segunda-feira, 30 de janeiro de 2017


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1 h
CAMÕES E O SEU TEMPO// Por Carlos Rodarte Veloso
A obra de Camões é uma fonte importantíssima para a compreensão do momento histórico que então se vivia em Portugal, o “Século de Ouro das Descobertas”. Muito especialmente “Os Lusíadas”, reflexo das luzes e das sombras dessa época cheia de contradições, ensina com os erros e com as virtudes e, acima de tudo, encanta com a mensagem de beleza intemporal que transmite.
Camões sentiu, e viveu, o que é muito mais importante, esse patamar entre o apogeu de uma época e o início da sua decadência. Essa vivência do fim de uma época reflecte-se na fala do “Velho do Restelo”, quando amaldiçoa “o primeiro que no mundo / nas ondas velas pôs em seco lenho” [IV, 102], depois de ter lamentado “a glória de mandar” e “a vã cobiça” [IV, 95] que a tantas desgraças dera aso.
É possível que Camões se identificasse parcialmente com este “nautocéptico”, pelo menos no apelo à luta contra “o Ismaelita”, o Mouro [IV,100], implícita no final do Poema, quando exorta o Rei — D. Sebastião — a seguir o modelo de Alexandre, “rompendo nos campos de Ampelusa / os muros de Marrocos e Trudante” [X,156] aqui tão perto, em vez de buscar a glória em terras tão remotas. Com todas as suas consequências…
No Canto Segundo, que representa o bom acolhimento dos Portugueses em Melinde depois da intervenção de Vénus para neutralizar as sinistras manobras de Baco em Mombaça, prepara-se o ambiente para aquilo que será uma constante d'Os Lusíadas : integrada na narrativa da História de Portugal, que se desenrola do Canto Terceiro ao Quinto, a intervenção divina a favor dos Portugueses — mesmo através de divindades pagãs — acentua o carácter maravilhoso e sobrenatural da empresa, de todas as empresas lusíadas, explicando assim como tão pouca gente tanto mundo tomara…
E é, precisamente, nesta mistura do Sagrado com o Profano, do Catolicismo mais dogmático com o confessado gosto pelos Mitos pagãos, que Camões melhor revela as suas contradições, que são as contradições da época em que vive, nascidas sob a pesada sombra da Inquisição a qual, mesmo quando não intervém directamente sobre a Literatura e a Arte, mutilando-a, tem poder bastante sobre as mentes para nelas provocar uma insidiosa auto-censura!
Sob ameaça, o Escritor multiplica-se em ardis para transmitir a sua mensagem com um mínimo de risco. Tem que se ler nas entrelinhas, bater em astúcia o censor, e muitos de nós, principalmente os viveram antes de 1974, tiveram então oportunidade de decifrar as verdadeiras charadas com que tantos jornalistas e escritores tentaram romper o bloqueio exercido pelo “Estado Novo” sobre toda a informação…
Mas voltemos ao tempo de Camões, à sua Obra e à Arte então praticada… Estamos a falar de uma época de Humanismo, de descoberta do Homem, não apenas do Cristão e Ocidental — o Descobridor —, mas também do Outro — o Descoberto, que também “descobre” o seu “descobridor”...
É um tempo de continuidade e de ruptura: de um lado o “saber de experiência feito” de que os Portugueses foram os precursores, do outro os escritos dos Antigos, com a sua autoridade secular e os seus erros; de um lado a liberdade de espírito e o livre-arbítrio arvorados em bandeira do Homem Renascido; do outro o fogo da Inquisição, o terror da denúncia, a suspeita da heresia, a Censura dos textos e dos pensamentos; de um lado a propaganda de uma Europa triunfante e segura de si; do outro a real insegurança colectiva de um mundo dilacerado pela guerra religiosa, que nem a sagrada Roma respeita…
Nada disto é alheio à expressão literária e artística e, assim, Literatura e Arte reflectem essas realidades contraditórias. Camões é bem um expoente dessa inquietação permanente e são disso prova os seus belíssimos sonetos de Amor, os mais belos da nossa Língua: o “contentamento descontente” de quem “se engana mais com desenganos” é bem a medida das desmedidas contradições de um mundo que, apesar de tudo, procura “ver claramente visto” os fenómenos da natureza como o “Fogo de Sant’Elmo” ou a tromba de água…
