quinta-feira, 18 de abril de 2019


COIMBRA, 1969. A CRISE ESTUDANTIL QUE SEMEOU O FUTURO
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 18 de Abril de 2019

Fez no dia 17 cinquenta anos, iniciou-se em Coimbra um dos mais expressivos movimentos estudantis portugueses de todos os tempos, cuja dinâmica conseguiu sacudir as bases do próprio regime marcelista, último estertor do “Estado Novo”, então em fase de pseudoliberalização.
Como não há bem que sempre dure, a inauguração, em 17 de Abril de 1969 do novo edifício das Matemáticas da Universidade, levou a Coimbra o anedótico Presidente da República, Américo Thomaz, o ministro da educação, José Hermano Saraiva e toda uma corte de dignitários, numa descarada operação de propaganda, honrada com guarda de honra militar e muitos agentes policiais à paisana dispersos pela multidão.

Comício para as eleições para a A.A.C. nos Gerais da Universidade
A recém conquistada gestão estudantil da Academia foi aproveitada, como devia, por Alberto Martins, o presidente eleito da A.A.C., para pedir a palavra em nome dos estudantes, deixando Américo Tomás visivelmente atrapalhado pelo inesperado da situação que assim rompia com todos os protocolos do “respeitinho” que desde 1933 era imposto ferreamente ao país. No entanto, aparentemente assentiu, para depois do próximo orador.
Este verdadeiro teste à autoproclamada “abertura” do regime, falhou estrondosamente apenas uns minutos depois, retirando-se apressadamente todo aquele magnífico ramalhete de homens públicos, visivelmente acobardados, debaixo de um concerto de protestos, logo transformados em insultos, sendo “fantoches” o mais ouvido. Era uma cena verdadeiramente surrealista nesse Portugal atento, venerador e obrigado a que estávamos habituados.
É claro que a nova face “liberal” do “Estado Novo” era pura fachada e tal humilhação não podia ser tolerada… Nessa mesma noite o Presidente da Associação Académica, que acompanhei com outros colegas à saída do edifício, foi preso pela polícia política que aí o esperava e levado para a sede da PIDE. Aos poucos, a notícia correu as Repúblicas de Coimbra e muitos estudantes e populares juntaram-se à porta do edifício, esperando muito liricamente a libertação do dirigente preso. Foi só uma questão de tempo, pois de madrugada tinha lugar a primeira e violentíssima carga da polícia de choque, acompanhada por cães manifestamente ferozes contra toda a pequena multidão que aguardava um bem diferente desenlace.

Comício no ginásio da A.A.C.
Devo dizer que inaugurei nessa noite a mais magnífica corrida da minha vida, decerto merecedora de ser cronometrada. Nem todos tiveram a minha sorte – ou a minha velocidade – e foram muitos os feridos, até populares, especialmente o dono de um café bem conhecido da comunidade estudantil, que ficou afectado para sempre, tal a brutalidade com que foi agredido com os cabos metálicos dos bastões daqueles autênticos animais enlouquecidos. Dizia-se que estavam drogados para “melhorar” a performance, e eu até acreditei e acredito nisso, testemunha que fui da sua violência…
A manhã seguinte exigia que toda a gente fosse avisada e todos nós, que tínhamos vivido aqueles momentos históricos, nem nos deitámos e fomos para as diversas faculdades logo às primeiras horas do dia, exortar à interrupção das aulas e à reunião em Assembleia Magna para reagir contra a prisão do Alberto Martins. Para isso, entrámos em todas as aulas em funcionamento e tentámos, muitas vezes debalde, convencer os professores a dispensarem os nossos colegas. Na maior parte dos casos houve que enfrentar esses professores e falar directamente com as turmas, tentando convencer os alunos a abandonar as instalações, no que tivemos inesperado sucesso.

Convívio nos jardins da A.A.C. com declamação de poesia de protesto

Eu próprio entrei numa aula de Medicina de uma turma mais adiantada e, embora intimamente aterrorizado, tive que enfrentar a fúria de um docente escandalizadíssimo com o meu atrevimento. Esse foi um desses momentos, que começaram a modificar a minha maneira de sentir e de ver o mundo. A verdade é que encontrei as palavras – de que não me lembro – para enfrentar o professor e convencer os meus colegas a abandonar a sala e a juntarem-se ao mar de gente que gradualmente foi engrossando para decidir a resposta colectiva que se impunha.
E a resposta pertence já à História de Coimbra, da Universidade e de Portugal. Aqueles filhos de burguesia, muitos deles meninas e meninos mimados, habituados à satisfação dos menores caprichos, decretaram massivamente o luto académico e a greve às aulas até que fosse devolvida a liberdade ao colega preso.
É conveniente esclarecer que as consequências deste acto de rebelião poderiam levar – e levaram, eu que o diga! – ao final de quaisquer esperanças de sucesso no plano de estudos iniciado e que, no meu caso, começavam a revelar algum início de êxito…
Mas o colega continuou preso e depressa foi acompanhado, na prisão, por outros dirigentes associativos, e à greve às aulas seguiu-se, com uma inacreditavelmente alta adesão, a greve aos exames e, tão admirável como inesperada, a solidariedade da população de Coimbra perante novas e brutais cargas policiais, a prisão de mais de duzentos estudantes, as sevícias sobre grande número deles, o corte de bolsas de estudo, a expulsão de casas académicas, as acusações de “comunismo” contra os representantes dos estudantes…
A greve às aulas, continuada com a greve aos exames, atingindo os mais altos valores de adesão jamais atingidos; as ameaças torvas de José Hermano Saraiva garantindo, na Televisão, que a ordem seria mantida; a solidariedade da população de Coimbra perante a violência policial — de que o mesmo senhor, depois, negou a existência! — e, além da repressão já referida, a incorporação no serviço militar de muitos dos dirigentes académicos, tudo o que, no fim de contas, sempre caracterizou os fascismos…
Ironicamente, ao chamar para as fileiras, como “castigo”, algumas centenas de jovens universitários, quase todos dirigentes estudantis, o Governo deu autêntico “tiro no pé”. A aliança destes jovens oficiais milicianos com os também jovens oficiais do quadro das Forças Armadas que foram seus instrutores, viria a engrossar a revolta que originou o abortado levantamento do Regimento das Caldas da Rainha, em 16 de Março, e o vitorioso 25 de Abril de 1974!
É pois mais uma oportunidade para relembrar a quem já quase esqueceu, e de dar a conhecer às jovens gerações, o papel da Academia de Coimbra no derrube do “Estado Novo”. Inspirado, como todos os movimentos estudantis da época, na revolta estudantil de Maio de 68 em França, o movimento conimbricense de 17 de Abril enfrentou com êxito condições muito mais adversas do que as que os estudantes franceses conheceram e contribuiu poderosamente para a verdadeira revolução cultural que transformou um país patriarcal e retrógrado numa nação do século XX.

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