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CAMÕES E O SEU TEMPO// Por Carlos Rodarte Veloso
A obra de Camões é uma fonte importantíssima para a compreensão do momento histórico que então se vivia em Portugal, o “Século de Ouro das Descobertas”. Muito especialmente “Os Lusíadas”, reflexo das luzes e das sombras dessa época cheia de contradições, ensina com os erros e com as virtudes e, acima de tudo, encanta com a mensagem de beleza intemporal que transmite.
Camões sentiu, e viveu, o que é muito mais importante, esse patamar entre o apogeu de uma época e o início da sua decadência. Essa vivência do fim de uma época reflecte-se na fala do “Velho do Restelo”, quando amaldiçoa “o primeiro que no mundo / nas ondas velas pôs em seco lenho” [IV, 102], depois de ter lamentado “a glória de mandar” e “a vã cobiça” [IV, 95] que a tantas desgraças dera aso.
É possível que Camões se identificasse parcialmente com este “nautocéptico”, pelo menos no apelo à luta contra “o Ismaelita”, o Mouro [IV,100], implícita no final do Poema, quando exorta o Rei — D. Sebastião — a seguir o modelo de Alexandre, “rompendo nos campos de Ampelusa / os muros de Marrocos e Trudante” [X,156] aqui tão perto, em vez de buscar a glória em terras tão remotas. Com todas as suas consequências…
No Canto Segundo, que representa o bom acolhimento dos Portugueses em Melinde depois da intervenção de Vénus para neutralizar as sinistras manobras de Baco em Mombaça, prepara-se o ambiente para aquilo que será uma constante d'Os Lusíadas : integrada na narrativa da História de Portugal, que se desenrola do Canto Terceiro ao Quinto, a intervenção divina a favor dos Portugueses — mesmo através de divindades pagãs — acentua o carácter maravilhoso e sobrenatural da empresa, de todas as empresas lusíadas, explicando assim como tão pouca gente tanto mundo tomara…
E é, precisamente, nesta mistura do Sagrado com o Profano, do Catolicismo mais dogmático com o confessado gosto pelos Mitos pagãos, que Camões melhor revela as suas contradições, que são as contradições da época em que vive, nascidas sob a pesada sombra da Inquisição a qual, mesmo quando não intervém directamente sobre a Literatura e a Arte, mutilando-a, tem poder bastante sobre as mentes para nelas provocar uma insidiosa auto-censura!
Sob ameaça, o Escritor multiplica-se em ardis para transmitir a sua mensagem com um mínimo de risco. Tem que se ler nas entrelinhas, bater em astúcia o censor, e muitos de nós, principalmente os viveram antes de 1974, tiveram então oportunidade de decifrar as verdadeiras charadas com que tantos jornalistas e escritores tentaram romper o bloqueio exercido pelo “Estado Novo” sobre toda a informação…
Mas voltemos ao tempo de Camões, à sua Obra e à Arte então praticada… Estamos a falar de uma época de Humanismo, de descoberta do Homem, não apenas do Cristão e Ocidental — o Descobridor —, mas também do Outro — o Descoberto, que também “descobre” o seu “descobridor”...
