quinta-feira, 25 de abril de 2019



A PROPÓSITO DE ABRIL.
OS LIVROS E A CENSURA EM PORTUGAL

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 25 de Abril de 2019

Ao comemorarmos mais um aniversário da Revolução de Abril de 1974, lembro a frase dos saudosistas dos “bons velhos tempos” do Estado Novo: “A culpa é do 25 de Abril…”, a propósito e a despropósito das greves, das ocupações por populares de casas desocupadas, das nacionalizações de empresas, das numerosas manifestações, da “má criação da juventude”, de tudo e mais alguma coisa… Esses saudosistas, repetiam inconscientemente as queixas comuns a todas as épocas de transformação em todos os países do mundo e davam a ideia de que Portugal mergulhara no pior dos infernos, depois dos bons velhos tempos do Estado Novo…

 
   Esses “bons velhos tempos”, ainda vivos na memória de todos os portugueses com mais de 55 anos, eram o tempo em que os privilégios de alguns se sobrepunham aos direitos de quase todos, em que toda a informação, censurada implacavelmente, era obrigada a ocultar tudo quanto pudesse revelar a gravíssima crise social, económica e moral vivida pela maioria dos portugueses, “pobrezinhos mas muito honestos”, como era debitado pela propaganda da Situação… Famílias que passavam fome, arbitrariedades nos empregos e nas escolas, bairros de lata, violência doméstica mas, principalmente, policial, suicídios, carência de todos os meios de bem-estar que já eram vulgares no mundo ocidental, assistência médica bem pior que a actual, apesar dos cortes no Serviço Nacional de Saúde perpetrados pelos governos protectores da iniciativa privada e em desfavor da pública… E uma emigração que procurava fora do nosso amoroso jardim, condições simplesmente humanas.
A guerra colonial arrastava-se penosamente, com grande número de baixas, anunciadas, na sua maioria, pela informação oficial, como “acidentes de viação”! O próprio regime marcelista, por muitos visto como uma esperança de liberalização e modernização do País, em breve se revelava o perfeito herdeiro do salazarismo pela intransigência com que tratava os mais graves problemas nacionais: manutenção da censura e da polícia política com os consequentes atropelos às liberdades individuais; interdição da greve e das manifestações; fortíssimas limitações à acção da oposição democrática mesmo nos períodos (pseudo) eleitorais; recusa absoluta do diálogo com os movimentos de libertação africanos, continuando a apelidá-los de “terroristas”; controle ideológico do funcionalismo público; profunda desconfiança perante tudo quanto viesse “de fora”, conotado com a “subversão internacional a soldo de Moscovo ou Pequim”; reticências perante a simples ideia de progresso, não “apenas” social mas até, entre os “ultras” do regime, científico e tecnológico! …
           Mas a verdade é que Revolução de Abril, com todas as suas contradições e atravessando fases mais ou menos polémicas e contraditórias, mesmo com alguns excessos que lhe podem ser assacados, foi o movimento revolucionário que menos vítimas causou em toda a História do Mundo… Embora as sementes de violência deixadas em África pela intransigência de Salazar tenham provocado uma mortífera e longa guerra civil em Angola e Moçambique, foi feita a descolonização possível nas circunstâncias dramáticas herdadas do anterior regime e, apesar de tudo, o futuro das nossas relações com as ex-colónias parece assegurado em bases bastante sólidas. O caso da Índia melhor demonstra a cegueira desse homem dito providencial, que opunha às forças poderosas e modernas da União Indiana, soldados sem preparação nem armas, com uma única ordem: “combater até à morte”!
            Quem recordar imparcialmente o que era a vida quotidiana sob o “Estado Novo”, terá que reconhecer que o País conheceu, passada a época de transição para o Estado de Direito, um progresso social, técnico e científico sem paralelo na nossa História. O nível de vida dos portugueses é hoje incomparavelmente melhor do que na época marcelista e os principais problemas que agora defrontamos são comuns à totalidade dos países desenvolvidos.