A Arte da época de Camões é, assim, também ela, reflexo de um mundo “desordenadamente ordenado”, já bem longe das formas delirantemente vegetais do Manuelino do início do século, um Gótico que extravasava todas as medidas … longe também da elegância e do equilíbrio do Primeiro Renascimento português que se lhe seguira sob a égide de D. João III…
O que imperava agora era a observância de regras, na Religião e na Arte. Não apenas as regras artísticas divulgadas nos Tratados de Arquitectura, mas também as regras religiosas, especialmente para as Artes Plásticas, de acordo com os ideais da Contra-Reforma, resposta Católica à Reforma Protestante. Estas, em parte já seguidas, especialmente desde o estabelecimento da Inquisição em Portugal, eram decretadas quase trinta anos depois, na última sessão do Concílio de Trento…
A relativa liberdade criativa que antes se vivia, era agora substituída por um conjunto de regras rígidas que viriam a prejudicar gravemente a expressão original dos nossos artistas: “Como à Casa de Deus só convém a santidade reprovam-se na generalidade as imagens religiosas de feição profana”, sendo de evitar detalhes demasiado minuciosos ou o excesso de ornamentação, bem como “imagens impudicas ou lascivas, não devendo a recomendável honesta perfeição de rostos e corpos, dar azo a uma formosura dissoluta ”… Era a Censura a impor-se, e é notável o número de obras sobreviventes, apesar das muitas destruídas, mutiladas ou repintadas…
A época da maturidade de Camões é, assim, marcada pelo conflito entre o optimismo humanista e os nobres ideais de tolerância e liberdade que marcaram o período renascentista, e o pessimismo, a intolerância e repressão correspondentes ao espírito contra-reformista… repressão que era, muitas vezes, como vimos, auto-repressão pura e simples. Pois não se martiriza na carne o nosso Francisco de Holanda, amigo pessoal do grande Miguel Ângelo e arauto em Portugal do Maneirismo romano, ao representar Eros e Afrodite, símbolos máximos do Amor físico, sob a forma de esqueletos? (Figura 1 – “Afrodite e Eros”, de Francisco de Holanda). Era o desejo de expiação dos excessos do passado — reais ou imaginários — típico da crise de consciência que a Cristandade então vive, que alimenta um gosto muito especial pelo macabro como forma de preparar a “boa morte”, que se vai prolongar nos séculos seguintes e tem o seu apogeu com o Barroco.
E, no entanto, Camões, neo-platónico como Holanda, não hesita em glorificar o corpo humano — na pessoa de Vénus¬ — [II, 36-37] e o amor físico como prémio do heroísmo [Canto IX] – (Figura 2 – “A Ilha dos Amores”, de José Malhoa), o que contrasta com os seus “sonhados e vãos contentamentos” da Canção IX, Junto de um seco, fero e estéril monte…
Esse conflito, que é a contradição assumida como sistema, é a própria essência do Maneirismo, corrente artística durante muito tempo considerada decadente e que tanta incidência teve nas Artes Visuais, como na Filosofia e na Literatura, de que é bom exemplo a obra de Camões.
A fria Razão soçobra perante os humanos desvarios, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e a História é uma máquina implacável, mesmo quando as simples aparências parecem tranquilizantes. Contudo, tal como os deuses pagãos, pode ser invocada para exorcizar as ameaças do presente, o medo do futuro.
É a própria História de Portugal pano de fundo d'Os Lusíadas , narrada por Vasco da Gama a pedido do rei de Melinde, vivamente impressionado com os feitos dos Portugueses [II, 109]. É precisamente aqui que se prepara a narração da epopeia lusíada, os antecedentes heróicos e a genealogia dos nautas. É aqui que a epopeia se define e surge o Herói colectivo, o Povo português, já anunciado nas primeiras estâncias do Poema.
E a propósito da História como forma de exorcismo, recordemos o papel fundamental d'Os Lusíadas e de Camões durante os períodos mais negros da vida nacional, perante a ocupação estrangeira ou as agressões desde então sofridas por Portugal. Erguidos como bandeira da identidade nacional, bem merecem ser conhecidos e divulgados neste tempo em que a globalização, com os seus pressupostos de “normalização” parece ameaçar a afirmação cultural das nações do mundo inteiro.
Ler, conhecer, estudar a obra de Camões, imperativo da razão, é-o também do sentimento de ser português. Com todas as consequências.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017


