormente naquela a que pertence o universo do artista em causa, para se compreender as representações simbólicas que produziu.
No livro citado, Panofsky explicita as suas ideias sobre os três níveis da compreensão da obra de arte:
“Primário, aparente ou natural: o nível mais básico de entendimento, que consiste na percepção da obra na sua forma pura. Tomando-se, por exemplo, a pintura da Última Ceia de Leonardo da Vinci, no primeiro nível o quadro poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa. Este primeiro nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural.
Secundário ou convencional: Este nível avança um degrau e traduz a equação cultural e o conhecimento iconográfico. Por exemplo, um observador do Ocidente entenderia que a pintura dos treze homens sentados à mesa representaria a “Última Ceia de Cristo com os Apóstolos” [2].
  

Fig. 1 - Leonardo da Vinci, “Última Ceia”, Milão

Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): este nível leva em conta a história pessoal, técnica e cultural para entender uma obra de arte. Parece que a arte não é um incidente isolado, mas um produto de um ambiente histórico.”
Por que motivo teria então Leonardo da Vinci pintado na extensa parede frontal do refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, em tamanho natural, as treze personagens evangélicas que, em vez de revelarem Judas como o apóstolo traidor – como era típico até então – manifestam magistralmente a dúvida que corrói a assembleia, o clima de suspeita que se instala, decerto bastante semelhante àquele que imperava nas várias cortes das cidades-estados italianas, nomeadamente na de Ludovico Sforzza, mecenas e protector de Leonardo? De facto, os homicídios políticos por envenenamento eram então comuns na Itália das repúblicas e dos principados, especialmente em banquetes. Por outro lado, a presença quase carnal dos doze apóstolos e de Cristo em face dos monges reunidos numa refeição, dramatiza especialmente este momento fundador do sacramento mais sagrado da Igreja católica, a Eucaristia.
A Iconografia e a Iconologia não se limitam à descrição e interpretação das imagens históricas ou simplesmente míticas, mas estudam também três categorias especiais de representação, que auxiliam a sua identificação e interpretação: as Alegorias, os Símbolos e os Atributos.
As Alegorias, representações que materializam ideias abstractas, como a Ira, a Bondade, a Guerra, o Ciúme e tantas outras, sempre assumindo a forma de homens ou mulheres consoante o género da abstracção: a Virtude como mulher, o Patriotismo como homem.
Os Símbolos, que são insígnias, emblemas e outros sinais convencionais relacionados com a respectiva ideia. A Estrela de David, a Cruz de Cristo, o Crescente muçulmano, a Esfera Armilar, a Coroa imperial...
Os Atributos, muito associados aos elementos anteriores, elementos gráficos que caracterizam figuras históricas ou lendárias, sacras ou profanas, caso de Jesus menino ao colo da Madonna, das setas cravadas no corpo nu de S. Sebastião ou a coroa de louros e a venda no olho cego de Camões.
Ferramentas essenciais no estudo e divulgação das obras de arte, a Iconografia e a Iconologia vêm-se tornando cada vez mais presentes nos curricula dos estudos artísticos.
O estudo da imagem é fundamental na interpretação das artes plásticas, embora os mesmos temas possam ter interpretações diametralmente opostas consoante as épocas em que são produzidos e as ideologias então dominantes.Um dos casos mais interessantes pelo seu contraste, é o das representações de caveiras ou, mesmo, esqueletos, que são conhecidas desde a Antiguidade como avisos para as consequências das formas de comportamento humanas. Um mosaico de Antioquia com c. 2400 anos mostra um esqueleto reclinado legendado, tal como numa banda desenhada moderna, pela frase em Grego, “sê feliz, aproveita a vida”. 
Também na Antiga Roma, a representação de grupos de esqueletos a dançar, ou caveiras acompanhadas de objectos que simbolizam a efemeridade da vida, são convites ao “carpe diem”, isto é, ao gozo dos prazeres dos sentidos, ou seja, da vida, antes que a morte tudo venha destruir. Há aqui um convite ao prazer, de forma alguma considerado pecaminoso na cultura romana pagã. Assim, o mais célebre dos vestígios dessa ideologia da sensualidade, claramente epicurista, está representada numa luxuosa taça de prata esculpida com um friso de esqueletos dançantes, destinada ao vinho e encontrada nas ruínas da villa romana de Boscoreale, próximo de Pompeia que, tal como a cidade do Vesúvio, foi destruída durante a erupção do ano 79 d.C.[3]


