A Cidade das Flores - IV
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n'O Templário de 6-4-2017
Ao entrarmos na Galeria dos
Uffizi, depois de uma longuissíma espera numa enorme fila, a chegada ao andar
da galeria propriamente dita desde logo revela a imensidão do espaço dedicado à
pintura, desde a do século XIII, gótica ainda, até à do século XVIII, já ao
gosto neoclássico e romântico.
Dedicarei então as linhas finais
deste artigo à pintura, dominantemente italiana, que segue a linha cronológica
dos gostos artísticos, desde a ainda medieval, de que destaco as Madonas de
Buoninsegna, Cimabue, Giotto e Simone Martini, à pintura já proto-renascentista
de Uccello, “A Batalha de San Romano”, o primeiro a tentar, de um modo
incipiente ainda, a aplicação da perspectiva.
Mas é com Piero della Francesca,
Filippo Lippi e Botticelli que podemos falar numa pintura verdadeiramente
renascentista. A eles outros se seguiriam, com eles ombreando, ora na elegância
do traço, ora na firmeza dos volumes, sempre enquadrados pela perspectiva
centralizada, mas também pela luminosidade, depressa valorizada pela
extraordinária introdução da tinta a óleo importada do Norte da Europa.
Seria fastidioso e não é meu
propósito fazer uma lista da extraordinária plêiade de artistas que preencheram
os anais da arte italiana dos séculos de ouro do Renascimente e do Maneirismo
ou seja, os séculos XV e XVI. Por isso, e deixando de lado, decisão muito
difícil, todos os artistas posteriores, focarei apenas cinco nomes e algumas
das suas obras expostas nos Uffizi, escolha da minha inteira responsabilidade:
Botticelli, que representa o
domínio da linha sobre o volume, em duas obras extraordinárias, “A Primavera”
(c. 1478) e “O Nascimento de Vénus” (Fig.1, c. 1485). Embora também se tenha
dedicado a temas religiosos, estas obras, dedicadas à mitologia greco-romana,
marcaram a sua época e não podemos deixar de prestar homenagem à sensibilidade
com que soube encontrar, fruto da época em que vivia, uma adequação entre o
Humanismo antropocêntrico, centrado na maravilha que é o corpo humano, que
procurava uma conciliação, por difícil que fosse, com o ideal neoplatónico. O
“Nascimento de Vénus” representa o triunfo do mito clássico, inspirado, não
apenas na Vénus pudica da Antiguidade, mas também em temas cristãos, como o
Baptismo de Cristo.
Leonardo da Vinci, o génio
multifacetado do Renascimento, que foi pintor, escultor, arquitecto,
engenheiro, poeta, inventor, anatomista, em suma, o “homem completo” de “O
Cortesão” de Baldasare Castiglione, autor que dedicou o seu livro a outro
grande humanista e também mecenas, o Bispo de Viseu, D. Miguel da Silva. Aqui
apenas referirei dois dos seus quadros: “A Anunciação” (Fig.2 – c. 1473-75),
que embora obedeça ao cânone tradicional da iconografia mariana, utiliza já o
“sfumato” que caracteriza muita da sua pintura, velatura que adoça as formas
conferindo-lhes um carácter quase onírico; já “A Adoração dos Reis Magos”
(1481-82), comunga da condição de muitas das suas obras, interrompidas quando
um acontecimento ou outra obra se lhe impôs, deixando-as incompletas. Essa
“deficiência” permite uma análise privilegiada da forma de trabalhar do
artista.
Rafael Sanzio, o “terceiro” e “último” dos génios biografados por Giorgio
Vasari nas suas “Vite”, biografias dos
mais célebres artistas do Renascimento, é aquele que mais enterneceu gerações
de apreciadores, devido à beleza terna e à perfeição das suas Virgens e dos
Meninos. No entanto, apontarei como exemplo não menor o magnífico quadro
representando o grande mecenas da igreja católica, o Papa Leão X, com os seus
sobrinhos cardeais (Fig.3 – c. 1518), que beneficiou com o mais evidente
nepotismo – a propósito, a palavra “nepotismo” vem do Italiano “nepote”, isto
é, “sobrinho” ou “neto” – o que era considerado perfeitamente normal naquela
época.
A época que sucede ao
Renascimento é o chamada Maneirismo, termo cunhado por Vasari e que apenas quer
dizer “à maneira de”. Parece que Vasari não aceitava que algum artista
conseguisse superar os “três grandes”, Leonardo, Miguel Ângelo e Rafael. No
entanto, a crítica artística superou essa opinião, dando o devido valor a
artistas como Ticiano e Bronzino que têm aqui expostas obras de grande valor: o
primeiro, veneziano, pintou a “Vénus de Urbino” (Fig. 4, 1538), uma Vénus
pudica como a de Botticelli, acompanhada de uma sobrecarregada iconografia que
remete para a fidelidade conjugal – apesar da sua nudez – e o bom domínio da
gestão doméstica. Um cãozinho aos pés da cama, as criadas a arrumar uma arca de
roupa – “casona” – e a mão tapando o sexo, completam a mensagem de um quadro
que revela a qualidade de grande colorista deste artista.
Também Maneirista é Bronzino,
autor de retratos de nobres damas, em que a paisagem desaparece sob tons
esbatidos, destinados a fazer realçar as figuras dominantes e a riqueza e
requinte das suas roupagens e jóias, marca de distinção social. Como exemplo, o
magnífico retrato de “Lucrezia Panciatichi” (Fig.5 – 1541).
Que se me perdoe os poucos
exemplos apresentados, mas o espaço disponível é escasso e não desejaria ser
acusado de provocar, minimamente, o síndroma de Stendhal” a quem me ler.
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