À BEIRA DO ABISMO
Carlos Rodarte Veloso

Publicado n’”O Templário” de 26-1-2017


                     E pronto, lá está o presidente da “America first”, pronto a esmagar todas as dificílimas melhorias que Obama introduziu no país agora dominado pelos seus bárbaros trogloditas que, esses sim, deveriam estar no lugar para onde no passado empurraram os “peles vermelhas”: em reservas desérticas, enfeitadas apenas com cactos, “cidades fantasmas” e com a construção de casinos, uma forma como outra qualquer de adoração do deus-dinheiro e a garantia de serem mantidos sob vigilância apertada.
                    Cultores intransigentes da xenofobia mais básica, do racismo, do machismo e do ódio à novidade, cantam agora nas ruas os “novos tempos” que se encaixam nas ideologias mais retrógradas, fazendo regredir mais de duzentos anos de progressos científico-tecnológicos e sociais para os “tempos heróicos” da útima fronteira, dos cowboys e, claro, do salve-se quem puder de uma população armada até aos dentes, sempre pronta a fazer “justiça” pelas próprias mãos.
                    Isto tudo no contexto de um discurso de ódio e de uma barreira das mentiras mais grosseiras, em defesa do isolacionismo mais patético, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, se faz a apologia de entendimentos com a Rússia quase czarista e se agride estupidamente outra grande potência mundial, a China. E como convencer quem quer que seja de que a destruição do “Estado islâmico” pode ser concretizada dentro do tal isolacionismo, com um simples toque da varinha mágica do ataque maciço de toda a tecnologia de ponta que os EUA ainda dominam?
                    E onde fica a cultura, os valores humanísticos, a simples compaixão neste quadro inquietante? Fica entregue ao livre arbítrio dos cada vez mais poderosos senhores do Capital, das multinacionais, dos comerciantes de armas, dos beneficiários dos “offshores”, dos intransigentes do petróleo, num momento em que tudo apontava para a substituição dos combustíveis fósseis por formas de energia renováveis e assim, para defesa da Natureza, da Ecologia e, em primeira e última análise, da Humanidade..
                    O pior é que os “valores” desta gente que tudo leva a crer ter falseado os resultados de eleições, em que nem sequer representam a maioria dos eleitores, estão já a contaminar outros contimentes, nomeadamente a nossa Europa, incentivando “copycats” situados na extrema direita do espectro político, caso de Marine Le Pen, o mais emblemático e ameaçador no contexto actual. Também não é de todo inocente a inesperada (?) agressividade de Theresa May, PM do Reino Unido, a atrelar o Brexit aos “conselhos” de Trump, confessadamente desejoso da destruição final da União Europeia...
                    Donald Trump pode estar sossegado, porque ninguém tem feito tanto mal à União Europeia como os seus estafados líderes, gente sem princípios, sem imaginação e sem inteligência, mais interessados em dominar os elos mais fracos da comunidade do que em criar um poderoso entendimento entre os seus membros, assim capazes de trilhar novos caminhos de esperança. Essa gente faz parte do problema e o “America first” bem pode planear os seus próprios muros da vergonha, negar as alterações climáticas, apoiar os colonatos judaicos na Palestina, desafiar este mundo e o outro e coçar regaladamente a barriga na esperança de ver cair em pedaços uma civilização milenar a que não merece pertencer.
Imagens: 1. “Gótico americano” de Grant Wood; 2. Apoiante de Trump, armado.
 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017


Publicado no Correio Transmontano de 24-1-2017

GRAVURAS ANIMADAS DO PALEOLÍTICO EM FOZ CÔA
Por Carlos Rodarte Veloso

Correio Transmontano adicionou 4 fotos novas.
19 h
A ideia de que os remotos artistas das cavernas teriam criado uma espécie de “desenhos animados” pintados ou gravados na rocha já não é uma novidade, porque há cerca de 20 anos que o arqueólogo francês Marc Azéma, ao estudar pinturas rupestres de animais da gruta de Chauvet (Ardèche, Sul da França) verificou que “os artistas representavam imagens animadas e não fixas [...] com sequências sucessivas e um sentido de leitura, como na banda desenhada ou no cinema dos nossos dias”.
Num osso representando em três imagens uma leoa em corrida, descoberto na gruta francesa de Lascaux, com a idade de 14 a 12 000 anos, o felídeo é representado em sequência, numa mesma direcção, sugerindo os fotogramas de um filme, assim decompondo as diversas fases do movimento.
O aprofundamento da sua pesquisa às grutas de Niaux no Ariège veio ao encontro das teses antes elaboradas por Azéma e levou a conclusões mais ainda espectaculares quando, para além de outras imagens sugerindo movimento como, por exemplo, animais com 8 patas sugerindo corrida, ou cavalos cujas cabeças e caudas “se agitam”,
foram detectados pequenos medalhões em osso, representando animais que, feitos girar em torno de um fio tendinoso, cria a ilusão de óptica de um animal em movimento rápido. Esse dispositivo, reinventado em 1825 e chamado “thaumatropo” é um directo antepassado do cinema.
Entretanto, outros exemplos rupestres foram encontrados na Cantábria, nas grutas de Altamira, mas foi nas gravuras de Foz Côa que os exemplos se multiplicaram, nos seus 17 quilómetros de vestígios repartidos por 50 núcleos de arte rupestre, na maioria datadas do Paleolítico Superior, muitas delas anteriores aos exemplos franceses indicados, como a cabra gravada na rocha 3 da Quinta da Barca, cuja cabeça está orientada em duas direcções diferentes, sugerindo o movimento da cabeça do animal.
Os exemplos abundam em Foz Côa, como com a gravura de um cavalo presente na rocha da Penascosa, “abanando a cabeça”, movimento sugerido por três posições da respectiva cabeça.
Em grande número, as gravuras de Foz Côa “em movimento”, datadas de há cerca de 18 000 anos, são um exemplo supremo da importância desta descoberta, inicialmente tão sobranceirmente ignorada, quando não vilipendiada como “fraude” pelos arqueólogos franceses, ciosos do seu velho “domínio” sobre os estudos arqueológicos.
Hoje Património da Humanidade, as gravuras de Foz Côa iniciaram um novo capítulo no estudo da Arte Pré-Histórica, ultrapassando todas as barreiras do preconceito pró-gaulês e abrindo caminho a novas interpretações, tanto quanto possível aproximadas da realidade histórica.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017


ASSOCIAÇÃO DE MALFEITORES

A manobra saloia de Passos Coelho de ir contra as suas próprias ideias recentemente expressas só para embaraçar o Governo, entalando inclusivamente as forças de que é serventuário, demonstra um estado mental infantil, incapaz de ir além do B-Á, BÀ! E Francisco Assis, o fantoche oportunista que tão bem se revelou desde a formação da aliança à Esquerda, bem pode clamar por eleições antecipadas, a ver se uma nova arrumação de forças no PS lhe dá o tacho a que ambiciona. Dois bandalhos a tentar minar o muito de positivo conseguido nos últimos tempos.
Denunciemos em rodas as instâncias estes candidatos a coveiros da nossa Democracia!