Fig. 2 - Museu de Nápoles - Taça de prata de Boscoreale, Pompeia

Com o triunfo do Cristianismo e a sua recusa sectária do prazer, a arte medieval passa a englobar mensagens cuja forma, sendo semelhante à da Antiguidade – de novo esqueletos dançantes ou caveiras, associadas a velas apagadas, relógios, livros, instrumentos musicais, objectos científicos e de luxo – remete para a recusa pura e simples do prazer, única forma considerada segura de evitar a danação eterna, o Inferno. Agora esta figuração macabra aponta para as coisas vãs da vida – a “vãdade”, ou seja, a vaidade a que chamam Vanitas  – e tem o seu triunfo a partir 1347, quando a Peste Negra começa a assolar a Europa. As cenas que antes convidavam ao prazer, são agora denominadas “danças macabras”, arrastando num turbilhão infernal humildes e poderosos, reis e papas, guerreiros e monges, e todas as classes sociais e sexos.


Fig.3 - Guyot Marchant, “Dança macabra”, 1486
(BnF, domínio público)

 Essa associação entre a Morte e o Poder não poderia ser mais transparente do que no quadro de Holbein, “Os Embaixadores” que ostenta, em primeiro plano, uma anamorfose – imagem disfarçada e deformada   – da Vanitas, uma caveira que só pode ser evidenciada mediante o uso de um cilindro óptico funcionando como lente. Em segundo plano, os símbolos do Poder, da Ciência e das Artes – e os próprios embaixadores –  como se vê, armadilhas para perder as pobres almas dos pecadores, sejam eles poderosos senhores, estudiosos, teólogos, frades... sendo a Ciência, tal como a Beleza, uma das portas do Inferno.
Outros exemplos se poderão apontar, uns mais macabros que outros, mas nos séculos XVI e XVII, ensanguentados por contínuas guerras religiosas, é especialmente arrepiante “O Triunfo da Morte” de Bruegel o Velho. O quadro de Pieter Claesz, “Vanitas”, tema recorrente da contraditória condição humana, é um bom representante dessa tendência, que apresenta inúmeras variantes, que também podem ser integrados na classificação de “naturezas mortas”.
As “capelas de ossos”, totalmente revestidas de ossos, de que há vários excelentes exemplos em Portugal, são matéria abundante da condenação da Vanitas, embora especialmente votadas aos espaços religiosos monacais onde constituiam matéria de reflexão para a aspiração ascética a uma “boa morte”[4].  


Fig.4 - Campo Maior, “Capela de Ossos” (Foto Carlos R. Veloso)

Aliás, a presença de uma caveira, também símbolo da penitência, é atributo de diversos santos, como S. Jerónimo, S. Francisco de Assis, S. Francisco Xavier, Santa Maria Madalena, S. Bruno, e tantos outros.
Também no intradorso do monumento funerário do bispo de Miranda D. Manuel de Moura Manuel, na Capela de Nossa Senhora da Penha de França, em Vista Alegre, obra do escultor barroco Claude Laprade, sobressaem seis caveiras cobertas com tiara, chapéu cardinalíceo, mitra, coroas imperial e real e um elmo, representando os poderes espirituais e temporais, num modo claramente paralelo ao das representações da Vanitas[5].






Figs.5-6 - Túmulo de Vista Alegre e pormenor com representações da “Vanitas”
(Fotos Carlos R. Veloso)

Sempre e sempre, a lembrança da morte inevitável, a influenciar os comportamentos humanos, tanto pela busca do prazer enquanto é tempo, como pela preparação de uma tão boa e virtuosa morte quanto humanamente possível.

BIBLIOGRAFIA
PANOWSKY, Erwin – Estudos de Iconologia. Temas humanísticos na arte do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1986.
VELOSO, Carlos – As capelas de ossos em Portugal, “speculum mortis” no espectáculo barroco”. Coimbra: Livraria Minerva, 1993.
XAVIER, Pedro Amaral – “Imagens da morte na arte (dos finais da Idade Média ao Barroco”, COELHO, António Matias (coord.) – Atitudes perante a morte (Actas do congresso homónimo na Chamusca). Coimbra: Livraria Minerva, 1991, pp. 13-41.




[1] Panowsky, 1986, 19-20.
[2] Ibidem, 22.
[3] XAVIER, 1991, 18-20.
[4] VELOSO, 1993, 8-12.
[5] XAVIER, 1991, 39-41.

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