É um tempo de continuidade e de ruptura: de um lado o “saber de experiência feito” de que os Portugueses foram os precursores, do outro os escritos dos Antigos, com a sua autoridade secular e os seus erros; de um lado a liberdade de espírito e o livre-arbítrio arvorados em bandeira do Homem Renascido; do outro o fogo da Inquisição, o terror da denúncia, a suspeita da heresia, a Censura dos textos e dos pensamentos; de um lado a propaganda de uma Europa triunfante e segura de si; do outro a real insegurança colectiva de um mundo dilacerado pela guerra religiosa, que nem a sagrada Roma respeita…
Nada disto é alheio à expressão literária e artística e, assim, Literatura e Arte reflectem essas realidades contraditórias. Camões é bem um expoente dessa inquietação permanente e são disso prova os seus belíssimos sonetos de Amor, os mais belos da nossa Língua: o “contentamento descontente” de quem “se engana mais com desenganos” é bem a medida das desmedidas contradições de um mundo que, apesar de tudo, procura “ver claramente visto” os fenómenos da natureza como o “Fogo de Sant’Elmo” ou a tromba de água…
A Arte da época de Camões é, assim, também ela, reflexo de um mundo “desordenadamente ordenado”, já bem longe das formas delirantemente vegetais do Manuelino do início do século, um Gótico que extravasava todas as medidas … longe também da elegância e do equilíbrio do Primeiro Renascimento português que se lhe seguira sob a égide de D. João III…
O que imperava agora era a observância de regras, na Religião e na Arte. Não apenas as regras artísticas divulgadas nos Tratados de Arquitectura, mas também as regras religiosas, especialmente para as Artes Plásticas, de acordo com os ideais da Contra-Reforma, resposta Católica à Reforma Protestante. Estas, em parte já seguidas, especialmente desde o estabelecimento da Inquisição em Portugal, eram decretadas quase trinta anos depois, na última sessão do Concílio de Trento…
A relativa liberdade criativa que antes se vivia, era agora substituída por um conjunto de regras rígidas que viriam a prejudicar gravemente a expressão original dos nossos artistas: “Como à Casa de Deus só convém a santidade reprovam-se na generalidade as imagens religiosas de feição profana”, sendo de evitar detalhes demasiado minuciosos ou o excesso de ornamentação, bem como “imagens impudicas ou lascivas, não devendo a recomendável honesta perfeição de rostos e corpos, dar azo a uma formosura dissoluta ”… Era a Censura a impor-se, e é notável o número de obras sobreviventes, apesar das muitas destruídas, mutiladas ou repintadas…
A época da maturidade de Camões é, assim, marcada pelo conflito entre o optimismo humanista e os nobres ideais de tolerância e liberdade que marcaram o período renascentista, e o pessimismo, a intolerância e repressão correspondentes ao espírito contra-reformista… repressão que era, muitas vezes, como vimos, auto-repressão pura e simples. Pois não se martiriza na carne o nosso Francisco de Holanda, amigo pessoal do grande Miguel Ângelo e arauto em Portugal do Maneirismo romano, ao representar Eros e Afrodite, símbolos máximos do Amor físico, sob a forma de esqueletos? (Figura 1 – “Afrodite e Eros”, de Francisco de Holanda). Era o desejo de expiação dos excessos do passado — reais ou imaginários — típico da crise de consciência que a Cristandade então vive, que alimenta um gosto muito especial pelo macabro como forma de preparar a “boa morte”, que se vai prolongar nos séculos seguintes e tem o seu apogeu com o Barroco.
E, no entanto, Camões, neo-platónico como Holanda, não hesita em glorificar o corpo humano — na pessoa de Vénus¬ — [II, 36-37] e o amor físico como prémio do heroísmo [Canto IX] – (Figura 2 – “A Ilha dos Amores”, de José Malhoa), o que contrasta com os seus “sonhados e vãos contentamentos” da Canção IX, Junto de um seco, fero e estéril monte…
Esse conflito, que é a contradição assumida como sistema, é a própria essência do Maneirismo, corrente artística durante muito tempo considerada decadente e que tanta incidência teve nas Artes Visuais, como na Filosofia e na Literatura, de que é bom exemplo a obra de Camões.
A fria Razão soçobra perante os humanos desvarios, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e a História é uma máquina implacável, mesmo quando as simples aparências parecem tranquilizantes. Contudo, tal como os deuses pagãos, pode ser invocada para exorcizar as ameaças do presente, o medo do futuro.
É a própria História de Portugal pano de fundo d'Os Lusíadas , narrada por Vasco da Gama a pedido do rei de Melinde, vivamente impressionado com os feitos dos Portugueses [II, 109]. É precisamente aqui que se prepara a narração da epopeia lusíada, os antecedentes heróicos e a genealogia dos nautas. É aqui que a epopeia se define e surge o Herói colectivo, o Povo português, já anunciado nas primeiras estâncias do Poema.
E a propósito da História como forma de exorcismo, recordemos o papel fundamental d'Os Lusíadas e de Camões durante os períodos mais negros da vida nacional, perante a ocupação estrangeira ou as agressões desde então sofridas por Portugal. Erguidos como bandeira da identidade nacional, bem merecem ser conhecidos e divulgados neste tempo em que a globalização, com os seus pressupostos de “normalização” parece ameaçar a afirmação cultural das nações do mundo inteiro.