domingo, 22 de janeiro de 2017


O Manuelino, arte do Tardo-Gótico português
Carlos Rodarte Veloso

Publicado n’ "O Templário” de 19-1-2017

            A ideia de que o Manuelino é uma arte dos Descobrimentos devido à presença de elementos marítimos na sua decoração, há muito que vem sendo posta em causa por investigadores portugueses e estrangeiros, caso de Joaquim de Vasconcelos que o filiava na arte castelhana, enquanto o alemão Albrecht Haupt lhe preferia influências indianas e africanas, e Ricardo Averini as situava no Magreb, na Índia e, até, na China. Vergílio Correia, entretanto, apontava na direcção do Gótico Flamejante, vincando a importância da componente Mudéjar.
            Tudo isto era parcialmente verdade, mas a falta de contactos com o exterior ou a pura e simples submissão a um patriotismo acrítico – e muita ignorância – fez triunfar esta tese nacionalista especialmente durante o período liberal da segunda metade do século XIX e, mais ainda durante o “Estado Novo” que assim a utilizava como “argumento” nacionalista de peso para alimentar os seus slogans políticos. Uma arte de que se encontram raízes por toda a Europa, muito anteriores ao reinado de D. Manuel I, dificilmente poderá ser considerada uma arte de matriz portuguesa, mas a ideologia foi mais forte do que a ciência.
            De facto, no período liberal, época de profunda crise nacional culminando no Utimatum inglês, havia o exemplo estrangeiro, de raiz romântica, o Revivalismo Historicista, que encheu os países da Europa de monumentos neogóticos neomouriscos, neo-renascença e, em Portugal, neomanuelinos. Essa revisitação de um estilo dominante durante o período áureo das Descobertas logo criou a falsa ideia de que os elementos decorativos visíveis eram cordas dos navios, âncoras (!), corais, bóias de pesca, velas, etc.
E isso teve influência directa sobre a produção de monumentos neomanuelinos inspirados na Torre de Belém, nos Jerónimos, no Convento de Cristo a que são acrescentadas essas mesmas ficções escultóricas. Um bom exemplo, o Palácio da Pena, em Sintra, a par de todas as variantes revivalistas possíveis, apresenta duas janelas “inspiradas” na Janela do Coro do Convento de Cristo, imaginativas mas totalmente falsas. A construção de monumentos neo-manuelinos continuou ao longo do século XX, pelo menos até aos anos 20, com o aval de investigadores como Reinaldo dos Santos e Vieira Guimarães, protegidos e incensados pelo “Estado Novo.
            Mas o que mais execerbou as posições nacionalistas dos nossos historiadores “de Regime” em torno do Manuelino, foi a tese do catalão Eugenio d'Ors, que atribuía a Portugal um papel fundamental na história espiritual e artística da Europa, onde estaria a par da Grécia, considerando a “Janela de Tomar” (fig.1 – Tomar, Convento de Cristo, Janela de Diogo de Arruda) como nem mais nem menos do que o “éon”, o “arquétipo mundial” do Barroco, entendido este como uma “tendência geral da cultura” de que o Manuelino teria sido o principal representante quinhentista.
            A Exposição do Mundo Português levada a  cabo em 1940, momento máximo da propaganda salazarista no início da 2ª Guerra Mundial, mais ainda exacerbou os ânimos em torna da tese nacionalista. Por isso não é de admirar que no XVI Congresso Internacional de História da Arte, realizado em Lisboa, em 1949, a comunicação do francês Paul Evin “Faut-il voir un symbolisme maritime dans la décoration manueline?” tenha caído como uma bomba.
A tese de Evin, que viajara a pé por todo o Portugal durante o período do conflito mundial,  assentava na ideia de que os “motivos marítimos” referidos por todos ideólogos do Manuelino mais não eram do que “ilusões de óptica e delírios da imaginação”, e que a respectiva decoração tinha relação com uma vegetação exclusivamente terrestre.
Assim, os famosos “corais” manuelinos não passariam dos conhecidos “troncos podados” ou “ramagens” (Astwerk ) do Tardo-Gótico alemão (Spätgotik ), com o qual o Manuelino revelaria numerosos paralelismos (fig. 2 – Alcobaça, Porta da Sacristia, de João de Castilho). Esta “heresia” valeu ao jovem historiador a sua expulsão pura e simples do País pela polícia política e o adiamento da inevitável discussão para tempos mais dialogantes…



