domingo, 22 de janeiro de 2017


O Manuelino, arte do Tardo-Gótico português
Carlos Rodarte Veloso

Publicado n’ "O Templário” de 19-1-2017

            A ideia de que o Manuelino é uma arte dos Descobrimentos devido à presença de elementos marítimos na sua decoração, há muito que vem sendo posta em causa por investigadores portugueses e estrangeiros, caso de Joaquim de Vasconcelos que o filiava na arte castelhana, enquanto o alemão Albrecht Haupt lhe preferia influências indianas e africanas, e Ricardo Averini as situava no Magreb, na Índia e, até, na China. Vergílio Correia, entretanto, apontava na direcção do Gótico Flamejante, vincando a importância da componente Mudéjar.
            Tudo isto era parcialmente verdade, mas a falta de contactos com o exterior ou a pura e simples submissão a um patriotismo acrítico – e muita ignorância – fez triunfar esta tese nacionalista especialmente durante o período liberal da segunda metade do século XIX e, mais ainda durante o “Estado Novo” que assim a utilizava como “argumento” nacionalista de peso para alimentar os seus slogans políticos. Uma arte de que se encontram raízes por toda a Europa, muito anteriores ao reinado de D. Manuel I, dificilmente poderá ser considerada uma arte de matriz portuguesa, mas a ideologia foi mais forte do que a ciência.
            De facto, no período liberal, época de profunda crise nacional culminando no Utimatum inglês, havia o exemplo estrangeiro, de raiz romântica, o Revivalismo Historicista, que encheu os países da Europa de monumentos neogóticos neomouriscos, neo-renascença e, em Portugal, neomanuelinos. Essa revisitação de um estilo dominante durante o período áureo das Descobertas logo criou a falsa ideia de que os elementos decorativos visíveis eram cordas dos navios, âncoras (!), corais, bóias de pesca, velas, etc.
E isso teve influência directa sobre a produção de monumentos neomanuelinos inspirados na Torre de Belém, nos Jerónimos, no Convento de Cristo a que são acrescentadas essas mesmas ficções escultóricas. Um bom exemplo, o Palácio da Pena, em Sintra, a par de todas as variantes revivalistas possíveis, apresenta duas janelas “inspiradas” na Janela do Coro do Convento de Cristo, imaginativas mas totalmente falsas. A construção de monumentos neo-manuelinos continuou ao longo do século XX, pelo menos até aos anos 20, com o aval de investigadores como Reinaldo dos Santos e Vieira Guimarães, protegidos e incensados pelo “Estado Novo.
            Mas o que mais execerbou as posições nacionalistas dos nossos historiadores “de Regime” em torno do Manuelino, foi a tese do catalão Eugenio d'Ors, que atribuía a Portugal um papel fundamental na história espiritual e artística da Europa, onde estaria a par da Grécia, considerando a “Janela de Tomar” (fig.1 – Tomar, Convento de Cristo, Janela de Diogo de Arruda) como nem mais nem menos do que o “éon”, o “arquétipo mundial” do Barroco, entendido este como uma “tendência geral da cultura” de que o Manuelino teria sido o principal representante quinhentista.
            A Exposição do Mundo Português levada a  cabo em 1940, momento máximo da propaganda salazarista no início da 2ª Guerra Mundial, mais ainda exacerbou os ânimos em torna da tese nacionalista. Por isso não é de admirar que no XVI Congresso Internacional de História da Arte, realizado em Lisboa, em 1949, a comunicação do francês Paul Evin “Faut-il voir un symbolisme maritime dans la décoration manueline?” tenha caído como uma bomba.
A tese de Evin, que viajara a pé por todo o Portugal durante o período do conflito mundial,  assentava na ideia de que os “motivos marítimos” referidos por todos ideólogos do Manuelino mais não eram do que “ilusões de óptica e delírios da imaginação”, e que a respectiva decoração tinha relação com uma vegetação exclusivamente terrestre.
Assim, os famosos “corais” manuelinos não passariam dos conhecidos “troncos podados” ou “ramagens” (Astwerk ) do Tardo-Gótico alemão (Spätgotik ), com o qual o Manuelino revelaria numerosos paralelismos (fig. 2 – Alcobaça, Porta da Sacristia, de João de Castilho). Esta “heresia” valeu ao jovem historiador a sua expulsão pura e simples do País pela polícia política e o adiamento da inevitável discussão para tempos mais dialogantes…



            Não aprofundarei o alcance das propostas de Evin, que vão bem mais longe no confronto com as teses tradicionalistas. Referirei, no entanto, que a exclusividade da “interpretação terrestre” tem encontrado alguma prudência da parte de investigadores bastante abertos às teses do investigador francês, que admitem a existência de alguns — poucos — elementos marítimos, não necessariamente ligados às Navegações, mas à simbólica cristã.
            Quanto às influências espanholas, concretamente por parte do estilo Hispano-Flamengo, também chamado Isabelino (fig.3 – Valladolid, Colégio de São Gregório, de Gil de Siloé), sobre o Manuelino — e vice-versa, acrescentarei eu… —, parece bastante pertinente a ideia de Caamaño Martínez sobre as convergências dos dois estilos na utilização de certos motivos decorativos, como sejam as cordas, as bolas e as cadeias, o gosto pelos arcos polilobados e policêntricos e o traçado de abóbadas rebaixadas, que representam um importante avanço tecnológico relativamente ao Gótico. Por outro lado, é igualmente inegável alguma influência em sentido inverso e diversos edifícios do país vizinho, nomeadamente da Galiza e algumas áreas fronteiriças denotam claras influências — quando não está provada a autoria portuguesa — do Manuelino.

Mas se parece definitivamente condenada a tese marítima pura e simples para a interpretação do Manuelino, a verdade é que só os proventos e a nova sociedade nascida da expansão marítima tornaram possível o extraordinário surto construtivo do reinado do Venturoso, que abrange não apenas a arquitectura religiosa, mas também a civil. 

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