O Manuelino, arte do Tardo-Gótico português
Carlos
Rodarte Veloso
Publicado n’ "O Templário” de 19-1-2017
A ideia de que o Manuelino é uma
arte dos Descobrimentos devido à presença de elementos marítimos na sua
decoração, há muito que vem sendo posta em causa por investigadores portugueses
e estrangeiros, caso de
Joaquim de Vasconcelos que o filiava na arte castelhana, enquanto o alemão
Albrecht Haupt lhe preferia influências indianas e africanas, e Ricardo Averini
as situava no Magreb, na Índia e, até, na China. Vergílio Correia, entretanto,
apontava na direcção do Gótico Flamejante, vincando a importância da componente
Mudéjar.
Tudo
isto era parcialmente verdade, mas a falta de contactos com o exterior ou a
pura e simples submissão a um patriotismo acrítico – e muita ignorância – fez
triunfar esta tese nacionalista especialmente durante o período liberal da
segunda metade do século XIX e, mais ainda durante o “Estado Novo” que assim a
utilizava como “argumento” nacionalista de peso para alimentar os seus slogans
políticos. Uma arte de que se encontram raízes por toda a Europa, muito
anteriores ao reinado de D. Manuel I, dificilmente poderá ser considerada uma
arte de matriz portuguesa, mas a ideologia foi mais forte do que a ciência.
De facto, no período liberal, época
de profunda crise nacional culminando no Utimatum
inglês, havia o exemplo estrangeiro, de raiz romântica, o Revivalismo
Historicista, que encheu os países da Europa de monumentos neogóticos
neomouriscos, neo-renascença e, em Portugal, neomanuelinos. Essa revisitação de
um estilo dominante durante o período áureo das Descobertas logo criou a falsa
ideia de que os elementos decorativos visíveis eram cordas dos navios, âncoras
(!), corais, bóias de pesca, velas, etc.
E isso
teve influência directa sobre a produção de monumentos neomanuelinos inspirados
na Torre de Belém, nos Jerónimos, no Convento de Cristo a que são acrescentadas
essas mesmas ficções escultóricas. Um bom exemplo, o Palácio da Pena, em
Sintra, a par de todas as variantes revivalistas possíveis, apresenta duas
janelas “inspiradas” na Janela do Coro do Convento de Cristo, imaginativas mas totalmente
falsas. A construção de monumentos neo-manuelinos continuou ao longo do século
XX, pelo menos até aos anos 20, com o aval de investigadores como Reinaldo dos Santos e Vieira
Guimarães, protegidos e incensados pelo “Estado Novo.
Mas
o que mais execerbou as posições nacionalistas dos nossos historiadores “de
Regime” em torno do Manuelino, foi a tese do catalão Eugenio d'Ors, que
atribuía a Portugal um papel fundamental na história espiritual e artística da
Europa, onde estaria a par da Grécia, considerando a “Janela de Tomar” (fig.1 –
Tomar, Convento de Cristo, Janela de Diogo de Arruda) como nem mais nem menos
do que o “éon”, o “arquétipo mundial” do Barroco, entendido este como uma
“tendência geral da cultura” de que o Manuelino teria sido o principal representante
quinhentista.
A
Exposição do Mundo Português levada a
cabo em 1940, momento máximo da propaganda salazarista no início da 2ª
Guerra Mundial, mais ainda exacerbou os ânimos em torna da tese nacionalista.
Por isso não é de admirar que no XVI
Congresso Internacional de História da Arte, realizado em Lisboa, em 1949, a comunicação do
francês Paul Evin “Faut-il voir un symbolisme maritime dans la décoration
manueline?” tenha caído como uma bomba.
A tese de Evin, que
viajara a pé por todo o Portugal durante o período do conflito mundial, assentava na ideia de que os “motivos
marítimos” referidos por todos ideólogos do Manuelino mais não eram do que
“ilusões de óptica e delírios da imaginação”, e que a respectiva decoração
tinha relação com uma vegetação exclusivamente terrestre.
Assim, os famosos
“corais” manuelinos não passariam
dos conhecidos “troncos podados” ou “ramagens” (Astwerk ) do Tardo-Gótico
alemão (Spätgotik ), com o qual o Manuelino revelaria numerosos
paralelismos (fig. 2 – Alcobaça, Porta da Sacristia, de João de Castilho). Esta
“heresia” valeu ao jovem historiador a sua expulsão pura e simples do País pela
polícia política e o adiamento da inevitável discussão para tempos mais
dialogantes…
Não
aprofundarei o alcance das propostas de Evin, que vão bem mais longe no
confronto com as teses tradicionalistas. Referirei, no entanto, que a exclusividade da “interpretação
terrestre” tem encontrado alguma prudência da parte de investigadores bastante
abertos às teses do investigador francês, que admitem a existência de alguns —
poucos — elementos marítimos, não necessariamente ligados às Navegações, mas à
simbólica cristã.
Quanto
às influências espanholas, concretamente por parte do estilo Hispano-Flamengo,
também chamado Isabelino (fig.3 – Valladolid, Colégio de São Gregório, de Gil
de Siloé), sobre o Manuelino — e vice-versa, acrescentarei eu… —, parece bastante
pertinente a ideia de Caamaño Martínez sobre as convergências dos dois estilos na utilização de certos motivos
decorativos, como sejam as cordas, as bolas e as cadeias, o gosto pelos arcos
polilobados e policêntricos e o traçado de abóbadas rebaixadas, que representam
um importante avanço tecnológico relativamente ao Gótico. Por outro lado, é
igualmente inegável alguma influência em sentido inverso e diversos edifícios
do país vizinho, nomeadamente da Galiza e algumas áreas fronteiriças denotam
claras influências — quando não está provada a autoria portuguesa — do
Manuelino.
Mas se parece
definitivamente condenada a tese marítima pura e simples para a interpretação
do Manuelino, a verdade é que só os proventos e a nova sociedade nascida da
expansão marítima tornaram possível o extraordinário surto construtivo do
reinado do Venturoso, que abrange não apenas a arquitectura religiosa, mas
também a civil.
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