            Não aprofundarei o alcance das propostas de Evin, que vão bem mais longe no confronto com as teses tradicionalistas. Referirei, no entanto, que a exclusividade da “interpretação terrestre” tem encontrado alguma prudência da parte de investigadores bastante abertos às teses do investigador francês, que admitem a existência de alguns — poucos — elementos marítimos, não necessariamente ligados às Navegações, mas à simbólica cristã.
            Quanto às influências espanholas, concretamente por parte do estilo Hispano-Flamengo, também chamado Isabelino (fig.3 – Valladolid, Colégio de São Gregório, de Gil de Siloé), sobre o Manuelino — e vice-versa, acrescentarei eu… —, parece bastante pertinente a ideia de Caamaño Martínez sobre as convergências dos dois estilos na utilização de certos motivos decorativos, como sejam as cordas, as bolas e as cadeias, o gosto pelos arcos polilobados e policêntricos e o traçado de abóbadas rebaixadas, que representam um importante avanço tecnológico relativamente ao Gótico. Por outro lado, é igualmente inegável alguma influência em sentido inverso e diversos edifícios do país vizinho, nomeadamente da Galiza e algumas áreas fronteiriças denotam claras influências — quando não está provada a autoria portuguesa — do Manuelino.

Mas se parece definitivamente condenada a tese marítima pura e simples para a interpretação do Manuelino, a verdade é que só os proventos e a nova sociedade nascida da expansão marítima tornaram possível o extraordinário surto construtivo do reinado do Venturoso, que abrange não apenas a arquitectura religiosa, mas também a civil. 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017




OLHAR, VER E SENTIR: A GÉNESE DO GOSTO ARTÍSTICO
Publicado n’O Templário de 12 de Janeiro de 2017


O estudo da História da Arte coloca, logo à partida, uma questão que está longe de ser consensual entre os diversos investigadores: como nasceu a ideia do gosto artístico, atitude que proporcionou a ideia contida no célebre aforismo “Gostos não se discutem”?
Essa questão remete para a própria ideia da recepção do objecto artístico, seja ele uma paisagem, uma pintura ou uma escultura, uma sinfonia, uma fotografia, um edifício.
O que leva a que uma paisagem provoque em nós um sentimento estético e esse sentimento seja expresso através de uma qualquer das Artes referidas, ou das muitas outras existentes?
Colocando o problema numa época muito recuada, vemos as representações mais antigas que nos chegaram, as pinturas rupestres, como a marca visual mais significativa: mãos impressas em negativo, grandes animais em autênticos rebanhos, com predominância absoluta dos herbívoros (Fig. 1 – Bisontes da Gruta de Altamira), isto é, animais comestíveis em tempos que certamente foram de fome endémica. A presença de alguns carnívoros, por vezes em luta com homens, apenas acentua essa desproporção.
Haveria então um sentimento estético nos artistas que olharam, viram e representaram essas mãos e esses animais? É tentador associar tais mãos à “tomada de posse” das cavernas onde foram encontradas, até pela sua antiguidade relativa, mas essa questão está também longe de estar resolvida e parece pertencer a outra área, que não a artística.
Quanto às representações animais, há uma clara evolução na sua qualidade ao longo do Paleolíco Superior, dando origem a verdadeiros ciclos estilísticos, tão próximos já da evolução estética do nosso tempo.
Paralelamente, a produção de artefactos de grande funcionalidade, as famosas lâminas de sílex ou obsidiana, primeiro multifuncionais, depois especializadas para todo o tipo de usos, sofre uma extraordinária evolução, em que à utilidade se associa uma vertente que poderemos considerar, já de algum modo, estética.
Esta convergência vai dividir os esforços destes artífices em relação a outros produtos, numa produção pré-industrial e noutra, mais restrita, excepcional pela qualidade e não tanto pelo valor de uso. Assim teria nascido a ideia de beleza dos artefactos.
Serão estas as primeiras armas e artefactos ostentatórios da preponderância social dos seus utentes: propulsores de marfim e de osso esculpidos (Fig. 2 – Propulsor da Gruta de Bruniquel, França), mais uma vez, com formas de animais, uns enigmáticos “bastões de comando”, azagaias e arpões nos mesmos materiais, e esculturas, nos mais diversos materiais, com os mesmos temas e uma novidade, a representação feminina de figuras de maternidade-fertilidade ou de simples e delicadas cabeças, aquilo a que se chamou “vénus” paleolíticas (Fig.3 . Vénus de Willendorf, Alemanha).
A ordem dos factores utilizados pelos nossos antiquíssimos “artistas” não é arbitrária. Eles olharam a natureza, e ao fazê-lo viram os fenómenos com que tiveram que lidar. Uns, compreensíveis e dentro da sua esfera de acção: animais, perigosos é certo mas não invencíveis e, acima de tudo, reserva importante de proteínas em tempos difíceis. Era o desafio duma natureza inóspita, mas minimamente controlável através da Técnica, métodos racionais para o domínio do mundo material.
Mas com os fenómenos naturais cuja verdadeira natureza era totalmente incompreensível, as coisas passavam-se forma inteiramente diferente: um nascer do Sol era certamente muito gratificante, depois das possíveis dúvidas no anoitecer anterior sobre o seu regresso aos céus. E o Sol surge muito precocemente como uma divindade, adorada em santuários identificados desde o Neolítico (Fig. 4 – Santuário de Stonehenge, Inglaterra). Isso explica as reacções de pânico que acompanharam os eclipes solares até épocas relativamente recentes.
A própria Lua, desde muito cedo associada à menstruação feminina, dados os seus ciclos de 28 dias, contribuíu para os primeiros calendários, alguns deles ainda em uso, como acontece no mundo islâmico. Do mesmo modo, a sua coincidência com as marés e, até, com perturbações manifestadas em seres humanos e animais, que deram origem a mitos e lendas, mostra a enorme importância do nosso satélite natural.
Outros fenómenos naturais, como o vulcanismo, os relâmpagos e trovões, as cheias, os sismos, as tempestades, as epidemias, estavam também fora do alçado da Técnica. Para explicar tais fenómenos, muitas vezes mortíferos, foram inventados os deuses, cada um “especializado” numa dada área. Os métodos para os enfrentar levaram à utilização da Magia e, uma vez organizada esta em culto alargado, à invenção da Religião, formas irracionais de lidar com o incompreensível.
Mas ao criar as Religiões alienou grande parte da sua capacidade criativa, impondo-se regras artificiais e aleatórias que se saldaram em retrocessos civiizacionais que hoje sentimos de forma tão dramática.
Como associar tudo isto ao nascimento de Arte como gosto estético? Parece-me que a  marca dos heróis fundadores de cidades ou civiizações, de lendários reis-divindades presentes no imaginário de civilizações tão antigas como a Suméria e a Egípcia e das civilizações suas sucessoras, da Babilónia à Grécia e Roma, deram formas, umas vezes zoomórficas ou híbridas, outras vezes antropomórficas a esses símbolos de Poder, dando origem a uma Iconografia variada e universal, raiz de todas as formas artísticas.
Passamos pois da adoração do Sol que renasce todos os dias e do “armazenamento” de rebanhos de herbívoros nas paredes rochosas de cavernas e abrigos ao ar livre, para a ideia de Estética associada à Utilidade. Porque o Homem olhou para essas manifestações artísticas e ele viu que isso era bom”, porque ele é a medida de todas as coisas e é aos seus interesses que se submetem as regras de toda a actividade humana.



