MARGINALIA
INTEGRADA EM EDIFÍCIOS RELIGIOSOS PORTUGUESES
Carlos Rodarte Veloso
(Publicado no Correio Transmontano, 10 de Abril de 2017)
A par das obras escultóricas e das pinturas integradas no espaço religioso como forma de ilustrar os ensinamentos das Escrituras a um povo nesse tempo maioritariamente analfabeto, existe uma franja de pequenas obras que fogem à “compostura” exigida pela santidade dos lugares, a que tem sido dado o nome de “marginalia”.
Estas obras, geralmente esculpidas em pedra ou em talha, estão presentes nos portais das igrejas, nos capitéis, nos cadeirais dos coros, nas gárgulas e cachorros e teriam como uma das suas possíveis funções, um carácter apotropaico ou seja, destinado a “afastar os males”. Essa interpretação adequa-se especialmente às figurações aterradoras com que a Igreja católica procurava alertar os crentes para as penas infernais destinadas aos pecadores. No entanto, os temas são por vezes humorísticos e até escatológicos, muitas vezes baseados no fabulário popular. Em casos específicos, como é o caso da campanha de Filipe IV o Belo contra os Templários, podemos encontrar algumas esculturas da catedral de Amiens ilustrando os crimes “contra a natureza” de que os cavaleiros do Templo foram acusados.
Limitando-me agora a exemplos portugueses, referirei um dos temas mais recorrentes, o dos porcos gaiteiros, associados a excessos sexuais e também ao estado de caos do período pré-cristão, no caso do retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra associado aos homens selvagens e a macacos (Fig.1). A presença destes curiosos gaiteiros pode encontrar-se também no cadeiral do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (Fig.2), no portal da Sé de Lamego (Fig.3) e noutros locais, como em Estômbar neste caso sendo o gaiteiro uma figura humana, o que aponta para a popularidade da gaita-de-foles no nosso país.
O fabulário e adágios populares, e o humor, encontram-se muito difundidos, especialmente nos capitéis e cadeirais, de que é bom exemplo, entre muitos, o do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (Fig.4 – “O dentista do lobo”) e o da Sé do Funchal (Fig.5 – “Burro lendo um missal”) que revela um sentido crítico bastante inesperado e excessivo num tal local.
Já nas gárgulas e cachorros das igrejas a mensagem é muito mais agressiva, caindo por vezes na escatologia e, mesmo, na pornografia. Em vários edifícios religiosos pode ver-se personagens no acto de defecar, geralmente voltando o ânus para o lado de Espanha, o que é bem manifesto na igreja de Caminha (Fig.6) e nas Sé de Guarda e Braga.
Os exemplos são infindáveis e este pequeno artigo tem por única finalidade revelar a ponta do iceberg representada por estas tão vulgares realizações de cunho popular, geralmente ignoradas pelo visitante apressado do nosso património religioso.
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