Ler, conhecer, estudar a obra de Camões, imperativo da razão, é-o também do sentimento de ser português. Com todas as consequências.
Camões sentiu, e viveu, o que é muito mais importante, esse patamar entre o apogeu de uma época e o início da sua decadência. Essa vivência do fim de uma época reflecte-se na fala do “Velho do Restelo”, quando amaldiçoa “o primeiro que no mundo / nas ondas velas pôs em seco lenho” [IV, 102], depois de ter lamentado “a glória de mandar” e “a vã cobiça” [IV, 95] que a tantas desgraças dera aso.
É possível que Camões se identificasse parcialmente com este “nautocéptico”, pelo menos no apelo à luta contra “o Ismaelita”, o Mouro [IV,100], implícita no final do Poema, quando exorta o Rei — D. Sebastião — a seguir o modelo de Alexandre, “rompendo nos campos de Ampelusa / os muros de Marrocos e Trudante” [X,156] aqui tão perto, em vez de buscar a glória em terras tão remotas. Com todas as suas consequências…
No Canto Segundo, que representa o bom acolhimento dos Portugueses em Melinde depois da intervenção de Vénus para neutralizar as sinistras manobras de Baco em Mombaça, prepara-se o ambiente para aquilo que será uma constante d'Os Lusíadas : integrada na narrativa da História de Portugal, que se desenrola do Canto Terceiro ao Quinto, a intervenção divina a favor dos Portugueses — mesmo através de divindades pagãs — acentua o carácter maravilhoso e sobrenatural da empresa, de todas as empresas lusíadas, explicando assim como tão pouca gente tanto mundo tomara…
E é, precisamente, nesta mistura do Sagrado com o Profano, do Catolicismo mais dogmático com o confessado gosto pelos Mitos pagãos, que Camões melhor revela as suas contradições, que são as contradições da época em que vive, nascidas sob a pesada sombra da Inquisição a qual, mesmo quando não intervém directamente sobre a Literatura e a Arte, mutilando-a, tem poder bastante sobre as mentes para nelas provocar uma insidiosa auto-censura!
Sob ameaça, o Escritor multiplica-se em ardis para transmitir a sua mensagem com um mínimo de risco. Tem que se ler nas entrelinhas, bater em astúcia o censor, e muitos de nós, principalmente os viveram antes de 1974, tiveram então oportunidade de decifrar as verdadeiras charadas com que tantos jornalistas e escritores tentaram romper o bloqueio exercido pelo “Estado Novo” sobre toda a informação…
Mas voltemos ao tempo de Camões, à sua Obra e à Arte então praticada… Estamos a falar de uma época de Humanismo, de descoberta do Homem, não apenas do Cristão e Ocidental — o Descobridor —, mas também do Outro — o Descoberto, que também “descobre” o seu “descobridor”...
É um tempo de continuidade e de ruptura: de um lado o “saber de experiência feito” de que os Portugueses foram os precursores, do outro os escritos dos Antigos, com a sua autoridade secular e os seus erros; de um lado a liberdade de espírito e o livre-arbítrio arvorados em bandeira do Homem Renascido; do outro o fogo da Inquisição, o terror da denúncia, a suspeita da heresia, a Censura dos textos e dos pensamentos; de um lado a propaganda de uma Europa triunfante e segura de si; do outro a real insegurança colectiva de um mundo dilacerado pela guerra religiosa, que nem a sagrada Roma respeita…
Nada disto é alheio à expressão literária e artística e, assim, Literatura e Arte reflectem essas realidades contraditórias. Camões é bem um expoente dessa inquietação permanente e são disso prova os seus belíssimos sonetos de Amor, os mais belos da nossa Língua: o “contentamento descontente” de quem “se engana mais com desenganos” é bem a medida das desmedidas contradições de um mundo que, apesar de tudo, procura “ver claramente visto” os fenómenos da natureza como o “Fogo de Sant’Elmo” ou a tromba de água…
A Arte da época de Camões é, assim, também ela, reflexo de um mundo “desordenadamente ordenado”, já bem longe das formas delirantemente vegetais do Manuelino do início do século, um Gótico que extravasava todas as medidas … longe também da elegância e do equilíbrio do Primeiro Renascimento português que se lhe seguira sob a égide de D. João III…