segunda-feira, 9 de janeiro de 2017


Facebook, 8 de Janeiro de 2017 – Carlos Rodarte Veloso

MÁRIO SOARES O COMBATENTE SEM MEDO DA LIBERDADE



Tudo quanto haveria a dizer de Mário Soares já foi dito, por isso deveria remeter-me ao silêncio, eu que durante bastante tempo dele discordei abertamente. Claro que as minhas opiniões antigas fazem parte do meu crescimento e, ouso dizê-lo, da minha evolução como homem e como cidadão. Ele era um exemplo de isenção relativamente aos direitos dos outros e isso foi sempre evidente.
Mas não poderei calar o profundo desprezo que me causam os ataques odiosos que esses vampiros, que tanto beneficiaram com a sua acção, assim desferem sobre o homem vertical, corajoso e inteligente, a quem acusam das mais absurdas faltas, corrupção, crimes e, até genocídio (?!), ele que sempre prezou a liberdade, mesmo dos seus opositores e conduziu - não sozinho, é certo - a descolonização possível, quando os soldados se recusavam a combater, entregavam as armas aos guerrilheiros, e regressariam a nado, se isso fosse possível, à Pátria que os tinha entregue a uma guerra sem esperança, nem razão, nem justiça.
Ele que nos acordos que negociou a pulso, conseguiu que fossem poupados os portugueses coloniais e lhes permitiu a saída de terras em que muitos deles cometeram abusos, esses sim, crimes imperdoáveis sobre os nativos.
De facto, se há pessoas que lhe deveriam estar agradecidas a Mário Soares, são esses milhares de "retornados" que se exilaram porque temiam o que aconteceria quando os "pretos" tomassem conta dos seus países. Em muitos casos injustamente, porque nem todos os brancos se comportaram, como esclavagistas, mas a verdade é que todos beneficiaram material e moralmente da situação colonial.
O que esperavam então dos "pretos"? Um agradecimento por os terem explorado? Uma medalha? Ponde-vos no lugar deles, meus senhores e minhas senhoras! O que faríeis no lugar deles? A vossa atitude de ódio tresloucado faz-me pensar o pior dos piores.
E saltando da descolonização para a vida interna do Portugal revolucionário, não foi Soares aquele que tudo fez para "pôr água na fervura" dos naturais ressentimentos revolucionários que conduziram ao PREC e conseguiu a rara proeza de pacificar um País à beira de um ataque de nervos.
Se impediu uma ditadura, não sei, mas conseguiu, isso sim, criar um Estado de Direito, em vez do Estado de Direita que Portugal tinha sido. E deu a voz ao povo nessa época riquíssima de conquistas sociais, mas evitando sempre que os ressentimentos conduzissem a uma guerra civil.
Por tudo isso e pela sua própria imagem, tão calorosa, tão verdadeira, e pela enorme cultura que tentou partilhar, nomeadamente através da sua Fundação e de todo o apoio que deu à Cultura portuguesa, devemos estar-lhe gratos.
Ele foi e é um exemplo que ficará na História de Portugal.
Para sempre, Companheiro!

