DUAS GREVES MUITO POUCO EXEMPLARES
Carlos Rodarte Veloso
(“O Templário”, 14 de Setembro de
2017)
Há um consenso alargado ao nível da Esquerda política de que
as greves, qualquer greve, é automaticamente justificada pela adesão dos
organismos representativos dos trabalhadores, a quem compete convocá-las depois
do indispensável diálogo com os órgãos de gestão a quem são reivindicados
determinados direitos laborais.
Esta pretensa bondade da greve como motor de garantida
justiça social, choca por vezes com os direitos de camadas fragilizadas da
população servidas pelos mesmos trabalhadores, havendo então mecanismos legais
que devem ser respeitados e levam à convocação dos mesmos trabalhadores para
tarefas mínimas através da requisição civil ou outras formas negociais.
Por motivos inteiramente diferentes, duas greves recentes, uma
em curso outra apenas anunciada, entram gravemente no território sombrio do
abuso ou do oportunismo.
Começarei pela famigerada greve dos enfermeiros especialistas
em cuidados materno-infantis, não convocada pelo respectivo Sindicato, mas pela
Ordem, mais propriamente pela sua bastonária, Ana Rita Cavaco, que foi adjunta
do Secretário da Saúde no XV Governo Constitucional e membro de Conselho
Nacional do PSD.
Se é verdade que é da maior injustiça que a especialidade
obtida por estas e estes enfermeiros não lhes faculte a paga devida, é bem mais
grave, do ponto de vista deontológico, a autêntica chantagem por muitos deles
exercida ao abandonarem os blocos de partos, assim abandonando as grávidas,
mulheres especialmente fragilizadas pela sua condição médica e psicológica.
Esta verdadeira demissão de tantas e tantos especialistas ao
solicitarem a suspensão do título de especialistas em saúde materna e obstétrica,
obrigou os médicos obstetras – honra lhes seja feita – a assumir as funções dos
enfermeiros em falta o que, dado o seu muito menor número, está a levar estes
voluntários à exaustão, com consequente prejuízo dos cuidados prestados.
Independentemente das razões aduzidas pelos enfermeiros, soa
muito estranho que seja uma Ordem profissional a convocar uma greve, para mais
de natureza bastante fracturante num campo da actividade que entra em choque
com os mais sensíveis direitos humanos, neste caso da assistência no parto. O
Juramento de Hipócrates cabe, como se sabe, aos médicos, mas penso que todo o
pessoal especializado na saúde humana deveria seguir esses sãos princípios.
É claro que as greves com que os próprios médicos de tempos a
tempos – fala-se de uma marcada para o próximo mês – defendem os seus direitos
profissionais e económicos resvalam perigosamente para essa zona de penumbra
que, por boas razões, perturba gravemente as expectativas de doentes, o seu equilíbrio
mental e, por vezes, a sua saúde.
Isso poderia levar, numa época em que tudo se questiona, a
interrogarmo-nos sobre se o direito à greve pode ser aplicado mecanicamente a
todas as situações, sem pôr em equação os graves e porventura fatais inconvenientes
gerados a partir de certas profissões de que pode depender a própria vida
humana, a segurança e a economia de um país.
Estou a pensar nos serviços prestados pelas bombeiros, os
médicos e enfermeiros, as forças militares ou policiais e muitas outras, dependendo
obviamente do contexto próprio.
Este reparo abrange, como não podia deixar de ser, os Juízes,
que convocaram uma greve para o mês de Outubro. Independentemente das razões
invocadas por estes representantes de um dos órgãos de soberania, a verdade é
que essa sua condição não lhes devia permitir quaiquer veleidades deste género.
Seria, nas palavras do próprio presidente do PSD, fortemente
condenatórias de tal atitude, como se o Presidente da República, os membros da
Assembleia da República ou do Governo se declarassem em greve. Esta declaração
de Passos Coelho, muito pouco chocado com a greve dos enfermeiros
especialistas, é quase histórica, já que não se tem notabilizado pelo
reconhecimento da realidade.
É claro que “borra a pintura” ao manifestar as suas reservas
quanto às atitudes dos partidos da Esquerda ao criarem “expectativas
extremamante elevadas quanto àquilo que deveria ser o resultado de negociações
que decorrem com o Governo”... Era simplesmente irresistivel, decerto
inspiração da já saudosa “Universidade de Verão” e das sapientíssimas palavras
piadas por Cavaco Silva.
Digamos que esta posição de Passos Coelho vai ao encontro do
seu máximo de consciência possível. E contentem-se, que o homem já não dá mais
do que isto!
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