O que imperava agora era a observância de regras, na Religião e na Arte. Não apenas as regras artísticas divulgadas nos Tratados de Arquitectura, mas também as regras religiosas, especialmente para as Artes Plásticas, de acordo com os ideais da Contra-Reforma, resposta Católica à Reforma Protestante. Estas, em parte já seguidas, especialmente desde o estabelecimento da Inquisição em Portugal, eram decretadas quase trinta anos depois, na última sessão do Concílio de Trento…
A relativa liberdade criativa que antes se vivia, era agora substituída por um conjunto de regras rígidas que viriam a prejudicar gravemente a expressão original dos nossos artistas: “Como à Casa de Deus só convém a santidade reprovam-se na generalidade as imagens religiosas de feição profana”, sendo de evitar detalhes demasiado minuciosos ou o excesso de ornamentação, bem como “imagens impudicas ou lascivas, não devendo a recomendável honesta perfeição de rostos e corpos, dar azo a uma formosura dissoluta ”… Era a Censura a impor-se, e é notável o número de obras sobreviventes, apesar das muitas destruídas, mutiladas ou repintadas…
A época da maturidade de Camões é, assim, marcada pelo conflito entre o optimismo humanista e os nobres ideais de tolerância e liberdade que marcaram o período renascentista, e o pessimismo, a intolerância e repressão correspondentes ao espírito contra-reformista… repressão que era, muitas vezes, como vimos, auto-repressão pura e simples. Pois não se martiriza na carne o nosso Francisco de Holanda, amigo pessoal do grande Miguel Ângelo e arauto em Portugal do Maneirismo romano, ao representar Eros e Afrodite, símbolos máximos do Amor físico, sob a forma de esqueletos? (Figura 1 – “Afrodite e Eros”, de Francisco de Holanda). Era o desejo de expiação dos excessos do passado — reais ou imaginários — típico da crise de consciência que a Cristandade então vive, que alimenta um gosto muito especial pelo macabro como forma de preparar a “boa morte”, que se vai prolongar nos séculos seguintes e tem o seu apogeu com o Barroco.
E, no entanto, Camões, neo-platónico como Holanda, não hesita em glorificar o corpo humano — na pessoa de Vénus¬ — [II, 36-37] e o amor físico como prémio do heroísmo [Canto IX] – (Figura 2 – “A Ilha dos Amores”, de José Malhoa), o que contrasta com os seus “sonhados e vãos contentamentos” da Canção IX, Junto de um seco, fero e estéril monte…
Esse conflito, que é a contradição assumida como sistema, é a própria essência do Maneirismo, corrente artística durante muito tempo considerada decadente e que tanta incidência teve nas Artes Visuais, como na Filosofia e na Literatura, de que é bom exemplo a obra de Camões.
A fria Razão soçobra perante os humanos desvarios, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e a História é uma máquina implacável, mesmo quando as simples aparências parecem tranquilizantes. Contudo, tal como os deuses pagãos, pode ser invocada para exorcizar as ameaças do presente, o medo do futuro.
É a própria História de Portugal pano de fundo d'Os Lusíadas , narrada por Vasco da Gama a pedido do rei de Melinde, vivamente impressionado com os feitos dos Portugueses [II, 109]. É precisamente aqui que se prepara a narração da epopeia lusíada, os antecedentes heróicos e a genealogia dos nautas. É aqui que a epopeia se define e surge o Herói colectivo, o Povo português, já anunciado nas primeiras estâncias do Poema.
E a propósito da História como forma de exorcismo, recordemos o papel fundamental d'Os Lusíadas e de Camões durante os períodos mais negros da vida nacional, perante a ocupação estrangeira ou as agressões desde então sofridas por Portugal. Erguidos como bandeira da identidade nacional, bem merecem ser conhecidos e divulgados neste tempo em que a globalização, com os seus pressupostos de “normalização” parece ameaçar a afirmação cultural das nações do mundo inteiro.
Ler, conhecer, estudar a obra de Camões, imperativo da razão, é-o também do sentimento de ser português. Com todas as consequências.