sábado, 7 de janeiro de 2017


RETÁBULOS E PORTAIS BARROCOS TRANSMONTANOS//Por
Carlos Rodarte Veloso
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18 min
RETÁBULOS E PORTAIS BARROCOS TRANSMONTANOS//Por
CARLOS RODARTE VELOSO
“Santos de casa não fazem milagres” é um ditado popular bem português e que se aplica como uma luva à investigação na História da Arte em Portugal.
Na verdade foi um catalão, Eugenio d’Ors, a conceber uma controversa tese sobre a divisão dos estilos artísticos de acordo com as ideias de Nitzsche sobre “o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco” – aquilo a que chamou os “éons” – respectivamente aplicadas à arte clássica e ao Manuelino, apresentado este como o primeiro Barroco.
Um francês, Paul Evin, que desmitificou definitivamente a lenda do Manuelino como arte dos descobrimentos e originária do nosso país.
George Kubler, um norte-americano, a teorizar sobre o nosso estilo maneirista na arquitectura, aplicando-lhe a classificação de “estilo chão”, designação ainda hoje operativa.
O francês, Germain Bazin, a produzir a primeira tentativa classificativa da talha barroca portuguesa, classificação essa que acabou por ser praticamente posta de lado devido ao aparecimente do norte-americano, Robert Smith, que estudou a fundo a talha barroca portuguesa produzindo aquilo que é, ainda hoje, o estudo mais completo dessa nossa arte decorativa, o livro “A Talha em Portugal” (Livros Horizonte, Lisboa, 1962), ainda hoje a principal obra de referência sobre esta matéria.
O seu estudo foi aplicado a toda a arte retabular e aos cadeirais, púlpitos e outros produtos desta actividade artística que se converteu numa verdadeira imagem de marca de Portugal. Outro livro de Robert Smith, “Cadeirais de Portugal” (Livros Horizonte, Lisboa, 1968) vem aprofundar a matéria do primeiro, publicando entretanto numerosas monografias sobre obras de talha e os seus autores.
É nestas obras que o investigador enuncia a classificação que atribui aos retábulos portugueses de finais do século XVII, inícios do XVIII, a que chamou do “Estilo Nacional”, distinguíveis portanto dos retábulos espanhóis da mesma época e perfeitamente isolados dos da época de D. João V, “joaninos” e com fortes influências italianas.
Estes retábulos do “Estilo Nacional” – a que Flávio Gonçalves prefere a designação de “Estilo Português” – são caracterizados pelas suas colunas pseudo-salomónicas, inspiradas nas colunas do baldaquino da Basílica de S. Pedro de Roma, de Bernini (Fig. 1 – Baldaquino de Bernini), mas com um diferente tratamento das suas espirais que, no caso português têm uma decoração igual e contínua ao invés da sua diferenciação no caso italiano .
Outra característica do “Estilo Nacional” é a continuação dessas colunas em arcos concêntricos “românicos”, unificando o conjunto em jeito de arquivoltas (Fig. 2 – Altar-mor da Igreja de S. Vicente de Bragança, wikipedia.org/wiki/Igreja_de_São_Vicente). Finalmente, os elementos decorativos, claramente eucarísticos, com as suas folhas de videira, cachos de uvas, fénices e querubins, os “putti”, folhas de acanto, por vezes enquadrando uma tribuna vasada ao centro, destinada a outra inovação potuguesa, o trono de altar piramidal, destinada a suportar o Santíssimo Sacramento ou alguma outra imagem de culto.
Esta introdução, que já vai longa, destina-se a enquadrar aquilo que Robert Smith considera uma excepcionalidade transmontana, os portais de granito do Nordeste Transmontano, utilizando elementos do estilo nacional. É o caso dos portais da Igreja de Santa Maria de Bragança e da Misericórdia de Murça (Fig. 3 e 4 – Portal da Igreja da Misericórdia de Murça e elementos decorativos), em que se pode apreciar grande parte dos elementos atrás referidos.

