quinta-feira, 12 de janeiro de 2017




OLHAR, VER E SENTIR: A GÉNESE DO GOSTO ARTÍSTICO
Publicado n’O Templário de 12 de Janeiro de 2017


O estudo da História da Arte coloca, logo à partida, uma questão que está longe de ser consensual entre os diversos investigadores: como nasceu a ideia do gosto artístico, atitude que proporcionou a ideia contida no célebre aforismo “Gostos não se discutem”?
Essa questão remete para a própria ideia da recepção do objecto artístico, seja ele uma paisagem, uma pintura ou uma escultura, uma sinfonia, uma fotografia, um edifício.
O que leva a que uma paisagem provoque em nós um sentimento estético e esse sentimento seja expresso através de uma qualquer das Artes referidas, ou das muitas outras existentes?
Colocando o problema numa época muito recuada, vemos as representações mais antigas que nos chegaram, as pinturas rupestres, como a marca visual mais significativa: mãos impressas em negativo, grandes animais em autênticos rebanhos, com predominância absoluta dos herbívoros (Fig. 1 – Bisontes da Gruta de Altamira), isto é, animais comestíveis em tempos que certamente foram de fome endémica. A presença de alguns carnívoros, por vezes em luta com homens, apenas acentua essa desproporção.
Haveria então um sentimento estético nos artistas que olharam, viram e representaram essas mãos e esses animais? É tentador associar tais mãos à “tomada de posse” das cavernas onde foram encontradas, até pela sua antiguidade relativa, mas essa questão está também longe de estar resolvida e parece pertencer a outra área, que não a artística.
Quanto às representações animais, há uma clara evolução na sua qualidade ao longo do Paleolíco Superior, dando origem a verdadeiros ciclos estilísticos, tão próximos já da evolução estética do nosso tempo.
Paralelamente, a produção de artefactos de grande funcionalidade, as famosas lâminas de sílex ou obsidiana, primeiro multifuncionais, depois especializadas para todo o tipo de usos, sofre uma extraordinária evolução, em que à utilidade se associa uma vertente que poderemos considerar, já de algum modo, estética.
Esta convergência vai dividir os esforços destes artífices em relação a outros produtos, numa produção pré-industrial e noutra, mais restrita, excepcional pela qualidade e não tanto pelo valor de uso. Assim teria nascido a ideia de beleza dos artefactos.
Serão estas as primeiras armas e artefactos ostentatórios da preponderância social dos seus utentes: propulsores de marfim e de osso esculpidos (Fig. 2 – Propulsor da Gruta de Bruniquel, França), mais uma vez, com formas de animais, uns enigmáticos “bastões de comando”, azagaias e arpões nos mesmos materiais, e esculturas, nos mais diversos materiais, com os mesmos temas e uma novidade, a representação feminina de figuras de maternidade-fertilidade ou de simples e delicadas cabeças, aquilo a que se chamou “vénus” paleolíticas (Fig.3 . Vénus de Willendorf, Alemanha).
A ordem dos factores utilizados pelos nossos antiquíssimos “artistas” não é arbitrária. Eles olharam a natureza, e ao fazê-lo viram os fenómenos com que tiveram que lidar. Uns, compreensíveis e dentro da sua esfera de acção: animais, perigosos é certo mas não invencíveis e, acima de tudo, reserva importante de proteínas em tempos difíceis. Era o desafio duma natureza inóspita, mas minimamente controlável através da Técnica, métodos racionais para o domínio do mundo material.
Mas com os fenómenos naturais cuja verdadeira natureza era totalmente incompreensível, as coisas passavam-se forma inteiramente diferente: um nascer do Sol era certamente muito gratificante, depois das possíveis dúvidas no anoitecer anterior sobre o seu regresso aos céus. E o Sol surge muito precocemente como uma divindade, adorada em santuários identificados desde o Neolítico (Fig. 4 – Santuário de Stonehenge, Inglaterra). Isso explica as reacções de pânico que acompanharam os eclipes solares até épocas relativamente recentes.
A própria Lua, desde muito cedo associada à menstruação feminina, dados os seus ciclos de 28 dias, contribuíu para os primeiros calendários, alguns deles ainda em uso, como acontece no mundo islâmico. Do mesmo modo, a sua coincidência com as marés e, até, com perturbações manifestadas em seres humanos e animais, que deram origem a mitos e lendas, mostra a enorme importância do nosso satélite natural.
Outros fenómenos naturais, como o vulcanismo, os relâmpagos e trovões, as cheias, os sismos, as tempestades, as epidemias, estavam também fora do alçado da Técnica. Para explicar tais fenómenos, muitas vezes mortíferos, foram inventados os deuses, cada um “especializado” numa dada área. Os métodos para os enfrentar levaram à utilização da Magia e, uma vez organizada esta em culto alargado, à invenção da Religião, formas irracionais de lidar com o incompreensível.
Mas ao criar as Religiões alienou grande parte da sua capacidade criativa, impondo-se regras artificiais e aleatórias que se saldaram em retrocessos civiizacionais que hoje sentimos de forma tão dramática.
Como associar tudo isto ao nascimento de Arte como gosto estético? Parece-me que a  marca dos heróis fundadores de cidades ou civiizações, de lendários reis-divindades presentes no imaginário de civilizações tão antigas como a Suméria e a Egípcia e das civilizações suas sucessoras, da Babilónia à Grécia e Roma, deram formas, umas vezes zoomórficas ou híbridas, outras vezes antropomórficas a esses símbolos de Poder, dando origem a uma Iconografia variada e universal, raiz de todas as formas artísticas.
Passamos pois da adoração do Sol que renasce todos os dias e do “armazenamento” de rebanhos de herbívoros nas paredes rochosas de cavernas e abrigos ao ar livre, para a ideia de Estética associada à Utilidade. Porque o Homem olhou para essas manifestações artísticas e ele viu que isso era bom”, porque ele é a medida de todas as coisas e é aos seus interesses que se submetem as regras de toda a actividade humana.



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