            Tudo isto não quer dizer que estejam cumpridas as promessas de Abril. Tudo isto não significa que em todo o País e, até, em instituições estatais, seja plena a democraticidade das relações entre as chefias e os subordinados. A generosidade da Democracia portuguesa não segregou os seus antigos inimigos, a muitos permitindo recuperar lugares de relevo semelhantes aos que detinham nos “bons velhos tempos”. Bom seria que o regular funcionamento dessas instituições não fosse afectado pelos ideais antidemocráticos dessa gente e que em pleno regime democrático os cidadãos não sofressem de novo as arbitrariedades e restrições dessa época negra da nossa História… Aliás, o muito actual ressurgir da ideologia fascista é um grave sintoma da crise mundial, em que a falta de memória histórica se revela imensamente preocupante e ameaçadora para a Democracia e a paz mundial.
            É claro que a grave crise internacional nos prejudicou, mas o mesmo aconteceu a outros países incomparavelmente mais poderosos em todos os aspectos. Em Abril de 74 estávamos mais de meio século atrasados em relação ao resto da Europa. Continuamos atrasados, mas esse atraso é hoje bem menor, nalguns casos ultrapassando mesmo alguns dos nossos parceiros europeus, nos “bons tempos” de Salazar vistos como algo parecido com o Paraíso.
            O actual modelo de governo, baseado na maioria parlamentar das forças de Esquerda, cujo inegável sucesso económico e social tem sofrido, apesar disso, os ataques impiedosos, as mentiras e os preconceitos desses ressabiados, como se estivéssemos num novo “PREC” (!), é ainda mimoseado com essa novidade admirável, incentivada pelas redes sociais, que são as “fake news”…
Por isso, e porque a informação livre é constantemente envenenada pelos grupos sociais e políticos desejosos de recuperar o controlo com que os vários governos de Direita parcialmente destruíram as conquistas de Abril, vou falar um pouco de livros, o meio de comunicação e a arma que, em papel ou em formato digital, representa o maior legado da humanidade.
Manuscrito ou impresso, o livro iluminou as mentes, respondeu às angústias da humanidade, desafiou o despotismo. Também a prepotência o tentou usar mas, as mais das vezes, preferiu censurá-lo, queimá-lo até! Recordemos as várias destruições da Biblioteca de Alexandria, ora por Cristãos, ora por Muçulmanos, o gigantesco auto-de-fé nazi de Maio de 1933, em Berlim, quando foram queimados 25 mil livros considerados antigermânicos e, embora em menor escala, no nosso Portugal de “brandos costumes”, o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1964…
São episódios dispersos, mas com evidentes afinidades ideológicas. Seus denominadores comuns, a intolerância mais cega e o pavor da liberdade de expressão do pensamento.
Neste aniversário da reconquista da Liberdade, bem podemos recordar a luta quotidiana de escritores, jornalistas, leitores, para comunicarem ou receberem a informação a que tinham direito sobre o estado do Mundo e do País. A sua luta pela Liberdade de Expressão! Os truques dos escritores e jornalistas para passarem a sua mensagem, sempre nas entrelinhas, com receio da censura, que cortava impiedosamente todas as ideias que parecessem subversivas.
E o que era subversivo? Era tudo aquilo que chamasse “os bois pelos nomes”, como diz o Povo. Era qualquer crítica, por pequena que fosse, a quaisquer pessoas ou órgãos do Estado, as polícias e o exército incluídos. Era falar das dificuldades das pessoas, tanto económica como socialmente, era falar de política, excepto se fosse para louvar as medidas do Governo… Temas tabu eram o suicídio, a violência doméstica, era falar das Colónias e de Guerra Colonial, quando as expressões autorizadas eram “Províncias Ultramarinas” e “Guerra do Ultramar”…
Isto nas notícias, porque os livros eram igualmente sujeitos a restrições graves, que procuravam criar todas as dificuldades à edição de textos livres e críticos, tanto no Romance, como na Poesia ou no Teatro... Especialmente na História e restantes Ciências. E nas letras de canções: não só tinham que ser tão bem-comportadas como irrepreensíveis “moralmente”. Lembremos os cantores da Liberdade, Zeca Afonso acima de todos, que nem a prisão nem as torturas calaram.
Procuremos então reflectir sobre o que ganhámos, que foi muito, e com o que perdemos, que foi, principalmente, a miséria mais extrema, miséria que nem ousava abrir a boca para protestar… No fundo, o que perdemos foi apenas, uma certa “paz”, a paz dos cemitérios. Aí está tudo sempre bem, e os mortos são as pessoas mais bem comportadas do mundo. Mesmo quando cheiram mal!

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