SEIS HORAS EM ATENAS

Publicado n’O Templário de 5 de Janeiro de 2017

O que faria se tivesse apenas 6 horas para visitar Atenas? Cabe-me responder, porque no regresso de Corfu onde fui participar num congresso internacional, a escala em Atenas antes da partida para Amsterdão perfazia cerca de seis horas. Seis horas a secar num aeroporto a apenas algumas dezenas de quilómetros da nossa sobre todas alma mater, a Cidade onde nasceu a Democracia e a Filosofia, a Cidade da Acrópole e da Ágora, da harmonia e dos valores humanísticos! Como não sabia se, nem quando lá poderia voltar e, por isso e contra toda a lógica que desconselharia preencher um tão breve lapso de tempo, sujeito a mais que possíveis atrasos nos transportes, com uma visita relâmpago, arrisquei e ganhei.
A viagem do aeroporto num táxi conduzido, felizmente, por um razoável falante do Inglês, pôs-me na base da Acrópole, o monte sagrado sobre o qual foram erigidos os mais belos templos de toda a Grécia, sob a protecção de sólidas muralhas.
A entrada na cidadela que protegia o conjunto de templos não correspondeu às expectativas românticas que sempre alimentara em relação àquele sítio único: a multidão que se acotovelava desde os Propileus, a arruinada entrada monumental, até ao Parténon (Fig.1), o templo em ruínas dedicado à protectora da Cidade, Palas Atena, de tão ruidosa impedia qualquer tentativa de meditação ou de reflexão sobre o tesouro artístico que me rodeava. Os flashes das câmaras fotográficas, a correria de uma multidão que procurava recolher o maior número de imagens possível, prova da sua presença em lugares exóticos e cobiçados, sobrepunham-se a qualquer interesse legítimo pelo cenário envolventre. E ainda não tinham surgido as selfies, essa praga e marca de um narcisismo exacerbado... Para mais, a grande cidade moderna, com os seus quatro milhões de habitantes, rodeia o monte sagrado sob um céu muito pouco mediterrânico devido à nebulosidade ácida provocada pela poluição, verdadeira assassina destes vestígios gloriosos de um passado que arqueólogos e restauradores tentam preservar.
Entretanto mantém-se a recusa do governo inglês de devolver à Grécia o famosos frisos escultóricos do Parténon, da autoria de Fídias, roubados no século XIX por Lord Elgin e levados para Londres onde continuam expostos como mais uma coroa de “glória” de um passado de rapina em que se juntaram as maiores potências europeias e os Estados Unidos para arrecadar para os seus países algumas das mais gloriosas relíquias da Grécia, da Itália, da Mesopotâmia, da Pérsia e do Egipto. Na verdade, o Reino Unido, a França e a Alemanha, recordistas neste tipo de extorsão, argumentam, apesar dos notáveis avanços das ciências da conservação e restauro hoje conseguidos nos países espoliados, que os objectos artísticos estão assim mais seguros e bem cuidados por especialistas... sem terem o cuidado de lembrar que essa “segurança” lhes rende fortes dividendos devido ao turismo de massas de que beneficiam!
Mas aí estavam o Parténon, o Erecteion e a sua famosíssima e formosíssima tribuna das Cariátides (Fig.2), todos rodeados de andaimes e o Templo de Atena Niké, junto à entrada, pequena jóia da arquitectura, ela também em grave perigo de conservação.
No percurso para a parte baixa da pólis, pude admirar o teatro romano de Herodes Ático, edifício magnífico exemplarmente conservado e algum do espólio do museu Kanellopoulos que expõe, nos seus diversos andares, colecções primorosamente conservadas de esculturas, cerâmica pintada, ourivesaria, moedas, armas e ferramentas das várias épocas da Grécia Antiga.
Chega-se então à zona baixa da pólis, a Ágora, continuada depois com as construções do Forum romano e com a pequena igreja bizantina de S. Eleutério.
No que toca à Ágora propriamente dita, ladeada pelos restos do Areópago ou  “Colina de Ares”, em cujas bancadas se juntavam os cidadãos para assistir ao exercício do poder judicial, destaca-se a sólida construção, bem conservada, do Templo de Efesto e o edifício reconstruído do Stoa (Fig.3) – ou Pórtico – onde os atenienses, abrigados do sol e da chuva pelas suas coberturas assentes em sólidas colunas dóricas, passeavam ao mesmo tempo que tratavam dos seus assuntos.
Era notável o contraste deste amplo espaço, semeado de oliveiras, com o ambiente anárquico e quase histérico das multidões que invadiam a Acrópole: a presença de apenas algumas dezenas de pessoas passeando silenciosamente pelo primeiro espaço democrático do mundo, o marulhar do vento na folhagem e, bem ao longe, o bruá da grande cidade, permitia o exercício da imaginação, a observação e a captação do “espírito do lugar”, essa abstracção tão subjectiva quanto individual “inventada” pelo Romantismo, impossível de descrever, mas apenas de sentir.
Passadas as horas previstas para esta visita relâmpago, era preciso descer às coisas práticas, como comprar os souvenirs para Família e Amigos e aí encontrei um interessante interlocutor no empregado de uma dessas lojas, com quem conversei sobre o assunto do momento – estávamos a 4 de Junho de 2004 – o Campeonato Europeu de Futebol, então a decorrer em Lisboa. Dizia o jovem ateniense que a Grécia não teria hipóteses com a nossa equipa, altamente cotada e considerada quase invencível. Nesse mesmo dia realizavam-se os quartos de final contra a Grã-Bretanha. Com um pouco de falsa modéstia respondi-lhe, magnanimamente, que o resultado poderia ser inesperado... Mal sabia eu o quanto seria!
E foi num avião da KLM, companhia holandesa, que viajei para Amsterdão, e daí para Lisboa, ao som do relato do Portugal – Inglaterra, com uma companhia maciça de portugueses embarcadas na Holanda, mimados por uma tripulação que, ironicamente, viria a ver a sua selecção derrotada por Portugal nas meias-finais efectuadas em 30 de Junho... Mas naquele momento o que interessava era ultrapassar a comum rival britânica e isso foi conseguido com um empate glorioso. Como agora sabemos, empates também podem trazer glória... E foi num misto de satisfação com este resultado futebolístico – eu, entusiasmado com o futebol! – e com a recordação daquela semana magnífica passada entre Corfu e  Atenas, que adormeci pesadamente nessa noite... Confesso que estava extenuado, mas muito, muito contente!